A tia Betha - Fernando Braga



A tia Betha
Fernando Braga

         Era 1960, tive o grande, o enorme prazer de conhecê-la. Foi quando pela primeira vez entrei em casa de minha namorada, que sete anos após, seria minha esposa.

Aos poucos, fui conhecendo um a um, todos os familiares. O maior contato foi com minha sogra, viúva, pessoa extremamente boa e simpática. Todos me aceitaram muito bem sem seu meio e dentre elas, estou falando agora da tia Betha, senhora de uns 55 anos, que naquela ocasião já me pareceu bem idosa. Naquela época sendo eu um jovem de 20 e poucos anos, qualquer pessoa com mais de 40 já parecia idosa.

        Ela raramente saia da cozinha,   e era muito, muito querida pelas três irmãs, um irmão, todos solteiros, que moravam naquela casa, além das duas sobrinhas, das quais uma era minha namorada.  

No começo eu era convidado para o almoço aos domingos, mas com o tempo e na minha condição de morar sozinho em São Paulo, comparecia quase infalivelmente, às terças, quintas e sábados para jantar, comida feita por Betha e minha querida sogra. Sempre que frequentava aquela casa me chamava a atenção ver Betha na cozinha, quieta, tranquila, sempre com um sorriso nos lábios, tratando todos muito bem, com carinho e sempre disposta a ajudar.

 Por ocasião das festas natalinas a casa se transformava em um teatro de alegria com a chegada de mais seis irmãs e um irmão, todos casados que moravam alhures. Naquele ambiente de alegria, com pouca bebida, cantoria, discussões futebolísticas e após minha entrada, de jogatina, o que mais eu observava   era a atenção dispensada à tia Betha, considerada como uma verdadeira mãe, além da ser a melhor cozinheira do mundo. Tratava-se de uma mulher simples, sem qualquer pretensão, desarmada, que sempre mantinha o mesmo tom de voz, nunca discutia ou brigava.

        O tempo correu e assim foi durante muitos anos, pois continuamos indo, sempre aos domingos, agora com meus quatro filhos, apreciar a bela macarronada e quitutes feito por ela. Nunca namorou, nunca teve um pretendente, nunca teve um homem em sua cama.

Em 1985, quando fez 80 anos, oferecemos a ela uma grande festa em nossa casa, com a presença de todos os familiares, que sem exceção, vieram prestigiá -lá, demonstrando todo o carinho e amor, que aquela mulher merecia, por anos e anos de dedicação aos outros. Em 1998, agora com 93 anos veio a falecer, morrendo como um passarinho, quieta e sem incomodar ninguém.

       Logo após sua morte, veio, com muita surpresa, minha mulher comunicar-me que haviam achado dentre os poucos pertences da tia Betha, um diário escrito por ela. Conseguimos ter em mãos este livro que estava em precárias condições, com as folhas bem amareladas e gastas. Nunca ninguém poderia supor a existência deste registro, escrito desde a época em que viveu na Itália. Seu pai era um engenheiro e sua mãe do lar. Como não tiveram o beneplácito das famílias, fugiram para se casar e logo nasceu a Elizabetha. Viveram em uma pequena vila do interior do país, mais precisamente Pescopenataro.                                        
                              
        Em 1910, seus pais vieram para o Brasil, para Jaú, onde ele veio juntar-se a seu irmão e um com o capital e o outro com os planos de construção, formaram uma bela dupla. Todavia, Betha , com apenas cinco aninhos permaneceu na Itália, morando com sua avó, muito querida, que não queria separar-se dela. Aprendeu a ler e escrever, e desde pequena, a cozinhar e mesmo costurar. Amava sua avó.

      A Itália entrou na primeira grande guerra, tornando-se muito difícil sua vinda para o Brasil, para juntar-se à sua família. Conta, ainda pequena, de sua agrura, medo e dificuldades de seus avós durante a guerra. As cartas não chegavam e nada se sabia tanto de um lado como do outro.

       Logo após o término da guerra, com 13 anos conheceu Giovani, de 17 anos, um rapagão, filho de um vizinho, que atingiu seu coração com algo estranho e bom, que só podia ser o amor. Furtivamente, encontrava-se com ele, pegavam na mão e ocasionalmente um beijo. Mas nada, além disto. Nada contava para sua avó, com medo de tudo se estragar.

       Eis que um belo dia, em 1919 recebe uma carta de seu pai, dizendo que sua passagem estava paga, para sua vinda ao Brasil. Sua avó quase morreu de insatisfação! Ela também não gostou, pois estava apaixonada por Giovani e ele por ela, mas tinha apenas 14 anos! Chegaram a planejar uma fuga para ficarem juntos, mas como? Se não tinham nada para sobreviver naquele tempo difícil de pós guerra. Muitos italianos estavam imigrando para o Brasil e assim, foi levada para pegar aquele vapor em Napoli com destino a Santos, em companhia de uns conhecidos. Quase não teve tempo de despedir-se de Giovani, mas durante toda a viajem de uns 30 dias, escreve folhas e folhas sobre sua perda, mais querida.

Escreve que, aproximando-se do porto de Santos, tinha dificuldade em relembrar como era o rosto de sua mãe e o perfil de seu pai. Quando desembarcou em terra firme, logo percebeu a presença de ambos e correu, atravessando por baixo de uma corda, para abraçá-los e beijá-los. Descreve sua ida para à São Paulo em uma estrada, rodeada por imensa mata! Aquilo era o Brasil, país com índios. Em São Paulo, pegaram um trem e depois uma jardineira para chegar em Jaú.

Chegando em sua casa, conheceu suas três irmãs e um irmão, que aproximaram-se acanhadamente. Escreve ela que no dia seguinte, sua mãe pegou em sua mão, levou-a até a cozinha e disse:

— Agora você vai ter que me ajudar na cozinha, e a criar seus irmãos.

Seguidamente, nasceram mais sete, seis outras mulheres e outro homem, onze no total.

 Sua mãe, agora diabética e após ter tido erisipela, já não era a mesma, e foi assim que Betha teve que assumir a cozinha de uma vez e a criação de seus irmãos, além de cuidar carinhosamente de sua mãe. Nunca se queixou. Soube mais tarde que Giovani havia se casado e que mais tarde em 1944 morrera em uma campanha de guerra no norte da África. Lembrava dele como um sonho que passou, mas descreveu que ele havia sido seu único e perfeito amor, mesmo sem sexo.

Solamente una vez, ame en la vida! - cantava ela. Fala de sua tristeza ao perder seus avós da Itália. Em 1950, mudaram-se para São Paulo, após seu pai ter tido problemas com seu irmão, que o estava roubando. Nesta altura, um dos seus irmãos já era advogado, o outro dentista, e das nove restantes, seis haviam se casado, das quais uma ficou logo viúva, a mãe de minha mulher. Tudo escrito em seu diário.

 O último episódio descrito, foi o dia da festa de seus 80 anos, com o prazer de ver todos seus familiares   presentes, os ainda vivos!   Não mais escreveu.


Deus guarde a tia Betha que, cá entre nós, devia ser canonizada, como o foi Sainte Francis of  Rome.


Nenhum comentário:

Postar um comentário