A carona - Ises A. Abrahamsohn



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A carona  
Ises A. Abrahamsohn

Tarcísio abraçou a mãe e fez que não viu as lágrimas. Ela ainda desfiava toda a série de recomendações enquanto ele já escapulia pelo alpendre da tosca casa na direção da estrada. 

Tinha que sair daquele buraco. Era a única maneira de progredir.

Aquele fim de mundo no interior de Goiás não era para ele. Andou rápido pela estradinha rural carregando apenas uma mochila com duas mudas de roupa, um colchonete enrolado, alguma comida e água.  Na cintura um dinheirinho que juntou trabalhando na colheita. Por onde a vista alcançava, as plantações de arroz. Arroz de seca,  já maduro, pronto para colher.  Mas esse ano ele não ficaria para a colheita. A mãe e o tio tentaram demove-lo, porém sem sucesso.  Queria ir para Goiânia e de lá para São Paulo. Aquela vida de meeiro não era para ele. Sabia-se inteligente, tinha o primeiro grau completo e sabia fazer conta de cabeça. Nem que tivesse que trabalhar no começo carregando tijolo, o rapaz queria mesmo era melhorar de vida. A mãe queria vê-lo casado com a Suzana, filha do dono do armazém, que era caidinha por ele.

̶  Bom partido, aconselhava a mãe. Você ficará sócio do armazém, completava. Aonde iria a garota, até que bonitinha, arrumar um rapagão daqueles para marido?  

E era mesmo um bonito rapaz. Alto, musculoso, cabelos castanhos e olhos claros, herança do avô paterno que viera do interior de Pernambuco.

Tarcísio caminhava pela estrada sem muita esperança de arrumar por ali carona para Goiânia. Apenas trânsito local; vez por outra passava algum veículo das fazendas vizinhas. Queria chegar à cidadezinha mais próxima onde conseguiria transporte para alguma cidade maior. 

Já tinha caminhado cerca de meia hora quando viu o caminhão se aproximando. Era  meio velho, mas de bom tamanho.  Não devia ser dos arredores e com a carroceria coberta de lona deve ter carregado com arroz, pensou ao levantar o braço. Perguntou o destino. Até Firminópolis, mas vamos dormir perto de Iporá avisou o motorista.  Tarcísio  respondeu que era o que lhe convinha, iria com ele até o destino final.  De lá seria fácil  arrumar outra carona para chegar à capital. Ajeitou a mochila aos pés no espaço entre duas  mochilas estufadas e uma caixa de isopor. Entabulou conversa com o motorista. Este não era de muito falar, mas não era rude.  Ofereceu água fresca  guardada na caixa do isopor.  Chamava-se  Cícero e tinha um pequeno armazém onde venderia o arroz que trazia como carga. Comprava diretamente da fábrica que beneficiava o arroz. A granel, o mais barato, de mistura com grãos quebrados. A sua freguesia não se importava muito, queria arroz barato. Ele mesmo  pesava e ensacava no armazém.

Só depois de terem viajado umas quatro horas o rapaz percebeu que havia outra pessoa no veículo.  No espaço entre a cabine e a carroceria havia um vão de cerca de um metro de largura  coberto por lona que tinha sido adaptado pra transporte de alguma carga especial ou de animal ou pessoa.  No caso era uma pessoa.  O rapaz ouviu vigorosas batidas vindas da parte de trás da cabina e perguntou ao motorista. Foi informado que era a filha que tinha acordado de algumas horas de sono. A moça de dezesseis anos viajava com ele de volta da visita à madrinha moradora numa das fazendolas  de arroz. As mochilas e o isopor foram para trás e a garota se instalou entre o pai e o rapaz. O que o pai tinha de sisudo era compensado  pela filha que falava pelos cotovelos. Celestina não era especialmente bonita, tinha a pele muito branca, cabelos crespos arruivados amarrados na nuca por um lenço verde. O mesmo verde dos olhos, intenso, inacreditável. Olhos que  alumiavam o rosto pálido quando entusiasmada falava de seus planos. Tocava sanfona e queria se tornar uma sanfoneira igual aos grandes, esses que via pela televisão tocarem em shows e festas de peão.  A tia que a criava desde pequena a incentivava, mas o pai  segurava.

 ̶  Ainda é muito nova para se apresentar por aí, comentou o pai que não gostava desse tipo de conversa.

O rapaz ouvia calado a menina que não parava de desfiar parolices. Ambição grande a  dessa moça, maior que a sua e tão diferente das garotas que conhecia.

Ao escurecer o caminhoneiro estacionou atrás de um encarquilhado posto de beira de estrada. À primeira vista parecia abandonado, porém Cícero explicou que ali era seguro, e os deixavam dormir no caminhão sem ter que pagar hospedagem. Pagava apenas o uso do chuveiro e banheiro. O dono e sua mulher moravam ali mesmo e sempre havia alguma comida quente e café com pão pela manhã.

Banho tomado e com a barriga cheia da comida caseira da dona Jacinta, Tarcísio perguntou a Cícero se podia dormir ali mesmo perto do caminhão. Assim poderia economizar o preço da dormida na cama do posto. Dito e feito. Desenrolou o colchonete e a mantinha de algodão, abraçou a mochila e adormeceu.

Acordou algumas horas depois com a moça que lhe alumiava a cara com um farolete e falava em seu ouvido. Ficou de olhos fechados, fingia dormir enquanto Celestina lhe pedia e suplicava para que fugissem. Que a levasse embora. Pegariam carona com algum caminhão na estrada, quando o pai acordasse já estariam longe. Está louca, pensou Tarcísio. Não vou cair nessa.

̶  Vá embora, menina. Não me aguento sozinho, imagine se vou carregar você por aí! Ainda é de menor, já viu a confusão!

Mas a garota não arredava pé. Ao contrário e para desespero do rapaz, encostou-se de corpo inteiro e começou a acariciar-lhe o peito por baixo da camisa.

Tarcísio sentia os mamilos duros da menina contra o seu lado e uma perna se enroscando na sua.  ̶  Caramba, você é magrinha, mas é bem fornida, suspirou com a mão já apalpando as coxas de Celestina. Não foi além...

A luz forte e o vozeirão do caminhoneiro interromperam a ação. Ouviu um “Fora daqui, irado”  e viu brilhar o cano de um revólver.

Levantou-se e ainda arriscou uma desculpa:

̶   Foi ela que veio pra cima de mim.

̶  Pegue suas coisas e suma, senão vai bala, ameaçou o pai. E me pague o que deve pelo transporte. As duas notas de cinquenta que vi na carteira tá bom.

Tarcísio ainda tentou pechinchar, mas o homem se aproximou com uma mão estendida para o dinheiro e o revolver na outra.

Cícero embolsou as duas notas e disse:

̶  Agora pegue sua tralha e suma. O rapaz saiu tropeçando no escuro na direção do posto totalmente às escuras. Ouviu o motor do caminhão e os faróis alcançando a estrada. Ainda tremendo encostou-se à  parede enquanto pensava que teve sorte de ter guardado a maior parte do dinheiro na bolsinha de cintura que a mãe tinha costurado. Acordou com o canto do galo mirrado e o ciscar das galinhas no chão seco.

Quando sentiu o cheiro de café bateu à porta de D. Jacinta.

Não precisou contar o que tinha acontecido.

̶  É o pai junto com a filha. Conseguem sempre alguma grana. Eu tentei avisar. Ofereci duas vezes pra você dormir aqui na pensão, mas você tava  abobado pela moça. Não percebeu. A gente não tem como recusar dele parar o caminhão no campinho de trás do posto porque ele tem um revolver.

Os dois dão golpe aqui uma vez por mês, mas também vão para outras estradas. A garota serve para o caso de alguém dar queixa. O pai alegou na delegacia que o queixoso tentava estuprar a filha. Pelo menos foi isso que ouvi dizer de um coitado que foi vítima e  levou horas até convencer os policiais de sua inocência. O Cícero saiu logo liberado e ainda deu uma banana para o cara.

Ao tomar o café, Tarcisio se lembrou da tímida Suzana. Nem chegara à cidade grande e já aprendera que garotas, mesmo chamadas Celestinas, nada tinham de celestiais.

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