Marlene, a ceguinha vencedora.
Fernando Braga
Hoje, dia 9 de maio de 2023, com meus
87anos, estou iniciando mais uma história interessante, verdadeira, real.
Transcorria o ano de 1963, era
quinta-feira da Semana Santa e decidi viajar para S.J. do Rio Preto, visitar
meus pais e irmãos.
Lá, tínhamos, há vários anos, uma
excelente empregada doméstica, a Bety, que há 6 anos se casara com um caminhoneiro,
o Cido.
Após um ano nascera a Cidinha, e sua
mãe, pedira para que eu e minha irmã Lena, batizá-la.
Decorridos mais 5 anos, dera novamente
à luz outra criança, que infelizmente nascera com um sério problema ocular,
ou seja, Buftalmia (olhos de sapo), uma espécie de glaucoma primário congênito,
que pode levar à cegueira e que necessita tratamento cirúrgico imediato.
Os pais desta criança, aguardavam
ansiosamente a minha chegada e de imediato, tive que ir ver a criança, ainda
internada no Hospital e Maternidade NS de Lourdes.
Após ver a criança, cujo aspecto ocular
impressionava, telefonei para a Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina
(EPM) em São Paulo e os médicos pediram que trouxesse a criança, de imediato.
No dia seguinte, Sexta-Feira Santa, por
volta das seis horas da manhã, após o preparo de meia dúzia de mamadeiras, eu e
uma tia de São Paulo, que estava hospedada em minha casa, pegamos a criança e
partimos para a capital. Após umas 5 horas de viagem de carro, fomos diretos
para o pronto-socorro da oftalmologia do Hosp. São Paulo e lá deixamos a
criança aos cuidados da enfermagem, para que fosse operada, no dia seguinte.
Realmente isto aconteceu, e a criança
teve alta após 10 dias em boas condições.
Seus olhinhos mostravam melhor aspecto,
embora ainda apresentasse exoftalmia. Os médicos me disseram que ela,
provavelmente, teria baixa visão!
Peguei a criança no Hospital e
com um grande amigo e parente, o Luiz Bertellini, após passarmos
rapidamente pela casa de minha namorada, a Sylvinha, hoje, há 60 anos, minha
querida esposa, seguimos o caminho de volta para o interior.
Luizinho, o tempo todo, tomou conta da
criança e lhe deu, aos poucos, várias mamadeiras, preparadas no Hospital.
Durante 20 anos, sempre que nos
encontrávamos, ele relembrava este fato, em seus mínimos detalhes. Esta
criancinha recebeu o nome de Marlene!
Meu pai, seu Zulmiro, compadecido com o
sofrimento dos pais e méritos da Bety, ótima empregada, comprou-lhes uma
pequena casa em um bairro recém-criado, a Vila Toninho. A empregada permaneceu outros dois anos em nossa casa, afastando-se, então, indo cuidar de suas
filhas, que tanto precisavam dela. O Cido redobrou seu trabalho como caminhoneiro.
Apenas muito ocasionalmente tive a
oportunidade de rever as duas crianças, a Cidinha, minha afilhada e a Marlene,
que realmente pouco enxergava, mas que parecia inteligente e viva.
Posteriormente, ela me comunicou que quando pequenina conseguia ver vultos,
movimentos e a claridade. Quando estava com uns quatro aninhos começou a ter
dores muito fortes nos globos oculares.
Nesta ocasião, seus pais levaram-na
para tratamento oftalmológico no famoso Instituto Penido Burnier em Campinas,
onde foi novamente operada. Ela diz ter feito duas operações nos olhinhos e
que, na última, os pontos das córneas tiveram deiscência, seguida por infecção,
o que a levou à cegueira total. Só
posteriormente, tive conhecimento destes fatos!
Com sete aninhos, a Bety me procurou
dizendo que a Marlene, embora cega, precisaria estudar, se alfabetizar, pois
era muito inteligente. Havia se informado, que o melhor lugar para tal, era
ficar internada no Instituto Pe. Chico, em São Paulo, pedindo encarecidamente,
que mais uma vez, os ajudassem.
Fui pessoalmente a este Instituto,
visitei-o e fiquei entusiasmado com a grandiosidade da Instituição!
Sendo um médico, já docente da EPM,
tive certa facilidade para conseguir internação da Marlene. Mais uma vez viajei
para Rio Preto, trazendo-a para a capital, desta vez com os seus pais. Eu e
Sylvinha, já estávamos casados, e ela, encarregou-se totalmente e com
entusiasmo, de preparar um enxovalzinho para Marlene, que ficaria internada,
até sua formatura do ginásio.
Realmente, Marlene ficou neste Instituto
até os 16 anos, onde aprendeu a ler e escrever em Braile, fazendo todas as
matérias componentes do curso primário e ginasial. Era inteligente! Seus pais
vinham com pequena frequência visitá-la e sempre no caminhão do Cido, que
rarissimamente veio à nossa casa, para nos visitar.
Sua irmã Cidinha, nossa afilhada,
mudou-se para São Paulo, e bem bonitinha, logo se casou.
Marlene, após sair do Instituto como
interna, continuou frequentando-o, estudando, morando uma temporada com sua
irmã.
Aos 18 anos, casou-se com um colega do Pe. Chico, igualmente
cego. Vieram me procurar, em minha casa,
para que eu fosse o fiador do aluguel, em um apto pequeno, em um bairro
distante.
Consegui um emprego para ela no
serviço de Radiologia do Hosp. São Paulo (HSP), na câmara escura, onde
revelava, fixava e secava os filmes dos exames radiológicos efetuados.
Eu fazia Neurocirurgia como
especialidade. Quando eu ia ao RX para fazer um Pneumo-encéfalo ou uma
Angiografia cerebral, ela ouvia ao longe minha voz, vinha correndo me
encontrar, perguntado a todos, onde eu estava. Sua audição era super!
Trabalhou por 19 anos no Hospital São
Paulo!
Tiveram três filhos, duas mulheres e um
homem e evidentemente, sem qualquer déficit visual.
Anos após, com o progresso e compra de
máquinas que revelavam os filmes, ela foi dispensada do HSP.
Procurei então colegas que trabalhavam
no Laboratório Fleury e lá consegui novo emprego para a Marlene, onde
permaneceu por 8 anos.
Conseguiu, dada sua cegueira, uma
aposentadoria precoce, após 22 anos de trabalho, que a permitiu estudar e criar
seus três filhos.
Muito ativa e inteligente, conseguiu
fazer um curso universitário e tornar-se uma psicóloga, atendendo seus próprios
pacientes.
Perdi totalmente o contato com a
Marlene! Que, não mais nos procurou para qualquer ajuda. O mesmo com sua irmã
Cidinha, ou seus pais, que deveriam continuar morando na Vila Toninho, em São
José do Rio Preto.
Certa manhã, abril de 2023, estava eu
sentado no sofá da sala de visita, lendo o jornal, quando o telefone fixo
tocou. Nossa empregada atendeu e passou-o para minha esposa, que se aproximou e
disse: - É para você, e é a Marlene!
— Que Marlene, retruquei!
— A ceguinha! Lembra?
— Depois de tantos anos? Que será que
ela quer!
Atendi o telefone e ela disse:
— Que bom que o senhor ainda mantém o
mesmo telefone fixo! Sonhei com o senhor e com dona Sylvia e resolvi telefonar a vocês, saber como estão de saúde, assim como seus filhos!
— Gostaria imensamente de lhes fazer uma
visita.
— Estou fazendo 60 anos e faz 30, que
nunca mais nos vimos.
Após lhe dar nosso novo endereço,
convidei-a para almoçar conosco, vir inclusive com seu marido e trazer, se
possível, também sua irmã, a Cidinha.
Ela imediatamente aceitou, mas não
prometeu que seu marido atual e sua irmã viessem juntos! Combinamos que viesse
à nossa casa no dia seguinte, uma sexta-feira.
Comentou que havia trocado de marido,
pois o antigo era ¨bon vivant¨, não queria trabalhar e ela tinha que
sustentá-lo. Casara-se com outro cego e estava muito feliz!
Chegou em nosso condomínio por volta das 11 horas.
Após se anunciar, fui buscá-la na
entrada e a trouxe para
dentro de nossa casa. Conseguira
vir de longe, de um bairro bem distante onde morava, tomando no início um
Metrô, depois dois ônibus e andando longa distância, sempre se utilizando de
uma vareta comprida de metal, própria dos cegos!
Ficou extremamente contente em nos
encontrar, abraçou e beijou minha esposa e sentamo-nos no sofá da sala. Muito
alegre e sempre sorrindo, nos contou sua vida, seu trabalho como psicóloga,
atendendo seus pacientes em uma pequena sala, alugada, próxima do pequeno
apartamento onde viviam. Esta mesma sala, seu marido utilizava para fazer
massoterapia, quando aparecia algum paciente. Seus três filhos haviam estudado
e não davam mais trabalho, vivendo por conta própria. Ela confessou que vivia
bem e feliz. Era bem religiosa, frequentando semanalmente a igreja católica.
Disse ainda que estava terminando um livro que havia escrito em braile e que
pretendia publicá-lo. Perguntou se nós
não tínhamos um pequeno gravador de som, que ela pudesse usar para gravar sua
fala, traduzindo o livro do braile para o português. Compramos-lhe um gravador
pequeno pela Internet, que seria entregue em sua casa. Eu lhe disse poder rever o que fosse escrito e se estivesse bom, entregar em uma Editora, ficando
responsável pelas despesas. Ela ficou muito agradecida!
Sentamo-nos à mesa para almoçar, após
ela ter pedido para lavar as mãos.
Aceitou tomar um pouco de vinho, um refrigerante e comeu muito bem,
começando pela salada que foi colocada no seu prato. Para tal utilizou seus
dedinhos branquinhos, delicados para a alface, o garfo e a faca para o feijão e
arroz, carne e batata.
Nos disse que sua mãe, com 94
anos, continuava a morar na Vila Toninho, sendo que sua terceira irmã morava
junto, após seu pai, o Cido ter morrido há um ano de Covid, assim como o marido
de sua irmã. Me forneceu de cabeça, o endereço da casa de sua mãe.
Conversamos muito, ela se mostrando bem
interessada em tudo, com uma excelente memória.
Após o término do almoço e descanso de
mais uma hora, decidiu ir embora. Chamei um Uber, que paguei e ainda lhe dei
duzentos reais para eventual gasto. Disse estar muito, muito feliz em nos
encontrar novamente, que manteria contato. Desculpou-se de seu marido e da
Cidinha não poderem vir, pois estavam trabalhando.
Duas semanas após, tive que voltar a
S.J.do Rio Preto para negócios e decidi fazer uma visita para a Bety em Vila
Toninho. Entrando em Vila Toninho observei o grande crescimento que havia
ocorrido, agora com avenidas asfaltadas, centro próspero e movimentado. Facilmente localizei a rua e a casa onde Bety
morava. Fui recebido pela filha mais nova, que me conduziu à sala de estar onde
Bety estava deitada no sofá. Entrei na sala e Bety levantou a cabeça assustada,
perguntando:
— Quem é o senhor?
Sua filha imediatamente disse:
— É o Dr. Fernando, mãe, que veio
visitá-la.
Ela foi auxiliada para sentar-se e sentei-me a seu lado. Ela me abraçou e todos choramos! Fiquei comovido em ver a Bety, viva, após mais de 50 anos sem a rever. Aqui, uma das fotos que tiramos!
A Marlene logo ficou sabendo de minha visita e telefonou-me, agradecendo, o fato de ter ido ver sua mãe.
No dia 7 de março de 2024, após trocarmos vários WhatsApp, combinamos com Marlene, que viesse nos ver e almoçar conosco, novamente!
Desta vez, o seu marido a acompanhou. Fui
buscá-los na portaria e subimos para o nosso apartamento. Lá estava a Sylvinha
e também nossa cozinheira, a Marlucci.
Ela fez imediatamente a apresentação de seu marido, o Gerson, um rapaz
de 50 anos, bem-apanhado, fisicamente forte, mas amaurótico, com ambas as
córneas ausentes, sem as pupilas oculares.
Após uma conversa geral, nos contou o
seu drama, em que, com apenas 7 anos, brincando com seu irmão de 11, de bandido
e mocinho, como nos filmes de faroeste, o irmão disparou um tiro de
cartucheira, de seu pai, em sua face, atingindo-lhe ambos os olhos. Levado às pressas para o Hospital passando
mal, não morreu, mas perdendo totalmente a visão. Apesar desta tragédia provocada
por seu irmão, acentuou, enfatizou, que não colocou qualquer culpa nele, e nem
guardou qualquer mágoa. Disse que em seu cérebro, tem ainda vários chumbinhos.
Disse trabalhar muito, fazendo
massagens corporais, a massoterapia, indo 3 vezes por semana a São Bernardo do
Campo, onde em uma clínica faz o seu trabalho, com bom desempenho. Pretendem
eles, marido e mulher, alugar um espaço maior, onde ele pode trabalhar,
alternadamente, com Marlene, ela atendendo seus casos de psicologia e ele
fazendo as massagens.
Não me pediram nenhuma ajuda, o que me surpreendeu um pouco, pois eu certamente iria ajudá-los. Ela me falou de sua irmã, a Cidinha, minha afilhada muito devotada ao trabalho, continua casada, mas sem filhos. Tem ela agora 65 anos!
A Marlucci, nos serviu um almoço
caprichado, com uma bela salada de legumes, feijão, arroz, seu frango frito e
batatas cozidas. Nos alimentamos bem,
eles principalmente. Na sobremesa, o manjar branco com calda de ameixa-preta e
creme de leite. Bebemos juntos uma
garrafa de vinho português, do Além-Tejo.
Após umas duas horas prepararam-se para
nos deixar. Eu ia ajudá-los com um
Uber, mas negaram minha ajuda, dizendo que tinham tempo e iriam de ônibus e
depois pegariam um trem! Dei a ela duas
notas de 100, colocando-as em seu bolsinho da blusa!
Não se esqueceu de agradecer novamente
minha ida à casa de sua mãe na Vila Toninho em S.J. do Rio Preto!
Todas as semanas, recebemos WhatsApp de
Marlene, sempre em áudios animados, é evidente! Uma vozinha muito delicada!
Desta vez, nada comentou de seu livro!
Vamos ver o que falará em futuro breve.
Foi realmente uma bela manhã e começo de tarde!
Todos os que lerem este conto,
espero que entendam minha mensagem.
Trata-se de um caso com grande participação
que tive desde o começo, 65 anos atrás, quando eu tinha apenas 23 anos e estava
no quinto ano de Medicina.
Voltei, aos 87, a participar
novamente. Isto é raro acontecer.
Me fez recordar, com vivacidade,
quando era ainda bem jovem, começando a Medicina, lembrar de minha mãe querida,
de meu pai, também muito, muito querido, da Bety, nossa jovem empregada, da
Cidinha, nossa afilhada, e da Marlene! As mamadeiras dadas pelo meu grande
amigo Luizinho Bertelline, que nunca se esqueceu deste fato, relembrando-o por
muitos anos, sempre que nos encontrávamos.
Marlene, uma ceguinha! Uma vencedora!
Vencedora em todos os sentidos, desde
que começou seus estudos no Padre Chico, em seu aprendizado, o domínio do
Braile. Seus 18 anos, indo diariamente
ao Hospital São Paulo trabalhando na Câmara escura da Radiologia e mais 8 no
Laboratório Fleury. Chegou ao curso superior, onde se formou como Psicóloga,
pagando por seus estudos.
Formou uma linda família, com um
filho e duas filhas, íntegros também, vencedores, certamente dado o” Exemplo” e
a ajuda da Mãe!
Para complementar e finalizar, quero
colocar esta última mensagem, que hoje recebi de Marlene:
— O tempo não desfaz laços de
afeto, não desfaz sentimentos verdadeiros, não apaga e nem ofusca o brilho de
um momento intenso. O tempo não quebra o encanto de um belo sorriso, não
destrói uma história linda, regada de sensações inexplicáveis e nem faz com que
a distância cause esquecimento.
O tempo, isto, sim, conduz o curso da
vida com uma mão forte, nos ensinando e nos amadurecendo. Com o tempo fazemos
as nossas escolhas com mais experiência, deixando de lado a inquietude e
insegurança.
No tempo, o ontem já passou e não volta
jamais, o amanhã, não nos pertence, mas o hoje, o agora, existe para podermos aproveitar muito e fazer cada momento de a vida valer a pena!
Sem dúvida, ela criou uma
espiritualidade!
Esperamos por seu livro!
Dr.
Fernando Menezes Braga
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