Um acidente que mudou vidas - Ledice Pereira

 


Um acidente que mudou vidas

Ledice Pereira

 

A camionete parou bruscamente ao lado da cena do acidente. Era um sedan cinza capotado, todo retorcido, na faixa esquerda da rodovia. Bento saltou do veículo, precisava ajudar, e já pode ouvir os socos que retumbavam ao longe. Era um homem que, desesperadamente, tentava quebrar a janela do carro capotado. O suor escorria do rosto de Gregório, mas ele não esmorecia. Sua voz trépida gemia por socorro. E havia um choro incontido que não se sabia de onde vinha. Bento aproximou o rosto do vidro do para-brisa do veículo tombado e viu lá dentro uma criança aos berros, presa na cadeirinha do banco traseiro.  À frente, uma mulher desacordada. Viu o combustível traiçoeiro escorrer lentamente sob o veículo e encostar na sua bota:

— Vai explodir essa coisa! – Gritou. 

Correu até seu carro e, com a chave de rodas, estilhaçou o vidro do sedan.  Mas, a porta emperrada, não cedia.

— Meu Deus! Não consigo abrir essa porcaria! Me ajudem aqui! – Gritou num fôlego.

Vendo que o tempo era seu inimigo, ele, num ímpeto, se enfiou pelo vão da janela, atropelando-se pelo espaço apertado, e conseguiu liberar a criança do cinto de segurança. Percebeu uma nesga de fogo clarear na parte dianteira e se avantajar acintosamente pelo painel do automóvel.

— Pega aí!! – Gritou, Bento, colocando a criança nas mãos de Gregório.

Já ia sair, mas arriscou olhar para a mulher com a cabeça tombada ao volante. Tinha muito sangue escorrendo pelo couro cabeludo, mas surpreendeu-se com um discreto movimento de mão:

— Ela parece estar viva! Meu Deus! Examinou o comportamento do fogo, sabia que se expandiria a qualquer momento.

E Gregório, com o bebê nos braços, foi se distanciando do sedan, gritando:

— Sai daí, está pegando fogo, vai explodir! ...

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Antes disso...

Bento estava feliz. Depois de dois anos, conseguira finalmente tirar férias longas para poder com Laura, a mulher e Beatriz e Raul, os filhos de três e cinco anos, viajar sem rumo, explorando as belezas da natureza, parando aqui e ali, onde achassem que valia a pena. Para isso trouxera um cantil para cada um, sapatos confortáveis, boné, repelente, protetor solar. Estavam viajando há duas horas e meia quando viu aquele sedan rodopiando na estrada. Estancou no ato.

— Meu Deus! Será que o motorista dormiu ao volante – pensou, abrindo a porta do carro e correndo naquela direção sem nem pensar que o carro poderia explodir.
Precisava fazer alguma coisa.

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Bento nunca se esqueceu daquele fatídico dia:

A imagem vinha sempre em sua mente: após ajudar aquele homem, colocando a criança em seu colo a salvo, arrastou a mulher, imóvel, para longe. Tempo suficiente para ouvir a explosão: Pummm! Enquanto as labaredas engoliam o veículo sem dó.

Acionara o resgate para tentar salvar a desconhecida. O homem, com a criança no colo, estava em estado de choque.

A viagem de Bento e família, acabara ali. Aguardaram a chegada do Corpo de Bombeiros, da Polícia Rodoviária, acompanharam o homem para prestar depoimento, tentaram acalmar a criança que não parava de chorar. Enfim, só lhes coube voltar para casa, abortando a tão esperada viagem. Não havia clima para continuar, pelo menos não naquele dia e nos subsequentes.

Após alguns dias, passado o susto, realizou com a família a tão esperada viagem, tentando esquecer o ocorrido, fazendo com que as crianças tivessem contato com a natureza, apresentando-lhes a fauna e a flora brasileira. As crianças jamais esqueceram aquele aprendizado.

Meses após, Gregório o procurou. Precisava demonstrar seu agradecimento. Não fora Bento, não podia nem imaginar o que seria da mulher e da filhinha Mirtes de ano e meio.

Tornaram-se amigos. Gregório e Bento, Laura e Regiane, que após o acidente ficou com pequena deficiência motora. Como conseguiram provar que o acidente fora provocado por uma falha de fabricação, foram ressarcidos pelo fabricante.

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Vinte anos se passaram. Aquela amizade se solidificou. As crianças, que sempre se deram bem, transformaram-se em jovens, sonhadores e esperançosos.

Raul, formara-se em Veterinária, cuidando de animais de grande porte.

Beatriz acabara de se formar em Psicologia, pretendendo ter sua própria clínica.

Mirtes, agora com quase vinte e três anos, incentivada por Raul, cursa também a faculdade de Medicina Veterinária e Zootécnica da Universidade de São Paulo. Assim que se formar, ela e Raul, após se casarem, pretendem mudar-se para o interior onde exercerão a profissão.

Aquela sonhada viagem de férias não só foi responsável pela escolha da profissão dos jovens, como criou uma sólida amizade que culminou com uma união matrimonial.

A vida é cheia de meandros e mistérios.



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