O TEMPO SEMPRE PASSA, NÓS COM ELE - Oswaldo U. Lopes





O TEMPO SEMPRE PASSA, NÓS COM ELE
Oswaldo U. Lopes



        Aconteceu num plantão do PS, banal não é? No HC as coisas acontecem é num plantão. Nas Enfermarias, no dia a dia é raro que suceda algo marcante. Quero dizer, coisas e fatos são registrados, mas você vai passar anos tentando lembrar-se de um momento notável.

        No plantão do PS o memorável mora ao lado, vira e mexe ele atravessa a porta. De preferência quando a noite avança e o sono esta tão convidativo, como convidativa esta a maca do corredor, refúgio de acesso fácil.

        Bem noite alta, entra a moça vomitando e chorando. Caso comum, não chamo de banal, pra não parecer que somos absolutamente desumanos, somos apenas médicos que engrossamos a casca de tanto ver e acompanhar o sofrimento alheio.

        Como dizia, caso comum, gravidez não desejada, soda cáustica ingerida, queimação forte na boca do estomago, vômitos.

        Doutor, me ajude! Posso ajudar, aborto não podemos fazer ainda, talvez no futuro, do jeito que a coisa vai, acho difícil.

        Vamos passar uma sonda para alimentação, interná-la e encaminhar para uma Enfermaria de Cirurgia. Cheguei a acompanhá-la por um tempo, depois perdi de vista.

        Vinte anos são passados. Lembro, vagamente, da situação dela que está sentada a minha frente.

        Sobreviveu, teve a criança, uma menina, hoje uma moça que, quem diria, estuda Medicina aqui mesmo na FMUSP.

        Não casou, toca a vida, a família aceitou a gravidez e o que veio junto. Sentiu-se amparada. A assombração do estreitamento entre o esôfago e o estomago, causada pela soda, a terrível esofagite cáustica ficou na lembrança.

        Um enxerto de intestino grosso (colón transverso) no local do estreitamento acertou a situação. Uma cirurgia boa na intenção, mas eivada de intercorrências, correra na maior lisura. Alimentava-se bem e sem sofrimentos.

        O suposto pai afastara-se e não assumira. Ela também não o queria, não era o par certo para formar família.

        Não achou o par certo nem par incerto. Tocou em frente, criara a menina e isso lhe bastava. Bastava?

        Certo que não, à noite, às vezes ainda chorava baixinho. A solidão estava tão perto que era possível tocá-la e nela passar a mão.

        Entre uma coisa e outra, a menina e os encargos, a vida levara ela, ou como gostava de cantarolar “vida leva eu”.

        Ah! Lembrei o nome. Chamava-se e ainda se chama Isabel, a filha Eleonora, Dra. Eleonora, logo, logo...

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