Um acidente que mudou vidas - Ledice Pereira

 


Um acidente que mudou vidas

Ledice Pereira

 

A camionete parou bruscamente ao lado da cena do acidente. Era um sedan cinza capotado, todo retorcido, na faixa esquerda da rodovia. Bento saltou do veículo, precisava ajudar, e já pode ouvir os socos que retumbavam ao longe. Era um homem que, desesperadamente, tentava quebrar a janela do carro capotado. O suor escorria do rosto de Gregório, mas ele não esmorecia. Sua voz trépida gemia por socorro. E havia um choro incontido que não se sabia de onde vinha. Bento aproximou o rosto do vidro do para-brisa do veículo tombado e viu lá dentro uma criança aos berros, presa na cadeirinha do banco traseiro.  À frente, uma mulher desacordada. Viu o combustível traiçoeiro escorrer lentamente sob o veículo e encostar na sua bota:

— Vai explodir essa coisa! – Gritou. 

Correu até seu carro e, com a chave de rodas, estilhaçou o vidro do sedan.  Mas, a porta emperrada, não cedia.

— Meu Deus! Não consigo abrir essa porcaria! Me ajudem aqui! – Gritou num fôlego.

Vendo que o tempo era seu inimigo, ele, num ímpeto, se enfiou pelo vão da janela, atropelando-se pelo espaço apertado, e conseguiu liberar a criança do cinto de segurança. Percebeu uma nesga de fogo clarear na parte dianteira e se avantajar acintosamente pelo painel do automóvel.

— Pega aí!! – Gritou, Bento, colocando a criança nas mãos de Gregório.

Já ia sair, mas arriscou olhar para a mulher com a cabeça tombada ao volante. Tinha muito sangue escorrendo pelo couro cabeludo, mas surpreendeu-se com um discreto movimento de mão:

— Ela parece estar viva! Meu Deus! Examinou o comportamento do fogo, sabia que se expandiria a qualquer momento.

E Gregório, com o bebê nos braços, foi se distanciando do sedan, gritando:

— Sai daí, está pegando fogo, vai explodir! ...

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Antes disso...

Bento estava feliz. Depois de dois anos, conseguira finalmente tirar férias longas para poder com Laura, a mulher e Beatriz e Raul, os filhos de três e cinco anos, viajar sem rumo, explorando as belezas da natureza, parando aqui e ali, onde achassem que valia a pena. Para isso trouxera um cantil para cada um, sapatos confortáveis, boné, repelente, protetor solar. Estavam viajando há duas horas e meia quando viu aquele sedan rodopiando na estrada. Estancou no ato.

— Meu Deus! Será que o motorista dormiu ao volante – pensou, abrindo a porta do carro e correndo naquela direção sem nem pensar que o carro poderia explodir.
Precisava fazer alguma coisa.

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Bento nunca se esqueceu daquele fatídico dia:

A imagem vinha sempre em sua mente: após ajudar aquele homem, colocando a criança em seu colo a salvo, arrastou a mulher, imóvel, para longe. Tempo suficiente para ouvir a explosão: Pummm! Enquanto as labaredas engoliam o veículo sem dó.

Acionara o resgate para tentar salvar a desconhecida. O homem, com a criança no colo, estava em estado de choque.

A viagem de Bento e família, acabara ali. Aguardaram a chegada do Corpo de Bombeiros, da Polícia Rodoviária, acompanharam o homem para prestar depoimento, tentaram acalmar a criança que não parava de chorar. Enfim, só lhes coube voltar para casa, abortando a tão esperada viagem. Não havia clima para continuar, pelo menos não naquele dia e nos subsequentes.

Após alguns dias, passado o susto, realizou com a família a tão esperada viagem, tentando esquecer o ocorrido, fazendo com que as crianças tivessem contato com a natureza, apresentando-lhes a fauna e a flora brasileira. As crianças jamais esqueceram aquele aprendizado.

Meses após, Gregório o procurou. Precisava demonstrar seu agradecimento. Não fora Bento, não podia nem imaginar o que seria da mulher e da filhinha Mirtes de ano e meio.

Tornaram-se amigos. Gregório e Bento, Laura e Regiane, que após o acidente ficou com pequena deficiência motora. Como conseguiram provar que o acidente fora provocado por uma falha de fabricação, foram ressarcidos pelo fabricante.

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Vinte anos se passaram. Aquela amizade se solidificou. As crianças, que sempre se deram bem, transformaram-se em jovens, sonhadores e esperançosos.

Raul, formara-se em Veterinária, cuidando de animais de grande porte.

Beatriz acabara de se formar em Psicologia, pretendendo ter sua própria clínica.

Mirtes, agora com quase vinte e três anos, incentivada por Raul, cursa também a faculdade de Medicina Veterinária e Zootécnica da Universidade de São Paulo. Assim que se formar, ela e Raul, após se casarem, pretendem mudar-se para o interior onde exercerão a profissão.

Aquela sonhada viagem de férias não só foi responsável pela escolha da profissão dos jovens, como criou uma sólida amizade que culminou com uma união matrimonial.

A vida é cheia de meandros e mistérios.



Bichinhos fofos - Adriana Frosoni

 


Bichinhos fofos

Adriana Frosoni

 

 

Clara e Pedro eram irmãos e muito curiosos. Em um dia de sol, resolveram explorar a floresta localizada nos fundos da residência. Os dois estavam muito animados e equipados com um binóculo, uma garrafa de água e uma mochila com lanches. 

 

Enquanto caminhavam pela trilha estreita, ouviram um som estranho vindo de um arbusto próximo. Era um croach, croach, como se algo estivesse soluçando. Intrigados, os irmãos aproximaram-se devagar, segurando a respiração. De repente, um pequeno animal saltou do arbusto e com um ploc caiu na frente deles. Era um sapo, com sua pele verde bolhosa e olhos salientes, que assim que bateu no chão voltou para o arbusto por ficar tão assustado quanto as crianças. Clara e Pedro riram aliviados, achando graça da situação, mas a menina estava com uma expressão de asco. Era mais nova que o irmão, e bem mais delicada, mas não se sentia intimidada por isso.

 

Continuaram a caminhar, mas logo ouviram um novo som, desta vez um toc, toc, toc, como se alguém estivesse batendo numa porta. Mas que porta? Procuraram em todas as direções e só quando olharam para cima foi que viram quem batia: era um pica-pau, todo colorido. Perceberam que todas as vezes que faziam um ruído, o pássaro parava de bicar a árvore. Quando ficavam imóveis, ele voltava ao trabalho. Após testarem bastante a paciência do pica-pau, ameaçando andar e parando várias vezes, os dois irmãos seguiram. 

 

Atentos aos sons dos animais, não perceberam que as copas das árvores cobriam o sol cada vez mais, além de que o final do dia se aproximava. Continuaram andando em direção a uma parte de floresta mais fechada, às vezes olhando para trás, mas a curiosidade de seguir em frente e se arriscar era maior que o medo. Foi quando viram um barracão, aparentemente abandonado; aproximaram-se e empurraram o portão que abriu facilmente, aumentando-lhes a escuridão. Ficaram assustados e deram um passo para trás. 

 

Lentamente, os olhos deles se acostumaram com o escuro e, por isso, resolveram continuar investigando. Com cuidado, foram pisando devagar e ouvindo os crecs sob os seus pequenos pés.

 

Clara começou a esconder-se atrás de Pedro, que a protegia e sempre reforçava que não havia motivo para temer. Antes que ele terminasse de falar isso pela segunda vez, um morcego sobrevoou suas cabeças e ambos saíram correndo pelo mesmo caminho do qual vieram, o que fez bastante ruído e mais morcegos se juntaram ao primeiro. Foi um monte de flap, flap que logo se espalhou por diferentes direções mata adentro, mas eles não pararam de correr, mesmo quando não havia mais morcegos, porque o medo era tão grande que os dominava.

 

Eles correram tanto que, só quando já estavam quase saindo do arvoredo que Clara se estacou novamente, parando em frente daquele primeiro arbusto, o do sapo. Pedro se esticou e olhou por cima da cabeça da irmã e viu o que a assustou: uma cobra estava saindo vagarosamente do arbusto. 

 

Os dois fitaram-se para pensar em como agir, mas, inicialmente, imitaram o pica-pau. Ficaram parados. Afinal, será que, se continuassem, a cobra os atacaria? Será que ela era venenosa?

 

Enquanto os pequenos estavam quietos, a cobra continuou a se movimentar lentamente pelo arbusto. Eles arregalaram os olhos ainda mais quando perceberam que ela não estava esguia como as retratadas nos livros: ela tinha uma bolota no seu interior. Clara cochichou entre dentes:

­­— Que nojo… — ao que Pedro respondeu:

— Que sorte… ainda bem que ela encontrou o sapo antes de ver a gente aqui!

 

O Antes e o Depois. O que aconteceu antes e depois do desastre - Yara Mourão

 



O Antes e o Depois.

O que aconteceu antes do desastre

Yara Mourão

 

Amanheceu molhado, os caminhos ainda bloqueados pelos restos da enxurrada; paus e pedras, destroços de casas, talvez de vidas, jaziam por toda parte.

As tempestades daqueles dias foram fortes demais para o lugarejo, carente de socorro ou resgate. Será que alguém ali estaria vivo? O silêncio do desastre era assustador.

A mãe não queria morrer enterrada ali com seu bebê, que tinha só dois anos e uma vida para viver. Tinha que partir.  Decidiu correr pelos escombros com o filho nos braços até o que restava da rua, um lamaçal traiçoeiro. Procurava uma salvação, o que quer que fosse, quando avistou algo que parecia um capô acinzentado, um carro enlameado junto ao barranco.

  Viu uma chance em mil de conseguir sair dali. Foi rápida porque dos morros em volta escorriam rios de lama.

Pensou em ajudar mais alguém. Olhou rapidamente em volta, mas fora alguns cães perdidos, não havia sinais de ninguém. Acomodou a criança na cadeirinha enlameada que havia no carro e conseguiu sentar à direção. Tudo coberto de barro, mas ainda funcionando.

Com muito cuidado, conseguiu dirigir através dos entulhos. Mas, para onde ir? Não se distinguia rua de rio, estrada de buracos. Começou a chover de novo.

A mãe lamentava a vida, os desastres, o desamparo. A consciência de estar só com o seu bebê doía na alma, mas acendia nela uma urgência forte pela sobrevivência.

Dirigiu. Não sabe como saiu dali até uma clareira. Desviou-se dos troncos, das pedras. Acelerou pelos caminhos improváveis, cheios de retas escorregadias e de curvas fechadas. A mãe tremia, chorava; seu bebê querendo muito viver uma vida feliz. Por isso, a mãe viu que seguir sempre era o que tinha que fazer. Acelerou mais; e mais, até que, em uma enorme pedra ao lado da estrada, o mundo parou de rodar.

Só se ouvia o choro do bebê atravessando a mata.

Na encosta do morro, escorreu a gasolina do carro estourado. No encontro das pedras, o fogo se alastrou.

Uma caminhonete parou e um rapaz correu em direção ao carro capotado. Um idoso já estava ali no desespero de salvar mãe e filho.

Os dois homens se esforçaram até tirar o bebê e sua mãe desacordada de dentro do carro, antes que ele explodisse.

 

 

O que aconteceu depois do desastre – 10 anos depois.

Naquele dia terrível, um jovem e um velho fizeram a vida brilhar de novo. E agora, anos depois de toda aquela tragédia anunciada, Bento e Gregório, sentados à mesa da cantina da Corporação, brindavam as conquistas alcançadas.

Porque eram eles que estavam lá, no momento do desastre. Gregório, que morava próximo, ouvira o estrondo da batida e, numa rapidez surpreendente para suas pernas já cansadas, chegou junto ao carro e, aos berros, tentava algo e chamava por socorro. Bento parou abruptamente seu carro e, com a força e o ímpeto da juventude, quebrou os vidros e conseguiu tirar bebê e mãe antes que a explosão causasse o fogaréu.

Não dava para chegar no hospital. Tinha que ser pelo ar. No celular de Bento, fizeram a chamada. Voo agitado até a cidade mais próxima. O atendimento foi para todos, cada um com sua dor, seu ferimento. Todos ficariam bem, até a mãe, que se ferira mais que todos.

De todo o mal, uma centelha brilhou forte. Os dois homens, salvadores, heróis aclamados pela mídia, se perceberam essenciais no mundo. Para estar onde o acaso acontece e vencer obstáculos difíceis, é preciso ter o dom da presença e das atitudes que fazem a diferença. Passaram anos aprimorando essa percepção até se filiarem à Corporação do Corpo de Bombeiros – Socorro e Resgate da cidade.

Tinham muito orgulho disso. Tinham medalhas, tinham reconhecimento.

Mas o que tinham que mais prezavam era o apadrinhamento de Mariza, a mãe do bebê salva por eles, e do mascote da Corporação, Pedrinho, o bebê que resgataram e que dizia, com a graça de seus doze anos, querer ser também um bombeiro super-herói!

 

 

O Antes e o Depois - Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

  




O Antes e o Depois

Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

 

 

Gregório tinha sido um renomado cardiologista, aqueles da “velha guarda”, que ajudara, inclusive, o Incor a se transformar no que ele é hoje. Entretanto, era avesso às “badalações e holofotes”, e poucas vezes aceitava participar de homenagens à sua pessoa. Gostava mesmo é de ser médico.

 

Já aposentado, passava a maior parte de seu tempo em sua chácara em Valinhos, relendo os clássicos da literatura francesa e inglesa e, nos finais de semana, gostava de receber os filhos, netos e agora os bisnetos. Com o avançado da idade, quase não dirigia mais – principalmente em estradas. Mas justamente naquela quinta-feira, seu motorista havia pedido folga porque sua filha ia dar à luz, e ele só iria até a cidade para abastecer a adega, porquanto a casa de hóspedes estaria cheia para o feriado prolongado.

 

Mal pegou a rodovia, o trânsito começou a ficar lento e podia-se ouvir lá longe o barulho de sirenes. Sintonizou a rádio que emitia boletins de ocorrências e, bingo! Tratava-se de um veículo sedan cinza prateado que havia capotado. De imediato, seu coração acelerou e, da taquicardia, veio a ânsia.

 

Não era possível. Talvez fosse apenas uma coincidência, pois Laura havia dito que ficaria em casa até segunda-feira, já que o filho estava muito gripado e ainda tinha tido febre na noite anterior.

 

O tráfego continuava lento, mas quando Gregório avistou o carro acidentado, não teve dúvidas. Ligou o pisca alerta, abandonou seu veículo e saiu correndo dentro de seu possível.

 

Sim, aquele era o carro do neto. Não conhecia a placa, mas reconheceu o adesivo vermelho do clube grudado no para-choque traseiro.

 

O veículo estava todo retorcido e Gregório esmurrava a janela, tentando, inutilmente, quebrar o vidro, já gritando por socorro. De repente, surge um rapaz, que ele nem sabe dizer de onde, que lhe entrega seu bisneto, pedindo para se afastarem do local.  Meio amortecido e com Bento no colo, ele vai dando uns passos para trás e se esquece de perguntar sobre a mulher do neto mais velho, que estava na direção.

 

...

 

Bento já está pronto para a cerimônia e pede ao Bentinho que suba e apresse sua mãe para não chegarmos atrasados. Laura se encontra muito pensativa e parece longe da realidade. Dez anos haviam se passado desde aquela fatídica quinta-feira, cujo final tinha sido compensador apesar dos 37 dias de internação.

 

Naquele dia, os bombeiros conseguiram chegar logo após a criança ser resgatada e cortaram a porta do passageiro para retirar a motorista, minutos antes do veículo explodir em razão do vazamento de combustível. Ela fora levada de imediato para o Hospital Municipal local e dois dias depois transferida por uma UTI móvel para o Incor.

 

Apesar de ter apenas 32 anos, já era viúva. O neto mais velho de Gregório, que tinha o mesmo nome do avô, havia sido diagnosticado com um tipo raro de câncer, extremamente agressivo, e a doença o levou em cinco meses, deixando Laura com um filho de dois anos. Como neto e avô tinham laços muito fortes, Dr. Gregório, como ela o chamava, acabara por se afeiçoar também a ela e, quando o marido faleceu, decidiu ir para o interior, pois via na figura do médico um porto seguro tanto para ela quanto para seu filho, visto que toda sua família morava no exterior. Ele insistira para irem morar todos juntos, mas ela optara por alugar um chalé em um condomínio próximo e, como em todos os finais de semana, também “batia ponto” na chácara com os outros familiares. Essa estava sendo sua rotina há três anos, quando houve uma total reviravolta em sua vida desde o acidente.

 

Não tem qualquer lembrança dos dois primeiros dias de internação no Hospital Municipal, assim como de sua remoção para São Paulo e dos sete dias que ficou entubada na UTI. Quando finalmente foi transferida para um quarto, a primeira pessoa que entrou para visitá-la foi um jovem alto, moreno, de cabelos cheios e alguns fios brancos, de um sorriso largo e confiante.

 

Olá, ele disse. Vejo que já está bem melhor.

Desculpe-me, mas não o conheço, ela lhe respondeu.

 

Ele então se apresenta, e quando vai começar a falar, Gregório adentra o quarto e exclama:

 

Ah, Laura, vejo que você já conheceu nosso super-herói Bento! Com entusiasmo, ele narra, emocionado, todos os detalhes sobre o acidente e do quão importante foi o auxílio do rapaz para que mãe e filho sobrevivessem.

 

E é a partir desse dia que a vida dela começa a tomar um novo rumo. No início, meio relutante, os dois começam a trocar olhares, ele insinua algo aqui, outro ali, até que Bento consegue fazê-la prometer que tão logo receba alta do hospital, irá jantar com ele.

 

Dez anos se passaram! Após um namoro de oito meses, eles resolveram se casar em uma cerimônia pequena, na chácara do Dr. Gregório, que aprovava o relacionamento, pois sabia da boa índole do rapaz, tinha consciência de sua idade avançada e sabia da importância de uma figura masculina na vida do bisneto. De repente, cai em si e ouve Bentinho dizer, com a voz já meio exasperada:

Mamãe, você não está me ouvindo? Nós estamos atrasados!

 

Ela se levanta do banquinho onde estava se maquiando, passa a mão mais uma vez pelo ventre que já está bem avantajado e desce as escadas para ir ao encontro do marido.

 

Vamos logo, querido! O Incor não vai nos esperar para dar início à cerimônia de centenário do Dr. Gregório.

O casamento de Maria Benedita de Toledo Randon - Ises de Almeida Abrahamsohn

 




O casamento de Maria Benedita de Toledo Randon

Ises de Almeida Abrahamsohn

 

adaptado do texto de Paulo Rezutti no Blog:
https://saopaulopassado.wordpress.com/2015/07/25/o-casamento-frustrado-da-filha-do-general-arouche/

 

 

Corria o ano de 1830. Maria Benedita era filha adotiva do general José Arouche de Toledo Rendon. O general a havia adotado ainda menina, fruto de um romance antes do seu casamento com a esposa Maria Tereza, que não se opôs à adoção. Maria Benedita fora muito bem-educada, falava francês e tocava piano e se dedicava ao estudo de botânica. E tinha um bom dote do rico pai adotivo. Porém, aos 42 anos, permanecia solteira. Não há relatos de que fosse muito feia ou desajeitada que justificassem a solteirice. Talvez fosse de temperamento voluntarioso ou inteligente demais para atrair os pretendentes da época.

Porém, eis que apareceu na chácara e solar do general o Dr. Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral, brasileiro, formado em direito em Coimbra. Tinha sido nomeado recentemente, aos 29 anos, lente Catedrático do Curso Jurídico da Academia de Direito, que originaria a Faculdade de Direito no largo de São Francisco.

Era um sujeito alto, magro, de aspecto austero que, diferente dos seus conterrâneos da época, trazia o rosto completamente barbeado, ou escanhoado, como se dizia. Vestia-se sobriamente. Não era estimado pelos alunos de sua cátedra, uma vez que dava poucas explicações em aula e exigia muitas leituras para o aprendizado. Reforçava que se aprendia lendo e estudando e não repetindo o conteúdo das aulas. Gostava de ser tratado como Excelência ou “plecaro mestre”.
A sua peculiaridade era que se declarava sempre nas conversas e aos alunos como totalmente avesso ao casamento. E desfiava uma série de razões. Não que fosse assexuado, uma vez que tivera algumas amantes e dois filhos naturais.
Encontrou-se com Maria Benedita na primeira visita que fez ao solar do General Arouche Rendon.

 Algo o atraiu a Maria Benedita. O que teria sido?
Sua formação e capacidade de conversar sobre assuntos variados?  A gentileza?  As melodias que tocava ao piano? A virgindade será possivelmente mantida até os 42 anos? Ou mais prosaicamente, o desejo de estabelecer família com uma parceira de família tão rica e importante como a do General Arouche Rendon, proprietária de tantas terras valiosas centrais em São Paulo?
O casamento aconteceu em 22 de dezembro de 1830. E na noite de núpcias mesmo, um dos dois sumiu da residência onde passariam a lua de mel. Os relatos e fofocas da época divergem.

Alguns dizem que foi o noivo que caiu em si e começou a gritar: 

“Cabral, Cabral, que fizeste Cabral? Ficaste louco, Cabral? Cabral, tu te casaste?”

Saltou pela janela para não mais voltar, segundo algumas versões.

Outros dizem que a noiva, pensando que o marido havia enlouquecido, fugiu da casa e refugiou-se na casa do pai.

O casamento nunca chegou a ser consumado.

Onze meses depois, novembro de 1831, a pedido de Maria Benedita ao vaticano, o casamento foi declarado inválido, pois não foi consumado.

Segundo comentários da época, quando o general faleceu, o Dr. Prudêncio Cabral se apresentou como possível herdeiro dos bens, mas não teve sucesso. A ex-quase-mulher o rechaçou. O advogado argumentou que, na noite de núpcias, teria exercido plenamente o seu papel de varão. Queria que a moça se submetesse a um exame de virgindade. O que ela recusou. Dizem as más línguas, que afinal ela concordou em passar-lhe parte da herança. Maria Benedita morreu rica e solteira.

As Meninas da Casa Verde - Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

 



As Meninas da Casa Verde

Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

 

Caitana era a primogênita das sete irmãs e, de todas, a mais bonita, com cabelos loiros, olhos azuis e tez bem clara. Tinha puxado a avó paterna, todos diziam.

Havia tido dois pretendentes, mas preferiu não se casar porque se sentia responsável pela educação de suas irmãs, uma vez que a mãe faleceu logo após a caçulinha, Rudesinda, completar 6 meses de vida.

De fato, Caitana tinha ascendência sobre suas irmãs e, apesar de amorosa, era disciplinada e sistemática. Sempre era sua a palavra final. Só a pequena, raspa de tacho, é quem conseguia dobrá-la e arrancar-lhe certas regalias.

Todas se davam muito bem e, quando chegava o fim de semana, deixavam para trás a Casa Verde, como era conhecida a mansão onde moravam por ser predominantemente verde, e lá iam elas para a Chácara do irmão mais velho, Tenente General José Arouche de Toledo Rendon.

O ritual era sempre o mesmo: Caitana corria para ver se as carruagens já estavam prontas. Em seguida, dirigia-se à cozinha para se certificar de que havia comida suficiente no farnel, pois uma das meninas podia ter fome no caminho. Depois, subia as escadas correndo para ajudar as irmãs com suas vestimentas: auxiliava uma a apertar o espartilho, outra a colocar as meias, uma terceira a pôr o vestido e sempre tinha que lembrar Joaquina de não esquecer de pegar o chapéu.

A pequena Rudesinda era a que menos dava trabalho – na véspera ela já deixava toda sua roupa separada - e, em 5 minutos, a criança estava pronta.

A casa do tenente era lindíssima, projetada por um famoso arquiteto que havia estudado em Milão e tinha sido construída de frente para um lago convidativo, onde as irmãs se divertiam muito e nem notavam as horas passarem.

Caitana e a caçula da turma apreciavam mais a equitação e, de fato, pareciam duas amazonas natas, com um porte muito elegante, montadas naqueles cavalos de raça.

Elas gostavam muito de ir para a chácara e, de fato, houve uma época, inclusive, em que a mãe delas e Caitana passavam longa temporada com o “mano Zé”, como elas se referiam ao irmão quando ele não estava por perto. Numa dessas longas estadias na chácara, Rudesinda nasceu, e as outras ficaram na Casa Verde aos cuidados da tia Carlota, irmã da mãe.

Nesse ínterim, com o início da Revolução Industrial, o pai decidiu partir para o Rio de Janeiro porque queria modernizar sua fábrica. Assim ele dizia.   No entanto, nunca mais tiveram notícias sobre seu paradeiro. Corria solto que tinha constituído nova família.

Ao regressarem, todas notaram que a mãe já não era mais a mesma. Antes alegre e sempre cantarolando pela Casa Verde, agora vivia cabisbaixa e passava a maioria do tempo em seus aposentos. Acabou morrendo de depressão.

Um dia, o Dr. Raimundo, médico da família, foi chamado porque três das meninas estavam tossindo muito e tinham febre altíssima, e o diagnóstico foi tuberculose. Tiveram pouco tempo de vida.

Passados cinco anos, outras duas faleceram de febre-amarela. Restaram apenas a primogênita e a caçula.  

Já adulta, Rudesinda resolve abrir-se com Caitana e contar-lhe um segredo que vinha lhe atormentando já há algum tempo. Ela conheceu um rapaz na corte por quem se apaixonou e se entregou. Acreditava que estava grávida. Quando deu a notícia a ele, respondeu que era casado e que jamais assumiria o bebê.

 A notícia caiu como uma bomba para a mãe, que viu sua história se repetir com a própria filha. Que ironia! Ela respirou fundo, pediu para se sentarem no jardim e começou a narrar o que lhe acontecera 26 anos atrás, confortando e assegurando à Rudesinda que agiria da mesma forma que sua mãe.

Infelizmente, mãe e bebê faleceram no parto. Caitana restou como a única sobrevivente das 7 irmãs da Casa Verde.

 

A cultura japonesa - Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

 



A cultura japonesa

Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

 

A Sra. Naomi morava sozinha desde que seu marido, Sr. Akira, morrera de aneurisma cerebral aos 87 anos. Seus filhos não se opuseram, uma vez que o isolamento social é muito comum na cultura japonesa e existe até um nome específico para as pessoas que preferem se isolar em casa: hikikomori.

 

O casal havia se conhecido na montadora Toyota, mais especificamente na linha de montagem de painel do modelo Corolla. Ele era gerente da área e ela acabara de ser promovida como supervisora daquela divisão. Ambos se formaram em engenharia mecânica e tinham nascido na capital, Tóquio.

A Sra. Naomi, uma típica japonesa no alto de seus 78 anos, apesar de ter apenas 1.53cm de altura, é muito reservada e calada e está habituada a passar a maioria de seu tempo em silêncio, pois cultiva o hábito de respeitar os outros e contribuir para um ambiente mais harmonioso.

 

Aos domingos, vai sempre almoçar na casa da filha Ayumi, casada com um alto executivo da Panasonic, para ver a família, sem nunca deixar de levar um omiyageum presente – que é a forma que eles encontram de demonstrar respeito e fortalecer os laços.

 

Seu outro filho, Yuri, mora no Brasil já há 4 anos, desde que se casou com uma nissei, Kira, que conheceu quando houve aquela febre de brasileiros que iam para o Japão, trabalhar em fábricas, para juntar dinheiro e ajudar suas famílias.

 

Em um desses domingos, como de costume, a Sra. Naomi aguarda o relógio dar 11:45h, coloca sua máscara facial, pois se preocupa com a saúde coletiva e acredita que esse seu gesto de cortesia evita a propagação de germes, parte para a casa de sua filha, que fica a uns 15 minutos a pé da sua. O outono já acusa que está se despedindo porque as árvores com aquelas folhas lindas, coloridas de vermelho, vinho, cobre, amarelo e verde quase não podem mais ser vistas e um vento frio sopra pelas ruas, indicando que o inverno pode ser rigoroso neste ano.

 

De repente, seu celular toca e, pelo visor, percebe que é uma chamada do Brasil, porém de um número desconhecido. Ao atender, a pessoa começa a falar em um inglês precário que ela tem muita dificuldade para compreender, mas consegue ouvir com nitidez as palavras Yuri e Kira. Como já está próxima da casa da filha, apressa o passo para chegar mais rápido, sem se dar conta de que chegará um pouco antes do meio-dia, que é horário pontual combinado.

 

Um pouco ofegante por andar depressa, ela chega à casa, cumprimenta a todos com a famosa inclinação de cabeça, chamada ojigi” e, na primeira oportunidade, conta à filha sobre o telefonema recebido. Ayumi, então, pega o aparelho da mãe e faz uma pesquisa para tentar descobrir de onde é o número do telefone. Infelizmente, sem sucesso.

 

Sem compreender o que está acontecendo, a Sra. Naomi pega seu celular de volta e diz que vai ligar para Yuri para saber, de fato, o que se sucedeu. Faz a ligação, mas após tocar várias vezes, acaba caindo na caixa postal. Ayumi, então, tem a ideia de ligar para o número de sua cunhada, Kira, e quem atende é uma voz de homem, falando naquele inglês “macarrônico”. Como está na viva-voz, a Sra. Naomi, de imediato, confirma que é a mesma pessoa que havia lhe telefonado um pouco antes. A filha, então, cancela o viva-voz para poder conversar com mais privacidade com o tal indivíduo.

 

A mãe, observando sua filha, nota que ela está pálida e que esta acaba por se sentar no tatame. A conversa se estende e vai ficando mais tensa, e o inglês falado cada vez mais rápido. Uma hora, a Sra. Naomi percebe que Ayumi está fornecendo seu e-mail e seu número de celular particular e, de repente, sem mais nem menos, ela desliga o aparelho.

 

Por alguns instantes, que pareceram horas, há um silêncio no ambiente, até que a filha, finalmente, coloca a mãe a par da situação. Yuri e sua mulher Kira estavam em apuros porque tinham pedido um empréstimo na colônia japonesa e só depois descobriram que se tratavam de agiotas ligados à máfia do Japão. O prazo dado para o pagamento já havia sido adiado por duas vezes e o casal tinha até 3ª feira para quitar a dívida. Como garantia, o rapaz havia sido pego como refém.

 

Nesse momento, entra uma videochamada no celular de Ayumi e surge na tela seu irmão, com um grande hematoma do lado esquerdo da testa, pedindo para que a família os ajudasse. Tinham pedido um empréstimo bancário, mas a burocracia emperrou o negócio e eles não queriam perder a oportunidade de dar entrada no imóvel de seus sonhos pelo preço oferecido. Então, um amigo disse que tinha um conhecido que emprestava dinheiro e, como contavam com o pagamento de seu maior cliente para reembolsá-los, acabaram aceitando a oferta, uma vez que os juros exorbitantes seriam por apenas 1 mês. Entretanto, o tal do maior cliente acabou por não os pagar porque faliu, a dívida foi só aumentando e eles acabaram nessa situação.

 

A Sra. Naomi então, já tranquila, pede os dados dos agiotas, faz a transferência bancária, certifica-se de que seu filho fora solto e com toda a calma peculiar do oriental diz para a filha:  

— Ayumi, toda essa adrenalina abriu meu apetite. Podemos almoçar?