A
cultura japonesa
Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho
A Sra. Naomi morava sozinha desde que seu
marido, Sr. Akira, morrera de aneurisma cerebral aos 87 anos. Seus filhos não
se opuseram, uma vez que o
isolamento social é muito comum na cultura japonesa e existe até um nome
específico para as pessoas que preferem se isolar em casa: hikikomori.
O
casal havia se conhecido na montadora Toyota, mais especificamente na linha de
montagem de painel do modelo Corolla. Ele era gerente da área e ela acabara de
ser promovida como supervisora daquela divisão. Ambos se formaram em engenharia
mecânica e tinham nascido na capital, Tóquio.
A Sra.
Naomi, uma típica japonesa no alto de seus 78 anos, apesar de ter apenas 1.53cm
de altura, é muito reservada e calada e está habituada a passar a maioria de
seu tempo em silêncio, pois cultiva o hábito de
respeitar os outros e contribuir para um ambiente mais harmonioso.
Aos
domingos, vai sempre almoçar na casa da filha Ayumi, casada com um
alto executivo da Panasonic, para
ver a família, sem nunca deixar de levar um “omiyage” – um presente – que é a forma que eles encontram de
demonstrar respeito e fortalecer os laços.
Seu outro
filho, Yuri, mora no Brasil já há 4 anos, desde que se casou com uma nissei,
Kira, que conheceu quando houve aquela febre de brasileiros que iam para o
Japão, trabalhar em fábricas, para juntar dinheiro e ajudar suas famílias.
Em um desses
domingos, como de costume, a Sra. Naomi aguarda o relógio dar 11:45h, coloca
sua máscara facial, pois se preocupa com
a saúde coletiva e acredita que esse seu gesto de cortesia evita a propagação
de germes, parte para a casa de
sua filha, que fica a uns 15 minutos a pé da sua. O outono já acusa que está se
despedindo porque as árvores com aquelas folhas lindas, coloridas de vermelho,
vinho, cobre, amarelo e verde quase não podem mais ser vistas e um vento frio
sopra pelas ruas, indicando que o inverno pode ser rigoroso neste ano.
De repente,
seu celular toca e, pelo visor, percebe que é uma chamada do Brasil, porém de
um número desconhecido. Ao atender, a pessoa começa a falar em um inglês
precário que ela tem muita dificuldade para compreender, mas consegue ouvir com
nitidez as palavras Yuri e Kira. Como já está próxima da casa da filha, apressa
o passo para chegar mais rápido, sem se dar conta de que chegará um pouco antes
do meio-dia, que é horário pontual combinado.
Um pouco
ofegante por andar depressa, ela chega à casa, cumprimenta a todos com a famosa
inclinação de cabeça, chamada “ojigi” e, na primeira
oportunidade, conta à filha sobre o telefonema recebido. Ayumi, então, pega o
aparelho da mãe e faz uma pesquisa para tentar descobrir de onde é o número do
telefone. Infelizmente, sem sucesso.
Sem compreender o que está
acontecendo, a Sra. Naomi pega seu celular de volta e diz que vai ligar para
Yuri para saber, de fato, o que se sucedeu. Faz a ligação, mas após tocar
várias vezes, acaba caindo na caixa postal. Ayumi, então, tem a ideia de ligar
para o número de sua cunhada, Kira, e quem atende é uma voz de homem, falando
naquele inglês “macarrônico”. Como está na viva-voz, a Sra. Naomi, de imediato,
confirma que é a mesma pessoa que havia lhe telefonado um pouco antes. A filha,
então, cancela o viva-voz para poder conversar com mais privacidade com o tal
indivíduo.
A mãe, observando sua filha,
nota que ela está pálida e que esta acaba por se sentar no tatame. A conversa
se estende e vai ficando mais tensa, e o inglês falado cada vez mais rápido.
Uma hora, a Sra. Naomi percebe que Ayumi está fornecendo seu e-mail e seu
número de celular particular e, de repente, sem mais nem menos, ela desliga o
aparelho.
Por alguns instantes, que
pareceram horas, há um silêncio no ambiente, até que a filha, finalmente,
coloca a mãe a par da situação. Yuri e sua mulher Kira estavam em apuros porque
tinham pedido um empréstimo na colônia japonesa e só depois descobriram que se
tratavam de agiotas ligados à máfia do Japão. O prazo dado para o pagamento já
havia sido adiado por duas vezes e o casal tinha até 3ª feira para quitar a
dívida. Como garantia, o rapaz havia sido pego como refém.
Nesse momento, entra uma
videochamada no celular de Ayumi e surge na tela seu irmão, com um grande
hematoma do lado esquerdo da testa, pedindo para que a família os ajudasse.
Tinham pedido um empréstimo bancário, mas a burocracia emperrou o negócio e
eles não queriam perder a oportunidade de dar entrada no imóvel de seus sonhos
pelo preço oferecido. Então, um amigo disse que tinha um conhecido que
emprestava dinheiro e, como contavam com o pagamento de seu maior cliente para
reembolsá-los, acabaram aceitando a oferta, uma vez que os juros exorbitantes
seriam por apenas 1 mês. Entretanto, o tal do maior cliente acabou por não os
pagar porque faliu, a dívida foi só aumentando e eles acabaram nessa situação.
A Sra. Naomi então, já
tranquila, pede os dados dos agiotas, faz a transferência bancária,
certifica-se de que seu filho fora solto e com toda a calma peculiar do
oriental diz para a filha:
— Ayumi, toda essa
adrenalina abriu meu apetite. Podemos almoçar?
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