O COLECIONADOR
Mario
Augusto Machado Pinto
Quando minha avó pergunta:
— Há tempo que Você não fala com seu avô?
Já sei que ele está triste com alguma
coisa. Hoje ela perguntou, e o resultado é que estamos juntos, vendo seus
álbuns de fotos submarinas do tempo em que participava da equipe pesquisadora –
Da Vida Submarina – patrocinada pela ONU que pedia ênfase sobre os habitantes
das muitas barreiras de coral pelos oceanos. Estão em uma impressionante
coleção de 26 volumes nomeados, enumerados, com índices, além de inúmeros
filmes, CDs e DVDs, revistas e recortes
de jornais que estamos colocando em ordem,.
— Esta
foto é de quando a pesquisa começou. Vê, é de nós quatro, a Paula, eu e os dois
fotógrafos prontos para mergulhar.
Eu mergulhava e fotografava o que me
interessava; era reserva dos fotógrafos; só isso. Ela eximia mergulhadora com
cursos teóricos e práticos feitos no exterior tendo vários anos de vivência nos
mais diferentes locais; doutora em Oceanografia pela França e Itália. Chegou a
desenvolver artefatos pra mergulho que hoje são de uso universal.
Olha! Aqui nós estamos na barreira de
corais da Austrália. Este volume é só desse único mergulho. Sabe? Em dois anos
em que não participei da pesquisa, Paula se apaixonou pelos golfinhos e arraias
de oito metros, gigantesca (cavalgava com elas), raríssimas, mas seu gosto
maior mesmo era pelos golfinhos: aceitavam sua presença, divertiam-se juntos, falava
com eles, corcoveavam quando alisados por ela. Isso era feito sem dar iscas: de
maneira nenhuma, falava. Era proibido.
Nesta foto está sendo rebocada segurando a
barbatana desse gigante! Era assim o tempo todo. Até parecia o tocador de
flauta Hamalin seguido pelos ratos só que era ela nadando seguida por verdadeiro
cardume. Repara só a formação tipo esquadrilha aérea e este bichão tranquilamente
ao lado com cinta fosforescente envolvendo o corpo (ela que colocou), até
parece que a protege. “Falava” com ele; é muito raro de ser encontrado. Notou
que o cardume é seguido por um tubarão branco que tem seis guelras em vez das
cinco comuns? Esse também é raro encontrar... Sabe, depois de dois dias da
nossa chegada ouvíamos o som longínquo das “vozes” das baleias dando as
boas-vindas. Essas coisas sempre me impressionavam.
— Vô, quem é nesta?
— Foi tirada por um
dos fotógrafos. Sou eu...
— Esse mergulhador é a Paula?
— É. Estou mexendo os braços e berrando no
interfone pra chamar a atenção dela.
— Por quê?
— Por causa do enorme tubarão nadando ali por
perto..
— E aí?...
— Demorou pra ela perceber estava sem som e sem a iluminação da lanterna da
filmadora fixada no capacete...Quando
percebeu, nadou rapidamente para o lado esquerdo pra fugir dele, mas foi
justamente pra onde estava o bichão, enorme, com mais de seis metros, já chegando
de boca aberta. Paula perdeu o bastão elétrico, ficou indefesa; nadou o mais
rápido que eu jamais vi, mas não deu tempo, não conseguiu escapar.
O menor mordeu seu braço esquerdo e a
cintura e o branco com a enorme bocarra aberta indo diretamente à cabeça da
Paula. Os dois puxaram-na às profundezas disputando pedaços do corpo da Paula, provocando
uma sangreira enorme, sumindo no embaçado da água... Foi horrível!
Fui atrás deles, mas os dois fotógrafos me
pegaram e me levaram pra cima, no barco. Fiquei num canto, largado, chorando
qual criança sentindo dor...
A tripulação arpoou o tubarão branco e
puxou-o à amurada do barco, cabeça enorme, duas fileiras de dentes, o beiço e o
interior da bocarra ainda com o sangue da Paula, olhar de raiva na cara pela
impotência em soltar-se.
— It is all yous, Sir, falou o capitão
dando-me o maior facão que já tive em minhas mãos.
Se usasse o facão a morte do bicho seria
rápida. Queria que sofresse; então disse ao capitão:
— Não vou matar. Pega dois arpões, amarra
corda neles, atravessa o corpo dele atrás do pescoço, prende as cordas nos
pontos de apoio, deixa ele afastado do barco preso com os arpões com corda.
Fazemos barulho, jogamos mais sangue na água e, quando aparecerem “os convidados
para o festim”, iniciamos voltas arrastando o bicho e apreciamos os
“convidados” comerem pedaço a pedaço.
Assim foi feito e aconteceu. Fiquei chorando,
apreciando o espetáculo até o fim.
Os fotógrafos filmaram tudo e cuidaram da
documentação para obter o Atestado de Óbito. Tenho uma cópia. Está naquele
envelope pardo, grande. Pode ler. Eu já volto.
Foi e enquanto, emocionado, eu lia o
documento, ouvi o choro sentido e contido do Vô.
— Tchau, Vô. Tchau, Vó. A gente se
fala. Saí correndo pra minha Vó não ver
minhas lágrimas...
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