A triste história de Francisca Dias. - Ises de Almeida Abrahamsohn.


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A triste história de Francisca Dias.
Ises de Almeida Abrahamsohn.




Reunidos na varanda de dona Januária, os sobrinhos estavam ansiosos por ouvir mais um causo acontecido lá mesmo em Catas Altas. Situada ao pé da serra do Caraça, num vale entre as montanhas da Serra do Espinhaço, nas Gerais, a cidadezinha fora importante centro de mineração de ouro no século XVIII. Naquela época o povoado fervilhava de gente. Junto com os mineiros vinham mulheres, dispostas a lhes aliviar as urgências do instinto, e igualmente essenciais para as lides da cozinha e lavagem de roupa. As crias vingavam ou morriam a depender do seio materno e do acaso. Ninguém ligou muito quando a filha da mulata Jacinta com o garimpeiro Jan Dias sumiu das vistas da casa das mulheres. A menina Francisca teria na época uns quinze meses e provavelmente entrara na mata atrás do casebre de pau-a-pique. Após mal sucedida busca foi dada por morta e esquecida. A mãe tinha mais quatro filhos, um ainda agarrado aos peitos partilhados com a menina. Toda a prole herdara do pai, flamengo e cristão novo, os cabelos ruivos e, da mãe, a carapinha e a pele escura. 

Passados uns seis anos, o mateiro Damião encontrou caída na mata uma criança, depauperada, coberta de lama e dejetos. Tinha comportamento de animal ferido. Rosnava e mostrava os dentes enquanto o homem tentava identificar a causa da imobilidade. A perna estava fraturada. A cuia d’água e o pedaço de carne salgada oferecidos foram avidamente consumidos. Damião voltou com dois homens para amarrar e transportar a menina reconhecida como a filha de Jan Dias, pelo cabelo sarará. Na vila, lavada e alimentada, com a perna em uma tala a garota era um animal selvagem. Chamaram-lhe  menina-loba. O povo dizia que, devido ao seu cabelo ruivo, uma loba guará que havia perdido a cria a adotara. Levaram a menina-loba ao recolhimento do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição das Macaúbas. As religiosas mesmo à custa da vara de marmelo conseguiram poucos progressos. Foi submetida a exorcismos, já que trazia no sangue a pecha do pai, herege de origem. Alguma irmã mais caridosa, de nome não registrado, conquistou-lhe a confiança e conseguia lavá-la e enfiar-lhe uma túnica folgada. Não mais rosnava ou mordia as pessoas. Passou a comer comida cozida ao invés de carne crua e dos caramujos e pássaros que caçava no jardim. Nunca aprendeu a falar; emitia apenas alguns sons guturais. Dormia de dia, escondida em algum canto para, de madrugada, vagar incessantemente pelos jardins até o amanhecer. Morreu de morte natural dois anos após o recolhimento e foi sepultada como cristã.

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