Sal e pimenta - um apólogo - Silvia Helena De Ávila Ballarati


          

SAL E PIMENTA

Silvia Helena De Ávila Ballarati


– Estava com saudade de você! Por onde andou esse tempo todo? Pergunta a pimenta.

– Ah! Fui tirado da mesa, diz o sal. Agora só me deixam na cozinha. Estou detestando! Além de ficar longe de você,  estou impressionado com  a falta de higiene e o descaso comigo.

– Colocam a mão em mim a toda hora, mãos sujas, dedos oleosos que me apertam, me esfarelam, me atiram na pia sem a menor consideração. E há ainda aqueles que me lambem, ai credo!

– É, foi desde que inventaram essa história de que você faz mal que ninguém mais deixa saleiro durante as refeições, coitado! E, além disso, agora você está na composição de todos os alimentos, inclusive os doces, não é mesmo?

–Sim, dizem que eu realço o sabor de tudo. Então, se eu sou tão importante assim, justo eu fico de fora da mesa? Será que vocês, pimentas, também não fazem algum mal? Ai, desculpe-me, não quero ser indelicado, você sabe como eu te adoro. É que eu estou inconformado.

– Nossa! Será que vão fazer o mesmo comigo? Pensou alto a pimenta. Ah! Mas se fizerem... eu me vingo! Ai de quem encostar a mão em mim, coitado! Acabo com seus olhos, furo seu estômago. Sou vingativa mesmo, onde já se viu? Sempre servi, sempre dei sabor também. E aroma, você já viu como consigo perfumar as comidas?

– É, diz o sal, sorte sua que não pode ser tocada, eles te respeitam mais do que a mim. Ninguém ousa passar a mão em você.  Agora eu? Fico lá, jogado numa vasilha de plástico qualquer, de margarina, de  sorvete, nunca com a tampa certa porque perdem e tampam com qualquer coisa, até com pires! Ai que horror!  Fico lá, abafado no armário, apertado no meio de tanta coisa.

– E os saleiros, lembrou a pimenta, cada um mais lindo que o outro. Lembra quando ficávamos abraçadinhos em preto e branco? Era um pouco difícil de sair de lá, mas era tão romântico!

– Para mim, os de prata, sempre reluzindo, noites de gala, toalhas de banquete, como era chique! Nesses dias, sentia-me o verdadeiro rei da refeição. Os convidados me depositavam na mesa suavemente,  e só depois outros dedos vinham me pegar, não ficava nessa coisa de passar de mão em mão, muito mais adequado num jantar sofisticado.

– Sal, lembra dos nossos mergulhos de cabeça na sopa? Quanto mais ralinha melhor, você ia fundo,  depois voltava à tona e ficava me procurando.

– E quando era creme, ficava mais difícil afundar, então ficávamos fazendo  desenhos  na superfície, lembra? Até  grudar na colher era engraçado, como tenho saudade de tudo isso, pimenta.

– Não me conformo de não estarmos juntos. Sempre nos completamos, não me sinto à vontade na mesa sem você, todo mundo repara. Ficam me olhando e perguntando, cadê o sal? Isso me deixa tão constrangida.

– E é sempre a mesma desculpa. Sal faz mal, não ponha mais porque a maioria dos alimentos já contém sal embutido, blá blá blá... O pior é que não sou eu o culpado. É um tal de glutamato monossódico, um pilantra, um cara do mal mesmo.  Ele sim deveria ser banido de tudo quanto é comida, ele sim está em tudo, até na rapadura, você acredita? Tem cabimento rapadura ter gosto salgado?

– Jura? Como você sabe? Pergunta espantada a pimenta.

– É só olhar na composição nutritiva, sei lá, naqueles escritos que vem em toda embalagem, pode conferir o nome do trapaceiro.

– Vê se volta, vai! Estou com saudade de brincar de esconde-esconde com você nas saladas, de me esparramar toda  na piscina de azeite que as crianças sempre faziam.

– É verdade, e elas sempre levavam bronca por isso. Eu adorava deslizar e fugir do pedaço de pão. Como era mesmo que eles falavam?  Puciare, puciare”! E por falar nisso, como vão nossos amigos , o azeite e o vinagre? Morro de rir quando lembro da briga que era pra caber todo mundo no galheteiro na hora de ir pra mesa. Se chegava algum tempero importado, um de nós tinha que sair, algumas vezes foi você, né, pimenta? Nunca era eu, até chegar essa novidade ridícula.

– Mas não me conformo com seu sumiço. São uns ingratos. Devem ter esquecido que você salva pessoas dos desmaios, que fica quietinho debaixo das línguas, que ajuda a cerveja a gelar mais depressa, quanta coisa diferente você faz.

– E as dores de garganta? Quando estou no meio de um gargarejo, quase morro afogado, jogam-me contra as paredes da boca no bochecho, sou sacolejado, cuspido na pia e não  reclamo de nada.

– Bom, sem contar as ofensas que você vem  aguentado há anos, né? Você não se incomoda de ficar atrás das portas? De ser comparado com gente apática, sem-graça?

– Nunca dei bola pra isso, pimenta. Até de grosso me chamam, você acredita?  Mas nada disso teria a menor importância se eu voltasse à mesa das refeições. E principalmente, voltasse pra você.  Ah! Pimentinha querida, me ajuda, nossa relação sempre foi tão ardente!!

– Ah! Sal, nem me fale! Sinto-me incompleta,  você  é minha vida, sem você tudo  fica  tão sem sal...



2 comentários:

  1. Muito bom, Vinha. Estava inspiradíssima! Adorei. Beijos

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  2. Ledice querida! Só agora vi seu comentário, obrigada!! Bjs.

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