Estratégia não é Fake - José Vicente J. Camargo



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Estratégia não é Fake
José Vicente J. Camargo


A secretária, elegante e de boas maneiras, já lhe havia servido água e cafezinho. Agora aproxima-se novamente dizendo:

Por favor, pode entrar, o Dr. Siqueira o aguarda.

Antes de entrar na sala, Romeu apruma-se, levanta o peito, encolhe a barriga, abre a porta e se vê diante do Dr. Olavo Siqueira, dono da Editora Mundial, uma das maiores do país, sentado numa mesa de madeira de lei, talhada com figuras de frutas e plantas tropicais e diz:

Bom dia, trouxe o manuscrito do meu livro conforme solicitou.

Ótimo! Conseguiu dar um bom suspense envolvendo grupos mafiosos, crime, sexo, vingança misturado com personagens extraterrestres? O mercado agora só pede isso. O resto é difícil vender.

Creio que sim, responde Romeu sem demonstrar sua indecisão.

Meu assessor dará uma olhada e daqui há alguns dias lhe comunicaremos as chances de edição.

No carro, Romeu reflete sobre a tendência do mercado editorial e o fato de seu livro ir na contramão. Trata-se de um romance de amor com ciúme doentio, mas sem ódio, tiros e crime. Sexo tem, mas sem exageros e termina até com um final feliz. À medida que revisa mentalmente o texto, comparando com as sugestões do Dr. Siqueira, vê suas chances de ter o livro publicado, diminuir. Só uma boa “estratégia publicitária” poderia mudar a situação. Parado no vermelho do semáforo, vê, no alto de um prédio, uma mulher se equilibrando no peitoril de uma janela limpando a vidraça. A imagem penetra como um raio no seu cérebro e nasce a ideia...

Dia seguinte visita um casal de velhos amigos, atores de teatro, e se abre:

Preciso da ajuda de vocês! Questão de sucesso ou depressão aguda. Meu livro, que estou tentando editar, tem uma cena de ciúmes que se passa na sacada de um apartamento no 20 andar. A mulher, ao par da infidelidade do marido, aos berros ameaça pular. O marido em desespero a agarra tentando evitar. O eco dos gritos reúne na calçada da rua abaixo, um crescente amontoado de curiosos que mirando a cena gesticulam, assobiam e se polarizam:

Pula, pula...de um lado.

É fake, é fake, de outro lado

Não demora muito e a polícia e o corpo de bombeiro de sirenas ligadas, esmagando o ar quente do meio dia, se fazem presente. Segue-se a mídia com os caminhões de tv e afoitos entrevistadores a procura de um “furo” que os promovam.

Quero que vocês façam essa cena! Completa Romeu. O apartamento com terraço é o do Jorge, o mesmo que utilizei na montagem da minha história. Já falei com ele, está de acordo e avisará o síndico, os porteiros e os vizinhos para não se alarmarem com a cena “fake”. Trouxe o manuscrito do livro para vocês treinarem a cena. Quanto mais real ao texto, melhor.

O “day after” fica por minha conta. Insiro nas redes sociais uma notícia que a tão comentada “cena de terror” no terraço de um edifício, acontecida no dia anterior, no centro da cidade, é uma réplica tirada do meu livro. Para aumentar o sensacionalismo da notícia, digo que vou pedir ao casal envolvido na cena, uma indenização por plágio.

Tudo saiu como Romeu planejou! A repercussão do fato bombou nas redes sociais. Teve milhares de clicagem. Choveu pedidos de maiores informações sobre o conteúdo do livro, locais de venda, solicitação de entrevistas, etc. Ele nem precisou retornar ao Sr. Siqueira, este mandou avisar que o livro seria editado com urgência. Tiragem e valores iguais aos de “best sellers”, pois já havia interesse de emissoras de tv e de produtoras de filmes na compra dos direitos autorais.

Não é que há males que vem para o bem? Indaga Romeu consigo. Não sinto culpa por ter utilizado essa estratégia para editar meu livro. As verdadeiras “fake news” prejudicam as pessoas, mas a minha, falsa, só trará benefícios, pois aumentará o número de leitores. Se Guimarães Rosa dispusesse dessa estratégia, não duvido que a utilizaria, denunciando nas redes sociais que o escândalo armado que pegou em flagra Riobaldo, machão do sertão, beijando Diadorim no meio do buritizal, é parte intrínseca do seu livro “Grande Sertão Veredas”.

Aí é que o sertão viraria mar mesmo...

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