" Sentei-me ao
computador para escrever sobre esse dia tão especial, calou-se a voz. Faltou-me
talento ou o tema é por demais complexo. Como descrever em poucas páginas,
sentimentos e pensamentos de uma vida inteira, anos e anos lado a lado, muito
recebendo e pouco retribuindo. Bem, o que a mim faltou, sobrou no poeta
Vinicius de Moraes. Que a voz dele então fale por mim ou por nós, homens perdidos,
sofridos num dia como este que não é um dia especial porque ele se repete 365
vezes por ano. Nos bissextos, como o atual repete-se um dia a mais. Fala,
Vinicius, e que se ainda sobrar piedade ao Senhor que ela a tenha também por
mim." - Oswaldo U. Lopes
O
DESESPERO DA PIEDADE
Vinicius de Moraes
Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis,
apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de
automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos,
na direção.
Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam
de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que
passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da
guilhotina
Tende muita piedade do mocinho franzino, três
cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada
pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte
colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para
a morte.
Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de
casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.
Não esqueçais também em vossa piedade os pobres
que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que
empobreceram
E tornam-se heroicos e à santa pobreza dão um ar
de grandeza.
Tende infinita piedade dos vendedores de
passarinhos
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a
incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos
vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe
onde vão...
Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos
cabeleireiros
Que se efeminam por profissão, mas são humildes
nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o
cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!
Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de
sapataria
Quem lembram madalenas arrependidas pedindo
piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.
Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos
de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.
Tende piedade dos homens públicos e em particular
dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança
dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados,
próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos
também.
E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha
piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das
mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das
mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das
mulheres!
Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta — que o homem não presta, não
presta, meu Deus!
Tende piedade das moças pequenas das ruas
transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da
Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.
Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.
Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.
Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de
nada.
Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas
vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são
infecundas
Mas que vendem barato muito instante de
esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo,
com o veneno.
Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes, mas que sempre entram
desgraçadas
Que se creem vestidas, mas que em verdade vivem nuas.
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e
serenidade.
Tende infinita piedade delas, Senhor, que são
puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.
Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.
Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede
enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de
mim!
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