Primeira vez - José Vicente J. Camargo



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Primeira vez
José Vicente J. Camargo 
  


Os flocos de neve batiam suaves nas vidraças do meu apartamento de quarto e cozinha no edifício reservado pela Universidade de Hannover - Norte da Alemanha - aos estudantes estrangeiros. Minha curiosidade de primeira viagem não me desgrudava da janela onde via os flocos de neve cobrindo a paisagem e tudo o que ela abraçava: pessoas, casas, ruas, calçadas, jardins, carros de um branco fofo refletindo a luz tênue do sol. Os transeuntes vestindo pesados casacos e sapatos de solas espessas, andavam cautelosos evitando possíveis quedas. Os carros acompanhavam essa cautela com velocidade reduzida e as crianças, com seus espíritos destemidos e empurrando trenós, sorriam prevendo as brincadeiras de esconde-esconde evitando uma bolada gelada na cara. Este cenário remexia minha mente recordando das tantas vezes que indaguei como seria a sensação de ver, tocar e brincar na neve. E agora ali estava, resolvido a sair à rua para pisar naquele bolo branco e curtir, pela primeira vez, todas essas sensações.

Era um sábado de manhã, férias de inverno, faltando uma semana para o Natal. Naquela tarde pretendia dar sequência à minha correspondência natalina, contando e descrevendo à família e aos amigos todas as novidades e sensações da “primeira vez” num mundo novo, agradecido pelo que o destino me estava presenteando.
O toque inesperado da campainha me desperta do devaneio. Tentando adivinhar quem poderia ser, abro a porta e me deparo numa surpresa total – jamais adivinharia com meu amigo americano Steve que conheci nos primeiros meses na Alemanha, fazendo o curso de alemão que recebi junto com a bolsa de estudos. Ao seu lado me apresenta sua irmã Mary, uma loirinha de lindos olhos azuis, corpo escultural que fez minha cabeça tomada pela neve se derreter com os raios de luz provenientes do seu sorriso gracioso. Passado o estupor do encontro, Steve diz:

Acabamos de chegar de Los Angeles! Viemos te buscar para passarmos o Natal e ano-novo esquiando. É meu presente à Mary que entrou na faculdade. Aluguei um carro lá para retirá-lo aqui. Vamos buscá-lo na locadora e de lá pegamos a autoestrada para as montanhas.

− Certo! Retruco eu. É que os poucos meses que vivo aqui me estão levando a pensar como os alemães que preparam meses para uma viagem como essa. Eles são inimigos do imprevisto, do não planejamento.

Com a cabeça novamente em reboliço −ainda bem que não assumi nenhum compromisso para as festas de fim de ano − amasso umas mudas de roupas das mais quentes na única mala que possuo, tranco porta e janelas e, sob o neviscar incessante, nos dirigimos a agência locadora onde um Ford americano nos esperava. Fico aliviado quando Steve, apesar de cansado, toma a direção do carrão, pois, dirigir em zig-zag na neve, seria para mim uma primeira vez, e poderia terminar mal.

Sentia uma ansiedade pelo “tudo novo” que estava acontecendo: nevasca, viagem às montanhas, esquiar em neve verdadeira e uma “pontinha” de felicidade pela companhia da Mary mesmo sem saber o final. Tomamos a autoestrada decidindo o rumo a tomar: Alpes alemães, franceses, suíços ou os ressortes menos comerciais da Áustria? Optamos pela Áustria dado a menor distância e aos preços mais acessíveis. Explico aos amigos que minha experiência com esqui se restringe a vê-los nas vitrines.

− Aprende-se rápido! Eu te ensino! Interrompe Mary. Minha ansiedade cede lugar a uma gostosa sensação de bem-estar...

Dia seguinte, com céu azul, sol brilhante e frio gelado, deixamos a loja de aluguel de esqui e apetrechos em direção ao ônibus que transporta os esquiadores até o pico da montanha próximo aos três mil metros de altura. Quando miro o pico de destino e o caminho a percorrer, gaguejo se não seria melhor eu ficar em baixo junto com a crianças da escolinha esquiando entre os personagens da Disney, mas Mary me interrompe:

− A neve aqui não está boa, está dura! Lá em cima é melhor! É neve fresca, fofa...

Com essas primeiras “dicas” sobre as condições da neve, subo no ônibus com aquele pensamento próprio para o momento: “Seja o que Deus quiser”!

A subida me pareceu bem pior que as “curvas da estrada de Santos” e, ao chegar, empurrado pra fora pelos afoitos esquiadores a bordo, me vejo no cume da montanha, de esqui no pé − que só consegui calçar com a ajuda do Stevens − mirando o precipício abaixo com inveja dos demais que como flechas se atiravam montanha abaixo desviando de árvores e pedras e em poucos minutos chegavam ao pé da pista. Steve e Mary se prontificaram a me ensinar as regras básicas, mas – vendo a vontade deles de deslizarem morro abaixo, recusei e disse que daria uma de autodidata e os encontraria no restaurante onde marcamos encontro.

De início tentei usar a imaginação dos movimentos vistos em reportagens esportivas ou imitar os esquiadores que por mim passavam, mas mediante tantas curvas e empecilhos – no caminho tinha uma pedra – de tantos tombos e malabarismos para recolocar os esquis que se soltavam e teimavam em escorregar sozinhos, decidi encerrar a aventura na metade do trajeto e carregar o par de esqui nas costas. No restaurante, Mary e Steve me receberam com cerveja para batizar a minha estreia.  Não contei todo o acontecido para não estragar a comemoração, mas enfatizei que dia seguinte, sem falta, faria minha matrícula na escolinha dos principiantes.

− Ah! Interrompe Mary, te farei companhia. Serei pela primeira vez professora de esqui! Depois de amanhã estará apto a retornar conosco ao pico da montanha.

E eu, pensei, serei pela primeira vez um aluno que levará tombos não só pelo enroscar das pernas e braços, mas sobretudo pela falta de atenção toda voltada aos trejeitos rebolantes da professorinha que, apesar do frio, me faz arder o peito.

Sensação que sinto pela primeira vez...

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