ÀS VEZES FAZEMOS COISAS QUE ATÉ O DIABO DUVIDA - Oswaldo U. Lopes



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ÀS VEZES FAZEMOS COISAS QUE ATÉ O DIABO DUVIDA
Oswaldo U. Lopes

        Penso que a história que vou contar não é muito edificante, mas é verídica. Gente com quem converso sobre os fatos que aqui vão ser narrados, sobretudo as mulheres, acham que era caso de morte matada, direto. Bem vamos então apresentar as personagens de nossa história.



1. Eu, o autor das mal traçadas. Como já sabem os leitores, médico, formado pela FMUSP – Pinheiros em 1961, tendo ingressado no curso médico em 1956. Possuidor de vasta ficha corrida que pelo tamanho poderia forrar o túnel do Hospital das Clinicas.

    2. Dr. José Gonzalez, colega de turma, cirurgião vascular renomado, quieto, calado, caipira de Santo Anastácio, criado em Apucarana, companheiro de inúmeras aventuras e cirurgias, casado com a colega de turma Claudette. Passou um ano em Madison-Wisconsin ensinando caipires pros gringos.

    3. Prof. Luís Carlos Costa Gayotto. Médico formado em 1956 pela mesma FMUSP, cirurgião, hepatologista conceituadíssimo, Professor Titular de Patologia da FMUSP, Diretor do Inst. Med. Trop. (1989-1994). Presidente da International Association for the Study of the Liver (1990-1992) que infelizmente nos deixou precocemente em 2004. Talvez o melhor resumo de sua vida tenha sido feito na edição da Revista Annals of Hepatology em 2004 por ocasião de sua morte:

Gayotto was a máster in the art of making friends.

        Eu e o José poderíamos falar de cátedra de nossa amizade por ele e com ele. A mim, particularmente, inúmeras vezes segurou na minha mão em momentos cruciais na vida e na profissão.

        Como já expliquei em matéria de besteira eu e o José éramos formados e doutores. Teve uma vez que numa colônia de férias em Itanhaém resolvemos na hora de dormir começar a cantar uma música muito simples na qual os versos são repetidos até um famoso “Bum-bum”, e aí tudo recomeça:

Olha a mulher do compadre Valdomiro,
Olha a mulher do compadre Valdomiro,
Olha a mulher do compadre Valdomiro,
Olha a mulher do compadre Valdomiro,
Bum – bum
Olha...”

        Tudo muito simples e bem pausado, é pena que na escrita não se possa transmitir toda a emoção que as músicas contem. Bem, cantamos a dita cuja até umas três horas da madrugada, sempre atentos ao tom monocórdico e repetitivo.

        Quiseram por nossas cabeças a prêmio, desnecessário, os demais membros da colônia teriam nos matado e ainda pagariam para fazer isso.
        Bem, voltando ao gélido vacum, éramos muito amigos do Gayotto. Eu devia-lhe muito e já estivera com ele em diversas ocasiões e até ajudei na montagem do motor de um carro checoslovaco que ele tinha, um possante Tatra. Um dos carros mais bonitos e eficientes produzidos na cortina de ferro. Aprendi muito de mecânica, montando o motor do Tatra desde o virabrequim apoiado num cavalete.

        Isso dá só uma pálida ideia do que fazíamos e o modo como corria nossa amizade. Por esse tempo Gayotto resolveu se casar e para tanto tinha um apartamento na Oscar Freire e como todo recém-formado caixa baixo.

        Eu e o José topamos pintar o tal apartamento e até que fizemos um servicinho bem feito. Não era difícil a Rua Oscar Freire e bem perto da Faculdade de Medicina e nas horas vagas um de nós ia lá e tacava a mão na brocha e nos pincéis. Lembro-me que na sala, Maria Leonor, a noiva, queria uma parede cinza e outra cor-de-rosa um pouco mais encorpado. Era para combinar com uma peça que eles tinham que misturava essas duas cores com iluminação. A coisa ficou deslumbrante.

        Agradecidos, os noivos, logo após voltarem da lua-de-mel, resolveram nos homenagear com um jantar, o primeiro que ofereciam, a exceção dos próprios pais. Corria o ano de 1958. Lá fomos o José com a Claudette e eu com minha irmã, Leonor que era conhecida e amiga do casal.

        O jantar foi de gala. Maria Leonor havia convidado uma tia high-Society para ajudar. Começou com uma sopa que se não falha a memória era um creme de aspargos, seguido de um maravilhoso peixe e de sobremesa um bolo delicioso gelado, seguido de café.

        O clima corria festivo quando, a um sinal eu e o José sacamos do bolso um maravilhoso sanduíche de salame (não consegui encontrar mortadela) e o devoramos tranquilamente. Maria Leonor reagiu bem, a tia olhava mortificada e incrédula, mas Gayotto nos teria matado e esquartejado ali mesmo. Entendo a reação “mulher amada” é uma coisa muito forte.

         Nesse momento chegou meio de surpresa o Luís Paulo Salomão, colega, quinto-anista e também muito amigo de todos. Foi imediatamente despachado para comprar leite e mais pão para os famintos. Aos vinte anos não nos fizemos de rogados traçamos o leite e mais pão.

        Nosso feito passou a história. Anos depois, em 1961, eu e José fizemos uma visita ao Gayotto, que nestas alturas morava em Florianópolis onde gozava de enorme prestigio médico. Não foram poucos os amigos a quem nos apresentava como “aqueles do sanduíche”.

        Pois é Gayotto, passados tantos anos, às vezes fico pensando, à moda de Camões “Se lá no acento etéreo... Memória dessa vida se consente...” em pedir-lhe perdão, mas, aviso arrependimento, nenhum, sentimento de culpa, zero que me desculpem os maridos ofendidos, as mulheres tão amadas, mas a patranha foi boa ah! Isso foi. Nunca mais na vida comi um sanduiche tão doce apesar do conteúdo salgado.


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