PÉHUM - Mario Augusto Machado Pinto - CONTO DE FÉRIAS 4



PÉHUM.
Mario Augusto Machado Pinto

Na minha família todo aniversariante tem três certezas: festa em família, bolo com velas e pelo menos um presente.

Era dia do meu: completava dez anos e mais uma vez pensava positivo sobre o que queria de presente dos meus pais. Quase espremia meus miolos de tanta força mental que fazia sempre que me lembrava. Que seja desta vez! Que seja!

Hora de cortar o bolo, cantar o “Parabéns pra você”, servir e agradecer as pessoas por terem vindo, beijar vovó e vovô, olhar meus pais com ar interrogativo, aguardar a surpresa. Que seja desta vez! Que seja!

Meus pais me chamaram pra perto deles e me deram um embrulho pesadinho.

- Não balança. Só abre!

Pousei o embrulho na mesa, rasguei o papel que o envolvia e fiquei olhando a caixa com um furo: Chegou!  Chegou! É ele! Pensava quase que extasiado.

O pessoal gritava Abre! Abre! Olhei meus pais, sinalizaram que sim e abri: lá estava ele, o meu tão pedido, sonhado e querido cachorrinho. Meus dedos tremiam ao tocá-lo.  Cabia em minhas duas mãos em concha de tão pequeno, era mesmo muito pequenininho.

- É todo seu, um Labrador. A começar d´agora é sua total responsabilidade relativa a ele, em tudo. Lembre-se disso. Vamos, escolha um nome.

Esse era o preço a pagar pelo presente. Peguei o bichinho, levantei-o acima da minha cabeça. Era muito fofo, de pelos cor de mel, macios e enquanto pensava num nome examinava seu corpo.

- Vejam a estrela no pé! Um...

Foi impossível dizer mais alguma coisa.  É Péhum. É Péhum.

- O que?

-O nome dele! É Péhum, Péhum! -  gritavam.

E assim ficou sendo.

Passou a ser meu companheiro constante de brincadeiras, de risos e de quando eu chorava ele gania baixinho ao meu lado esfregando a cabeça no meu corpo. Quando eu ria, pulava e lambia minhas mãos.

Se eu ralhava ele se afastava. Depois vinha devagarzinho pra bem perto abanando o rabo e me olhava como dizendo tudo bem? Era impossível. Quem resistiria? Eu? Não. E saiamos a correr.

Sempre juntos, era inevitável acabar dormindo na minha cama. O interessante é que colocava sua cabeça junto aos meus pés descalços, dava umas duas lambidas e pegava no sono. Esse aconchego evoluiu para mordidinhas no dedão do meu pé direito.  Era desagradável por que além de molhar a meia ficava perturbando meu sono. Ademais, porque tinha que fazer isso? Era muito chato.

Dormindo descoberto, não adiantavam os chutes que eu dava: largava do pé, voltava a mordiscar; eu chutava, largava do pé, voltava. Não era possível continuar. Dando tratos à bola, lembrei dias depois das meias de fenda única que os japoneses usam com as chinelas. Numa das meias fiz a tal fenda, estiquei o tecido e costurei. Ficou uma aberração, mas funcionou. Péhum passou a mordiscar o dedão de pano e eu a dormir melhor. Costurei várias meias.

Estudamos juntos. Ele me acompanhava ao colégio. Era perto de casa. Dava para ir a pé. Os funcionários da portaria cuidavam dele até a hora do fim das aulas. Quando fiz cursinho foi difícil, mas minha mãe ajudou tomando conta. O problema surgiu quando fui aprovado no vestibular para Filosofia na PUC de Campinas. Como ia ser?

Meu avô solucionou:

- Você vai morar no sitio. Tem tudo lá, inclusive empregados, você sabe. Vai de carro pra PUC. É perto. Não tem erro. Se quiser tem o Josué, motorista do caminhão. É só não filosofar quando guiar. Pronto! E nós vamos te visitar nos fins de semana. Avisa quando não, malandrinho!
Quando meu avô mandava ninguém era louco de dar palpite contrário.

Assim fizemos. Péhum ia meio espremido, acomodado no porta-malas da peruinha. Foi adotado pela família de um jardineiro do campus de modo que eu ficava sossegado. Por causa dele ganhei o apelido “Pdois”.

Morava no sítio. Os dias, os anos passavam, eu estudava, dava aulas, ele se divertia e me acompanhava até junto das namoradas que aceitava. Pras outras, latia. A idade o estava tornando egoísta me obrigando a chamar sua atenção. Obedecia sem convicção e logo a seguir repetia o que considerava certo.

Outro dia, dormitando no terraço, vi quando perdeu o equilíbrio, rolou e caiu ao descer os últimos degraus da escada que fiz para ele subir e se acomodar no deque colocado na forquilha da “nossa figueira”. Chamei por ele, mas não veio. Afastou-se. Estava mancando. Só veio quando ficou melhor, mas mesmo assim mancava um pouco. Olhei pra ele durante algum tempo, acarinhei sua cabeça e vi seu focinho. Com espanto notei o que nunca havia reparado: estava com a pelagem toda branca e me dei conta da idade que tinha: quinze anos! Quinze anos de amizade verdadeira, desinteressada, só de bem-querer. Pra ele eu era tudo de uma vida toda.

Ontem, enquanto dormitava na cadeira de balanço do terraço, Péhum chegou perto dos meus pés e devagarinho puxou minha calça. Eu não queria sair para andar; delicadamente insistiu até que me levantei e perguntei o que queria. Olhou pra mim e lentamente andou à minha frente em direção à figueira. Ali, deitou-se mordendo o pano da minha calça. Sentei-me ao seu lado. Colocou sua cabeça junto ao meu pé direito e mordia o tênis. Queria mordiscar o dedão. Não tem jeito. Que seja. Tirei o tênis, espichei a meia, coloquei o pé perto do focinho e ele começou a mordiscar, suave e lentamente até dormir tendo sua cabeça apoiada às minhas pernas.

Dormiu e eu perdi o melhor amigo da minha vida. 

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