UM ENCONTRO MACABRO - NUM MUNDO FÚNEBRE
Oswaldo
U. Lopes
Leandro era ótimo no violão, melhor
ainda na viola, embora com esta precisasse de outros músicos acompanhando. Tocava os instrumentos melhor do que tocava o
estetoscópio, e olha que já estava no quarto ano de medicina.
Ninguém entedia, nem ele explicava, mas
gostava de tocar canções do tipo macabro ou assustador e o fazia tão bem que
muitos ao ouvi-lo ficavam arrepiados. Era possível dividir seus ouvintes em
dois tipos: os que ao perceberem a cantoria aceleravam o passo para longe e os
que ficavam, como que grudados no chão, ao som daquele vozeirão ecoando num
canto do famoso porão da faculdade:
Vai
alta a lua na mansão da morte
Já meia noite com vagar soou
Que paz tranquila, dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou
Que paz tranquila!... Mas, eis longe, ao
longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu
Será que o poeta, ultrarromântico,
português Soares Passos, vindo da segunda metade do século XIX, podia imaginar
seus versos cantados no porão da Faculdade de Medicina e assustando os
passantes? Era difícil explicar, talvez os cadáveres da anatomia, talvez o
túnel dos defuntos que vinha do HC para a Faculdade, talvez a magistral
interpretação do cantor artista, tudo isso junto cria-se o macabro cenário em
que os versos ecoavam.
Leandro impressionava porque até em músicas
que eram famosas paródias, como a história das Duas Caveiras que se amavam, de
Alvarenga e Ranchinho, criava um tom fúnebre que estourava em risos nervosos
com os dois versos finais:
Por causa dessa ingrata caveira
Que trocou ele por um defunto fresco.
A coisa ia bem nesse tom, tom de
aterrorizar, ele rindo por dentro e assustando os circunstantes por fora, até
que um dia veio o desafio:
— Quero ver você cantando essas músicas e
dedilhando o violão a meia noite lá dentro do Araçá.
— Marque
o dia e a hora
Todos em volta concordaram com o
desafio, porque bastava atravessar a rua e pular um muro baixo. A noite veio
rápida e os que foram se espalharam, escondidos, entre túmulos e árvores,
observando Leandro e seu violão sozinhos a cantar no adro central perto da
capela.
Quando soou a meia noite um vulto escuro
e etéreo surgiu do nada caminhando, se é que podia chamar-se de caminhar aquele
deslizar flutuante.
Aproximou-se de Leandro e fitando-o
ficou a escutá-lo, pensativo e fantasmagórico como toda boa aparição.
O restante da história teve pouquíssimas
testemunhas. A enorme maioria, quase a totalidade, escapuliu-se muro acima sem
nem olhar para trás. Os malévolos contavam que era possível seguir o caminho
percorrido pelo cheiro que era forte.
Quem não fugiu, porque ainda tinha um
átimo de coragem ou porque lhe faltavam pernas para correr, estando estas trêmulas
e bambas, ouviu o impressionante diálogo:
—
Você sabe quem eu sou?
—
Não faço a mínima ideia, você não se apresentou.
A frieza de Leandro era cortante,
parecia feito de gelo.
— Eu
sou o espirito do cadáver da anatomia e estou aqui para exigir, pedir, implorar
por mais respeito ao meu corpo mutilado.
—
Posso até levar tua mensagem, mas além de um discreto cantarolar sob teus
restos, não me lembro de faltar-lhe o devido respeito.
—
Nem quando cantavas “Era uma vez duas caveiras” em cima de meus ossos?
—
Bem, aquilo foi num canto e não havia cadáveres na sala, apenas poucos ossos
espalhados.
— E
achas pouco?
— Se
procuras respeito, farei o possível, se achas que venceras pelo medo, não creio
que iras muito longe.
— Os
teus colegas que já pularam o muro, não tinham essa coragem que esbanjas.
Podemos vir muitos, contando todos tanques de formol, formamos uma legião.
—
Pois seja, como disse, serei portador de tua mensagem. Vai ser difícil
conseguir uma crença unanime, nem eu mesmo que te vejo, tenho certeza da tua
existência. Podes bem ser uma alucinação coletiva.
— Nós
voltaremos a falar e a nos ver. Dito isso, o vulto desapareceu, deixando
Leandro no átrio, cantando enquanto olhava o luar:
— Vai
alta a lua na mansão da morte...
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