Até hoje - Suzana da Cunha Lima

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Até hoje
Suzana da Cunha Lima

No decorrer dos anos, desde que me entendo de gente, o Dia das Mães era um dia muito importante, esperado e festejado, principalmente enquanto nossa mãe era ainda viva. Nosso pai  era falecido, assim, nós, filhos, fazíamos tudo para que este dia fosse um dia realmente especial, tanto quanto ela era.

Não comprávamos presentes. Cada um preparava uma surpresa: um poema, uma canção, uma pintura, um origami, uma música ao violão.

Ela sempre ficava emocionada, como se fosse a primeira vez.

No ano em que ela faleceu, o baque inicial, a dor imensa,  quase nos paralisaram. Porém minha irmã mais velha resolveu que faríamos a festa do mesmo jeito de sempre. De onde ela estiver, - disse - vai se alegrar vendo seus filhos juntos, preparando mimos para se presentearem.

Assim fizemos. Foi uma festa linda, mas muito, muito triste, com muitas lágrimas.


E resolvemos manter este costume, ano após ano. Foi a melhor coisa que fizemos, pois isto serviu para permanecermos juntos e unidos. Com o tempo, nós também nos tornamos mães e, mesmo sem combinar, ensinamos este costume  aos nossos filhos.  E a dor e tristeza foram aos poucos sendo substituídos pela saudade.  Esta sim, viva até hoje.

De mães e filhos - Ises de Almeida Abrahamsohn


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De mães e filhos
Ises de Almeida Abrahamsohn

As folhas douradas e vermelhas do grande carvalho projetavam-se   na janela da sala. Anne, ao ver Steven na calçada, abriu a porta. Não o via desde o escritório da advogada de divórcio. Esquivou-se do abraço, perguntou maquinalmente sobre o voo e indicou-lhe o escritório  para colocar a mala. Escapou rapidamente para a cozinha. 

Durante os vinte e cinco anos que durara o seu casamento sempre tivera a família reunida por ocasião das grandes festas. Quando as crianças cresceram e saíram de casa, ela e o marido ainda tiveram alguns anos juntos. Os filhos nunca deixavam de vir em novembro para o Thanksgiving. Entretanto desde janeiro, estava só. Leah e o marido cruzavam o país para vir até Filadélfia.  Ron vinha de  Montreal com  Marie e as duas crianças. 

Anne pensou em como os filhos gostavam de Steven, talvez mais do que dela. Era ela quem organizava a vida das crianças e controlava o uso da internet  enquanto ele era o criativo e  esfuziante inventor de prodigiosas brincadeiras. Não havia dúvida. Ele tinha sido um ótimo pai, mas péssimo marido! 

Tinha a necessidade obsessiva da conquista. Quantos casos, rápidos ou prolongados ela fingira ignorar!  Sempre uma desculpa, um mea culpa. Não pedira antes o divórcio por causa das crianças. Para ela, a humilhação foi se transformando em amargura e em raiva, muita raiva. Até que ele, confrontado, admitiu a ligação com uma enfermeira que já durava três anos. Anne  refloresceu quando o ex mudou para Chicago.  Não mais cruzaria com ele no hospital onde ambos trabalhavam. 

Mas em outubro, ao ligar para os filhos para confirmar a reunião no dia de ação de graças, certamente não esperava ouvir os apelos para ser “compreensiva” e convidar o pai! Relutou, mas  enfim cedeu às insistências.  Ambos morriam de saudades!  É o que diziam.

 
̶  É extraordinário o que os filhos esperam das mães, pensou Anne, ao espetar o peru que assava no forno.



Uma foto de Mulher - Suzana da Cunha Lima

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Uma foto de Mulher
Suzana da Cunha Lima

Um dia, ao caminhar na pracinha, como faço todas as manhãs, notei uma carteira encostada na árvore, perto do banco onde me sentei cansado, ao final do exercício. Peguei-a, podia haver documentos que me permitissem encontrar seu dono. O couro estava bem velho, mas era de boa qualidade.  Fiquei curioso. Uma foto e uma carta bem dobrada. Nenhum dinheiro.

A foto era de uma mulher jovem, muito bonita, olhando para o mar, cabelos revoltos. Sua fisionomia lembrou-me  alguém, há muito tempo. Desdobrei a carta e logo me espantei. Era uma das mais estranhas que já li na vida.

Amor de minha vida
Vou-me embora e para sempre. Não adianta me procurar, para onde eu  vou não se volta. Esta é a foto de tua filha, sim tens uma filha.  Nem eu sei onde ela pode estar.  É bonita demais para passar despercebida, seja para o bem, seja para o mal. A última vez que a vi morava com alguém na Av Atlântica, no Rio. Cheia de mistérios e meias palavras. Nunca me perdoou porque não chegou a te conhecer.  Não era possível e sabe-o bem. Se um dia a encontrar, diga-lhe que sempre a amei, hoje e sempre, Sua M.

E de repente, aquela paixão antiga irrompeu na minha memória. Madalena, de olhos cor de âmbar que se apossou de meu corpo e de minha mente naqueles tórridos meses que eu havia passado no Rio, a trabalho. Paixão tão imensa quanto impossível. Eu era casado.  Voltei para Sampa  e sua lembrança se dissolveu no turbilhão de minha vida agitada. Até aquele dia.  A moça se parecia com ela.

Então eu tinha uma filha! Não era mais casado e não tivera filhos em nenhum de meus relacionamentos. A perspectiva de ter alguém meu, naquelas alturas da vida, me deixou excitado e até encantado. Foi quando um velhinho passou esbaforido, me arrancou a carteira e quis puxar a carta junto com a foto que estava em minhas mãos.  

- Estas coisas são minhas, o garoto me roubou, tirou o dinheiro e jogou aí na grama. Passa a carta e a foto.  – sentou-se perto de mim, suspirando, enquanto dobrava a carta e colocava, com a foto, outra vez na carteira.


- Paixão brava, sabe? Mulher feiticeira, linda de morrer, capaz de endoidar qualquer um...

E agora, Clara? - Angela Barros

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E agora, Clara?
Angela Barros

        Clara levava uma vida que considerava feliz, casada com um homem que amava e era amada, dois filhos gêmeos maravilhosos que acabaram de passar no vestibular. Morava numa moderna casa construída e decorada exatamente de acordo com tudo que ela tinha sonhado. Uma vez por ano toda a família viajava para algum lugar do mundo. Tudo era felicidade na vida de Clara.

        Porém, a vida de Clara mudou do vinho para a água quando numa fatídica manhã acordou com um homem gritando na frente da sua casa falando para quem quisesse ouvir que ia matar o desgraçado que estava tendo um caso com sua mulher.

        Todos acordam assustados, sem saber direito o que estava acontecendo. Clara, aos prantos perguntava ao marido o que estava acontecendo. Os filhos desnorteados não entendiam nada. Marcos, o marido, correu para fora de casa e tentou calar o homem enlouquecido, totalmente embriagado que estava fazendo aquele escândalo. Com ajuda de um vizinho conseguiu colocar o louco num taxi e despachá-lo o mais rápido possível. 

        Voltou para dentro de casa e o circo estava armado. A mulher ensandecida começou a agredi-lo de todas as maneiras possíveis e imagináveis e exigiu uma explicação do marido para o acontecido. Os filhos tentaram acalmar os pais sem muito sucesso. Sentindo o drama, Marcos aconselhado pelos filhos, decidiu sair de casa para se acalmar.

        Aos poucos a situação se amenizou, os filhos foram para a faculdade e Clara ficou sozinha com seus pensamentos.

        - Meu Deus, o que está acontecendo? Isso não pode ser real.

        Quando Marcos voltou para casa, confessou que realmente estava tendo um caso com a mulher do louco que tinha feito o escândalo naquele dia, sentia muito por tudo que tinha acontecido mas estava apaixonado e que aquilo que ocorrera só serviu para acelerar a decisão que ele já devia ter tomado que era pedir o divórcio, por que não queria mais viver uma mentira.

                Os dias que se seguiriam foram de muita choradeira e brigas pelo telefone entre Clara e Marcos. Os filhos já não aguentavam mais e decidiram morar numa republica na faculdade.

        Clara se viu sozinha de um dia para o outro. Sua vida desde que os filhos nasceram era dedicada exclusivamente para a família. Formada em odontologia, nunca tinha exercido a profissão, com filhos gêmeos e sem ninguém para ajudar, tinha sido impossível.

        As amigas, amigas? Deixaram de convidá-la para suas casas com medo de uma mulher disponível no pedaço. Afinal, ela era uma mulher bonita, sabia se vestir bem, era bem informada, tinha um papo mais que agradável e o ex marido tinha sido bastante generoso na divisão dos bens e na pensão. Claro se viu só, sem companhia para um cinema,  teatro, um show e até a um restaurante, já que nunca tinha feito nenhum desses programas sozinha.

        Um belo dia Clara acordou com uma decisão firme na cabeça, iria fazer um curso de italiano em Milão.  Alugou um apartamento no Airbnb perto da escola onde faria o curso com duração de um ano. Preparou um roteiro de viagens para os finais de semana e sem avisar ninguém rumou para a Itália.

        Só depois de alguns dias resolveu ligar para os filhos avisando para que não se preocupassem, estava bem aliás, muito bem. Deu o endereço do apartamento que alugara, se por acaso quisessem, poderiam ir visitá-la, mas que por nada dessem o endereço para o Marcos.

        Clara fez muitos amigos na escolar, e viajou por toda Europa.
Conheceu um charmoso italiano com o qual teve um romance quentíssimo durante algum tempo, mas que depois percebeu que ele apenas queria alguém para pagar as contas dos passeios e dos restaurantes caros que gostava de frequentar.

        E assim dias, semanas, meses foram passando e Clara só foi se entediando, sentia falta do marido, dos filhos, da casa e perguntava: o que estou fazendo aqui? Resolveu ligar para os filhos, queria saber como o pai deles estava. Mal, muito mal, disseram. A amante decidira não se separar do marido. E o pai, estava morando sozinho num flat, andava triste e adoentado.


        Foi nesse momento que Clara tomou outra decisão na sua vida, voltar para casa. Estava disposta a recuperar o marido, afinal ele era, e ainda é o amor da sua vida.

E se o circo não chegar? -Maria Amélia Favale


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E se o circo não chegar?
Maria Amélia Favale

Aconteceu na cidade onde morava Fernando, meu amigo. Ele era muito conversador, batia papo até com estranhos.

Uma vez um velho homem avisou-lhe de que na cidade chegaria um circo. E, Fernando que era amante destes espetáculos correu para ver a trupe passar. Mas, o que via era um grupo de pessoas desfilando na frente de uma pequena banda de carnaval.

Aqueles personagens não representavam um circo.

Decepcionado pensou: “não estou vendo nenhuma figura circense”. Foi ai que percebeu que o ancião que lhe contara sobre a chegada do circo, não sabia que se tratava de invenção de outro velho maluco.

Como o velho tinha inventado a história do circo, Fernando resolveu levar adiante e passou a comentar com todos sobre a chegada do circo, e de tal maneira convincente que algumas pessoas já acreditavam que haveria mesmo um circo na cidade.

E muita gente se postou no suposto trajeto, esperando o circo passar.

Depois de muito tempo deduziram que não existia o tal circo. Alguém mais esquentado bradou: Fernando vai saber o que se deve fazer com quem inventa história!


Um dos presentes ponderou: “O circo pode não passar, mas há uma lição positiva nisso tudo: é que serviu para reunir diversas pessoas de vários lugares que normalmente passam uma por outras e mal se cumprimentam, mas que agora parece que são todos conhecidos e com a mesma história para contar.” 

UMA CARTA ALHEIA - Maria Luiza Malina


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UMA CARTA ALHEIA
Maria Luiza Malina

O som de arranho na porta cortou o silêncio da monotonia do dia. Os olhos se voltaram para o chão percebendo a insistência em empurrar o envelope que mal passava de sua metade.

Instintivamente Laura se agachou e tentou puxá-lo. Sentia que havia alguém do outro lado, temerosa não abriu a porta. Aguardou o ruído dos passos se afastarem. Arrepio-se. Há muito não recebia correspondências. O listrado na borda da carta em vermelho e azul denota ser estrangeira. Ela tenta puxar devagar. Enrosca. É muito volumosa. Procura por uma faca para ajudá-la. O envelope fino como papel de seda quase se rompe. Constata pelo visor da porta que não há ninguém. Abre a porta num vai e vem a finalmente se desprende.

URGENTE. Foi o que desviou a atenção. No urgente, seus pensamentos se embaralharam, podia ser um pedido de ajuda, morte. Os dedos nervosos de unhas afiadas deram uma picada no canto superior do envelope. Neste instante reconhece que o destinatário não lhe é familiar. O endereço é o seu, confere e re confere o remetente. Os olhos repassam pela palavra urgente. O volume é razoável. Percebe que houve tentativa em abrir a carta a vapor. Está um tanto enrugada de cola, rasurada e ainda com o seu quase picote na borda...

Sentou-se analisando os nomes: Frederico Alcântara. Frederico um nome forte, deve ser um homem especial, daqueles que encantam com um cachecol em volta do pescoço.  Aconchega a carta ao peito repetindo o nome Frederico Alcântara... Imagina ser algum parente de Dom Pedro e, o que será que o remetente Plinio Vilaça poderia querer com tanta urgência... Alguma herança! Agora Frederico estava em suas mãos, preenchia seus pensamentos, passou a ter ciúmes de um desconhecido. Resolveu abrir o envelope em um movimento só. Ding... dong. A campainha. De sobressalto esconde a carta atrás de si sem saber o que fazer... Ding...dong. A incerteza crescia com a insistência do dedo na campainha que mostrava saber que a carta fora entregue em lugar errado.
Aflita chegou-se a porta. – Toc...Toc. Alarmou-se. Resolveu perguntar quem era.

- Sou eu sua vizinha, vamos tomar um café?

Laura abre a porta. Sandra a vizinha percebeu sua inquietação e a acalma:

- Olhei pelo retrovisor quando estava prestes a te chamar e, ouvi passos no corredor e alguém colocou algo debaixo da porta...

- Sim, era isto aqui, veja só, acabei abrindo sem querer, só depois é que vi que não era minha. Ainda não li!

- Ora Laura! Podemos ler, uma carta do estrangeiro é sempre interessante.
As duas se puseram a ler. À medida das palavras antes soltas, começaram a fazer certo sentido para a própria Sandra. Acabava de desvendar a verdade do antigo inquilino do prédio. O desconhecido para Laura, o belo Frederico de sua imaginação teve vida curta; não passava de um farsante contrabandista sob a fraudulenta imagem de um professor nativo de idiomas, por quem Sandra se apaixonara e, desaparecera da noite para o dia. Era ele mesmo quem escrevia uma carta para si mesmo. O endereço da carta era uma rua próxima e, ele usara um envelope do estrangeiro. Restava a Sandra ir ao encontro do remetente para desvendar na íntegra a suspeita.


Enquanto isso, Laura suspirava sem nada entender. Sandra estava indignada ao perceber que ele, o Don Juan maldosamente, conseguira envolver outro coração.

A FAMÍLIA OU EU? - SÉRGIO DALLA VECCHIA


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A FAMÍLIA OU EU?
SÉRGIO DALLA VECCHIA

Tereza tinha um ótimo casamento e dele nasceram um menino e uma menina.
O tempo foi passando e eles terminaram as Faculdades, o filho formou-se em medicina e a filha em arquitetura.

Assim, Tereza e o marido se sentiam realizados e também felizes pela missão cumprida.

Logo aconteceu o casamento da filha e após dois anos o do filho. Os netos foram chegando aos poucos até se estabilizarem num total de quatro, dois de cada casal.

Tudo ia bem com a família, mas o mesmo não acontecia com o casal de avós. Não estavam felizes com a casa vazia. Estavam sós! A falta dos filhos fazia com que Tereza cobrasse muita atenção do marido, que por sua vez sentia-se desconfortável.

Os desentendimentos eram frequentes, não havia mais tolerância e a convivência se tornou insustentável, até que o marido pediu o divórcio.

Emocionalmente abalada tornou-se muito triste. Recordava pelo computador os filmes e fotos dos momentos inesquecíveis da família: a festa de casamento, o nascimento dos filhos, as festas de gala das formaturas, os casamentos dos filhos e tantos outros momentos, mas Tereza estava só!

Buscou na alma da mulher, a força necessária para suportar a os momentos de depressão.

Aos poucos foi melhorando e quando se deu conta, fazia um ano que estava separada. Tereza era uma mulher de aparência jovem e muito atraente. Logo surgiu um paquera.

Foi uma luz na sua vida; ela mudou radicalmente, lembrou-se que a alegria ainda existia, o teatro, os restaurantes da moda, o carinho e o aconchego do homem amado. Tereza já morava com o namorado, a felicidade imperava e a sua antiga rotina estava sendo apagada aos poucos.

Entretanto, bastou um telefonema de sua filha para que sua felicidade desabasse. Ela aos prantos recorreu a mãe para informar que sua vida estava um inferno e que estava se divorciando!

—Mãe estou perdida, eu te suplico venha morar comigo uns tempos, eu e seus netos precisaremos muito do seu amor!

Tereza ficou passada! A dúvida era cruel, minha família ou eu?

A história da família veio novamente à tona e os momentos presentes não saiam de sua mente. Tereza pensativa acariciava e abraçava fortemente o namorado. Assim resoluta e convicta, fitou o amado nos olhos e lhe disse carinhosamente: — Você emana a luz de um candelabro, mas eu como mãe, serei aquecida por pelo menos três; minha filha e meus dois netinhos.

—Meu coração está dividido, por favor me entenda.

—Dê-me esse tempo e logo voltarei para os seus braços, pois nunca o esquecerei.

Até qualquer dia querido e que seja breve!







O Palhaço Topetão - Angela Barros

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O Palhaço Topetão
Angela Barros

        Essa história que vou contar para vocês aconteceu em Cachoeirinha, no Agreste pernambucano. Para quem já andou por aquelas bandas conhece bem as casinhas de pau a pique, pintadas com cores coloridas e cortinas de chita nas janelas. Muro, não tinha não, apenas a terra batida impecavelmente varrida. Para encontrar alguém bastava perguntar pelo nome, todo mundo se conhecia por lá.

        Pois bem, numa dessas ruas sem nome e sem número morava Seu Chico, homem dos seus sessenta anos, de pele tão craquelada pela exposição ao sol que parecia ter uns setenta ou mais, como todos que trabalhavam na roça como ele. O velho Chico, como era conhecido, era famoso na cidade. Quando moço, todos os domingos ia trabalhar no circo como palhaço. O palhaço Topetão, alegria da molecada.

        Seu Chico tinha um neto, Chiquinho, 10 aninhos, sapeca que só. Morava em São Paulo e para alegria do avô, a mãe todos os anos nas férias de dezembro despachava o filho para Pernambuco. Logo que chegava o menino corria para o avô e pedia para ele colocar a velha roupa de palhaço, já toda desbotada.

        Conta as histórias do circo, vô! E lá iam eles sentar na soleira da casa. Tá vendo aquele terreno ali na frente? Era lá que o circo era armado. Quando os carros do circo chegavam na entrada da cidade anunciando as atrações no alto falante, a criançada e até os adultos saiam de casa para ver o cortejo passar. A molecada aos berros atiçavam os bichos, gritavam chamando os palhaços, a mulher barbada, os malabaristas, os trapezistas. Tinha até o globo da morte. Eu, Chiquinho, corria para preparar minha roupa não vendo a hora de me apresentar. Até chegar a hora do espetáculo no domingo, a criançada ficava enlouquecida rodeando as tendas dos artistas e as jaulas dos animais, alegria só.


        E assim, o ritual se repetiu ano após ano, até o neto do velho Chico se tornar adolescente. Com isso as visitas foram rareando cada vez mais até o Chiquinho, por mais que gostasse do avô, não achava mais graça nas viagens para a pequena cidade de Pernambuco.


        Seu Chico, sentia falta do neto e ficava cada dia mais triste. Ligava para conversar com o Chiquinho que agora não queria mais saber de ser chamado de Chiquinho e sim de Tico, apelido dado pelos amigos e com quem passava a maior parte do tempo.


        Os anos passaram e seu Chico já beirando os oitenta anos, continuou apaixonado pelo mundo do circo. Todos os domingos era visto anunciando com grande alegria as atrações do Grande Circo Alegria. Que corressem, caso contrário não encontrariam mais ingresso. Em alto e bom som repetia:

        - Respeitável publico, não percam o grande espectáculo do palhaço Topetão, que de tanto deixar a franja crescer não há brilhantina que segure o seu topetão!

        - Olhem, olhem a mulher barbada que pensa que é homem! Mas homem não é não!

        E o povo da cidade rodeava o palhaço, as crianças aplaudiam. Eu não vou faltar, ouvia-se gritar. Seu Chico, quero dar muita gargalhada domingo, hein!  Escutava-se outro. Ô palhaço, tá na hora de cortar esse topete, vai tropeçar nele!

        Foi assim, que todos na cidade, por carinho ao velho Chico, resolvem enxergar e se alegrar  com o invisível Grande Circo Alegria do querido velho palhaço Topetão.

        Até que um dia o velho Chico chamou a atenção de um jornalista de São Paulo que fazia um documentário sobre a região. Como quem não quer nada o jornalista, filho de um dos moradores de Cachoeirinha, puxou prosa com o velho, que de tímido não tinha nada, e não se fez de rogado, desandou a tagarelar.

        - Sabe moço, disso o velho, tá vendo aquele circo ali, é o mais famoso de Pernambuco. Não há leão, elefante, engole espada ou cospe fogo que faça tanto sucesso como o palhaço Topetão. Eu, seu moço! Meu neto deve chegar logo para me visitar e assistir ao espectáculo.

        - Você conhece ele?

        Antonio era o nome do jornalista, que ficou intrigado com tudo o que estava vendo e quis conhecer um pouco mais da história do palhaço Topetão.

        - Será que a família sabia o que estava acontecendo?

        O palhaço leva o velho até sua casa. Conversa vai, conversa vem, o jornalista descobre que frequentou a mesmo faculdade do neto do Seu Chico.

        Voltando para São Paulo, Antonio procura o Chiquinho, nome carinhoso  conservado pelo avô. Conta tudo o que tinha visto e ouvido em Cachoeirinha, para o neto do velho Chico agora empresário de sucesso, desconcertado e triste.

        E se faz domingo outra vez na pacata cidade do velho Chico que vestido com sua surrada e agora rasgada roupa do palhaço Topetão, foi rumo ao Grande Circo Alegria. Logo percebeu um agito fora do comum nas ruas, as crianças gritavam alegres.


        O palhaço diminui o passo, coçou os olhos, firmou a vista e viu uma grande névoa de poeira subindo no terreno de terra batida, local do seu circo. Aos poucos, a poeira baixou e surgiu uma grande tenda de lona colorida com uma bandeira se agitando no ar onde podia-se ler Grande Circo Alegria em letras garrafais e coloridas.


        Seu Chico, arregalou os olhos que brilharam como os de uma criança que ganha um doce. Viu leões, macacos e tigres enjaulados. Elefantes elegantemente enfeitados, com sinos nas patas anunciando sua chegada. Malabaristas, palhaços com longas pernas de pau, homens cuspindo fogo pela boca, mulheres com cobras passeando nos seus corpos, uma mulher barbada feia de da medo.

        De repente, veio em sua direção um lindo jovem vestindo sua roupa de Topetão que lhe estendeu os braços fazendo palhaçadas e dizendo, venha cá meu vô, vamos para o circo, todos esperam o palhaço Topetão na arena, o espetáculo precisa começar! O velho Chico, como sempre fazia, sem pestanejar seguiu adiante em direção do seu circo para mais uma apresentação.

        Como tudo que é bom acaba um dia, depois do espetáculo o neto do palhaço explicou para o pai que infelizmente o circo precisava continuar suas apresentações pelo mundo afora e que se ele concordasse, ele, seu neto a partir daquele dia seria o jovem palhaço Topetão.

        E assim, a estória do Grande Circo Alegria e seu palhaço Topetão chega ao fim.

        

NATAL IMPREVISÍVEL - Maria Luiza Malina


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NATAL IMPREVISÍVEL
Maria Luiza Malina

Véspera de Natal. O motorista segue as ordens de dona Ephigenia viúva, passada da meia idade, herdeira de grande fortuna – apanhar a única filha Helena no Abrigo dos Amigos, fundado por ela própria. Pequenos núcleos formados por apartamentos individuais e ampla área externa de lazer, uma mini cidade para pacientes de difícil convívio familiar – como costumava tratar a doença da filha em seus 19 anos.

No trajeto, ruas repletas de passos apressados tinham um só sentido – as compras de Natal. Trânsito lento em meio da multidão. Helena observa pela janela do carro uma pessoa a passos lentos que esbarra no vai e vem dos transeuntes e se encosta a uma montanha de sacos pretos empilhados junto ao poste. Ela rompe o silêncio:

- Senhor Afonso, veja como as pessoas são boas. Aquela pessoa recebeu tantos presentes. Que maravilha. Também recebi presentes hoje, mas não tantos como ele.

- Que bom minha filha – resumiu seu entendimento numa pequena frase, observando pelo retrovisor o quanto a menina crescera desde o último Natal.

Afonso há muito as conhecia. A cada ano o ritual se repetia e, dia vinte e seis ele a levaria de volta. No final do próximo ano a buscaria. Entristeceu-se ao comparar as dificuldades financeiras de sua própria família, mas havia saúde e convívio. Para aquela pobre menina rica não havia nada disso, tão pouco sabia o que era isto, seu mundo era vivido de momentos – nenhum dia para trás e nem outro para frente – julgava que talvez, ela fosse realmente feliz, que Deus sabia o que estava fazendo. A mãe pouco a visitava durante o ano. Estava sempre às voltas com atividades beneficentes, sociais e é lógico, um tempo sagrado para as monótonas segundas feiras em que reunia as amigas para um chá regado de fofocas e carteado; “as segundas da minha mulher são passadas no tanque e na faxina colocando em ordem a casa os filhos na escola e...”

- Pare, pare - gritou – abra a porta, quero ajudá-lo a abrir os presentes!

O susto do grito apavorou Afonso tentando desviar o carro, controlando as atitudes de Helena pelo espelho. “Meu Deus! O que faço? Trânsito parado, as portas estão travadas. Se ela ficar muito nervosa vai começar a me agredir. Melhor telefonar para dona Ephigenia. Coitada não queria preocupá-la. Também não posso levar porrada aí é que vai ficar pior, com a gritaria da moça as pessoas podem pensar que eu estou abusando dela. Ela empurra o assento, minha nossa! Ainda quebra o carro. Anda trânsito, anda! Melhor rezar uma Ave-Maria. Ave-Maria, o pão nosso de cada dia, não, não, não é isso .... Mal acabei de notar que estava misturando as rezas e ia começar tudo de novo quando...Uma fantástica idéia surgiu.”

- Calma senhorita Helena, fique calma, estou procurando um jeitinho de estacionar. Acho melhor a gente descer do carro e dar uma carona para moço e o levar para jantar na sua casa. O que acha?

- Sim. E os presentes dele?

- Também já pensei nisto. Enquanto a senhorita conversa com ele, eu coloco os sacos, digo os presentes no porta-malas e, assim vocês poderão abrir no jardim de sua casa, debaixo da linda árvore iluminada.

- Ótimo, vá chamá-lo. Vá chamá-lo. Espero aqui. Ele vai se sentar aqui atrás comigo.

 Afonso a observou esfregando as mãos ansiosas. Precisava ser rápido, antes que ela fuja do carro. Saiu. Aproximou-se do rapaz. Prometeu levá-lo a um restaurante. Ele aceitou de imediato. Neste mesmo tempo enquanto abria a porta para acomodá-lo, apanhou dois sacos mal cheirosos e os jogou no porta-malas. Entrou no carro aliviado, percebendo a estranheza dos transeuntes em vê-lo recolher os sacos. O trânsito se aliviou milagrosamente até a residência. Helena e o novo amigo conversavam como grandes amigos. Ao chegarem, o portão se abriu para o imenso jardim com a árvore de Natal enfeitada e embaixo muitas caixas coloridas. A senhora Ephigenia a aguardava sem se importar com a companhia da filha que, lhe sorria e a chamou por “mamãe, tudo bem!”

Afonso fez um movimento de calma para a patroa que, o entendeu. Ela estranhou a atitude de Afonso em abrir o porta-malas e retirar sacos de lixo, depositando-os na calçada. Seguiu os movimentos de Afonso que, olhou para o céu e se persignou. Ouviu que agradeceu o pedido de ajuda recebido.

- Obrigado meu Senhor. Obrigado por fazer uma pessoa feliz. Obrigado pela família e por todas as atribulações que me destes. Ficou em paz assim como sua patroa.

Na volta ao Abrigo dos Amigos, desta vez Helena retornou com seu amigo Porfírio que, após ser diagnosticado passou a conviver com o tratamento de desintoxicação. Nunca mais retornou à cidade.  Com o tempo e dedicação tornou-se Diretor do Abrigo, tendo como paciente sua eterna Helena.

Dona Ephigenia viveu um Natal especial. Percebeu em Porfírio o retorno do primogênito que falecera numa véspera de Natal. O Natal é período de renovação, reconciliação, compartilhamento e esperança em dias melhores.

                                                                        

Meios que justificam o fim - José Vicente J. de Camargo


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Meios que justificam o fim
José Vicente J. de Camargo

O cenário era de apreensão e expectativa no Congresso. Deputados formavam rodinhas nervosas querendo saber das últimas novidades sobre o interrogatório a que o colega de partido estava sendo submetido naquele exato momento perante o juiz da Vara de Crimes contra a Constituição, mais conhecido como de colarinho branco:                                   
- Ele delatou alguém? Deu algum indício? Precisamos reunir a bancada urgente para definirmos a posição do partido contra qualquer acusação que recebermos. A união de todos é a melhor arma que temos, principalmente neste ano eleitoral.

A agitação do Congresso fervia por outros setores da sociedade, principalmente na mídia escrita e falada ávidas por notícias de primeira mão. Na redação do jornal “ O País”, o celular de André toca insistentemente sobre a mesa abarrotada de anotações rabiscadas com letras irreconhecíveis, xícara de café pela metade, vários livros abertos e o laptop ligado chamando a atenção dos passantes com sua luz indagadora. Ele sai às pressas da reunião com o redator onde está dando a última revisão em mais uma de suas reportagens de primeira página para a edição do dia seguinte:

_ ”Alô! Atente. Desembucha logo que estou com o Rui numa reunião de vida ou morte... O que? Ele deu com a língua nos dentes? Mencionou o Ramos? Ótimo! Isso vai dar pano para muita manga. Não fale mais nada pelo celular, pode estar bloqueado. Te encontro daqui a uma hora no boteco do Mané. Devo-lhe uma branquinha com torresmo...”

Voltou à reunião com os olhos esbugalhados soltando lampejos de emoções:

- Rui, novidades! O deputado ligou o ventilador pra cima do Ramos. Preciso que você segure a pauta por mais umas duas horas. Sei que vai ficar apertado, mas vai ser um furo e tanto. Vou encontrar minha musa e lhe ligo quando tiver redigido a bomba. Vou mostrar pro Ramos com quantos paus se faz uma canoa... Que não me venha com ameaças que repondo com cadeia. Estou a um passo de ganhar o premio “furo do ano”!

Desde que se formara jornalista na melhor faculdade da cidade, Andre sonhava em ganhar o prêmio de melhor repórter investigativo do ano. Espelhava-se em seu professor favorito, que além de jornalista de um dos mais renomados jornais, era também advogado - sócio de um reconhecido escritório de advocacia civil e criminal. Fez vários estágios em diversas redações de jornais e revistas, em diferentes áreas onde havia disponibilidade de vagas – a maioria gratuitamente. Depois de formado, continuou com cursos de especialização focando a área de seu interesse, a   investigativa, principalmente a proveniente de abuso de autoridade, desvio de dinheiro público, mal governança, golpes financeiros. Grande parte do seu interesse por essa área, vem do seu pai, que sempre ensinou a ele e seus irmãos, que a ética e o respeito ao próximo vem em primeiro lugar. Nos jantares em família, comentava o descaso dos ricos e poderosos pelos menos afortunados, a lentidão da justiça e as brechas da lei na punição dos culpados. Quando soube que ele queria ser jornalista, o apoiou em todos os sentidos, inclusive financeiramente. Foi também através dos contatos de seu pai – dono de uma pequena construtora de casas populares – que ele conseguiu uma entrevista com o diretor comercial do jornal “O País”, que por sua vez, o indicou com boas referências ao redator chefe. Este gostou dele a primeira vista, pois viu nele as características essenciais que fazia questão que os candidatos  à uma vaga em sua seção deveriam ter, isto é, os famosos “3 is”: Iniciativa, impulso e ideias... E era justamente isso que não faltava a Andre. Assim iniciou como segundo auxiliar do repórter sênior encarregado dos crimes de corrupção passiva e ativa da vara criminal do fórum da comarca da capital. De início se encarregava de investigar pequenos delitos, mas dado ao seu bom desempenho, foi crescendo na importância dos crimes, envolvendo pessoas de renome na mídia nacional.

Num “happy hour” entre os colegas da redação, ouviu pela primeira vez o nome de Adalgiso Vieira Ramos, poderosa personalidade  do meio comercial, industrial e financeiro. Havia suspeita (para alguns comprovada) de que estaria metido com negócios espúrios, falcatruas, enriquecimento ilícito e até assassinatos. Sem saber bem o porque, Andre se sentiu atraído em aprofundar essas suspeitas, para quem sabe – como é usual dizer no meio jornalístico - fisgar um tubarão até agora considerado lambari. Na mesma noite pôs-se então a investigar na internet tudo o que era possível saber sobre ele:

Que nascera numa pequena cidade no interior de Minas Gerais, de uma família de classe média baixa, filho de sitiante e de uma costureira, vários irmãos, estudou só até o segundo grau (embora algumas pesquisas indiquem que tem diploma universitário comprado), começou a trabalhar cedo na roça do pai e depois, para  ajudar no sustento da família, seguiu seu instinto para o comercio e, após muita persistência, conseguiu um emprego de ajudante numa loja de tecidos, passando depois, dado à sua boa lábia, a balconista e mais tarde a gerente. Todas as fontes de sua biografia mencionam sua capacidade de organização, seu dom de convencimento e, sobretudo seu instinto de liderança e força de vontade de atingir objetivos. Em poucos anos, devido aos seus modos austeros de vida, conseguiu economizar o suficiente para comprar – ajudado pela morte subida do dono e pela falta de herdeiros, a loja onde trabalhava e assim iniciar sua carreira meteórica de empresário competente, mas também temido pelo seu gênio agressivo não só nos negócios, mas também no meio social. As informações revelavam seu caráter bipolar, ora sociável, ora intransigente e bruto, podendo passar de um extremo ao outro em poucas horas. Dotado dessas características, expandiu seu império com ramificações em vários segmentos de negócios. Crônicas, artigos e entrevistas jornalísticas, ressaltam essa dupla personalidade do Ramos, com elogios pela sua astúcia empresarial, mas também de ódio pela sua falta de consideração ao próximo, sua ganancia e sua vingança para aqueles que ousarem impedir seus intentos.


Quanto mais se informava, mais ânimo adquiria Andre em fazer público os malfeitos do Ramos. Suas reportagens eram cada vez mais inflamadas e inquisitórias. Seu redator chefe – dado ao aumento das vendas do jornal soltava-lhe as rédeas quanto as autorizações para as publicações das suas reportagens e nos espaços das chamadas de primeira página.

Andre, no seu envolvimento cada vez mais intenso com as transações obscuras do Ramos, passou a se interessar também por sua vida pessoal: seus hobbies, hábitos caseiros, gostos pessoais por roupas, lugares prediletos, férias, comidas, familiares. Foi assim que descobriu que uma filha dele, considerada hippie e de ideias independentes, por discordar de suas maneiras opressivas de educação, morava fora de casa. Através de informações de outros jornalistas, descobriu que ela tinha um twitter nas redes sociais e passou a acompanha-la. Descobriu que ela frequentava um clube de jazz acompanhando uma banda todas as quartas-feiras e que tinha uma queda pelas músicas de Ben Goodman. Passou então a frequentar o tal clube nesses dias – não antes de se informar sobre os melhores jazzistas do passado e da atualidade, os diferentes tipos de jazz assim como a diferença entre jazz e blues. Numa quarta-feira, quando a banda abriu sua apresentação para pedidos do público, ele solicitou, olhando para ela, uma do Ben Goodman. Ela sorriu abrindo-lhe a oportunidade de – após o termino do show, se achegar a ela e sussurrar-lhe o convite para um drinque. A conversa entre eles se restringiu às preferencias de cada um pelos ícones do jazz e era constantemente interrompida por amigos dela querendo abraça-la pela ótima performance. Ele só temia que algum conhecido o reconhecesse e mencionasse sua profissão de jornalista, coisa que ela, pelo twitter já mencionara ter total desconfiança pelos constantes ataques a seu pai. Do pai, Andre nada conseguiu saber nem nesta, nem nas noites subsequentes de quartas-feiras, pois ela, que se apresentara como Inês, desconversava quando o assunto era família. Por seu lado, Andre sabia que estaria pisando em ovos, se tentasse mencionar o tema, pondo a perder o espaço que conquistara com ela a duras penas e do qual já sentia falta fora das noites de jazz. Com os cuidados ocultos de ambos os lados, seguiram tomando seus drinques até que numa quarta, o terminaram num motel da periferia sem muita convicção como se estivessem seguindo um ritual preestabelecido.

Portanto qual não foi surpresa de Andre, quando, na semana seguinte, ela lhe apresentou o namorado Igor que estava de excursão por varias capitais do país como pianista de uma banda de jazz. Ele disfarçou seu desapontamento, ela fingiu que não percebeu, evitando olhar-lhe nos olhos. A partir dessa noite seu relacionamento com Inês esfriou sem conseguir seu intento de somar informações sobre seu pai, mesmo porque, esse objetivo já deixara de ser o motivo de seus encontros com ela.

As reportagens investigativas sobre suspeitas de falcatruas entre os poderes público e privado têm sequência. Serviram de base para posteriores denúncias dos procuradores do Ministério Público, buscas e apreensões de materiais suspeitos, oitivas de testemunhas e intimações de eventuais réus, entre eles Ramos.

Isto gerou um movimento crescente de manifestações populares contra os crimes de colarinho branco, ao pagamento de propinas a servidores públicos e políticos, a falta de ética das empresas e dos corruptores envolvidos. Neste contesto, Andre recebe ameaças de rapto e morte, algumas das quais, ele atribui aos capangas de Ramos já que no seu currículo de desafetos, constam ameaças iguais e mesmo a de responsabilidade de mando de morte da sua mulher, cujo tiro que a vitimou nunca chegou a ser devidamente esclarecido.

Chegando a redação do jornal, Andre recebe o recado que o redator chefe o procura com urgência:

- Que foi? Não está aguentando a pressão de cima? Pergunta

- Essa tal pressão tende a explodir a qualquer momento, reponde o chefe. Acabo de receber a informação da delegacia de sequestros e desaparecidos que o Ramos acaba de fazer um BO que sua filha Inês está desaparecida há três dias, sem pistas e com suspeita de ter sido assassinada pelo namorado, um tal de Igor, que já tem mandato de prisão expedido e está sendo procurado. Eles estavam morando juntos e, apesar de terem um relacionamento conflitoso, pretendiam se casar em breve. Ele foi o último a estar com ela e vizinhos confirmam terem ouvido discussões do casal no dia do desaparecimento. Nessa situação é melhor termos todo o cuidado ao divulgarmos notícias sobre o Ramos. Checar bem a veracidade das fontes de informação.

Andre sentiu um nó na cabeça. Sem dar satisfações, saiu em disparada à sua mesa e procurou a agenda – tratando-se de assuntos pessoais não usava a agenda eletrônica, mas sim uma pessoal, camuflada na bagunça da sua mesa de trabalho. Ali encontrou os telefones dos figurantes da banda de jazz de Inês e procurou aquele que era o mais amigo dela. Ligou para ele e sem mencionar o motivo marcou um encontro no clube para dali a pouco:

- Isso parece mais história para boi dormir! Diz o amigo ao ouvir o relato nervoso de Andre. O relacionamento de Inês e Igor não era tão problemático assim. Desavenças havia, mas eram discussões de ciúmes dado as noitadas que os dois faziam as cantadas que recebiam dos fãs – inclusive a sua, não se lembra? Inês estava isso sim preocupada com o pai que não aprovava seu relacionamento com Igor que considerava um João Ninguém, tentando dar o golpe do baú, principalmente depois que foi noticiado que ele a nomeou sua herdeira em vários negócios espúrios. Tentaram manter o casamento em sigilo, mas alguém aqui do clube dedou a um dos capangas do pai em troca de um bom dinheiro. Dias depois apareceram no clube dois desses capangas e provocaram propositadamente uma briga entre eles, sacaram as armas e dispararam ao leu tentando atingir Igor e, por incrível que pareça a própria Inês. Foi o suficiente para que o casal arrumasse a trouxa às pressas e desaparecesse. Mas o pai, por trás dos panos, mandou capangas atrás e semeou na polícia e na imprensa essa história de sequestro e assassinato da filha por Igor.

Andre, enquanto ouvia, já tramava na mente a reportagem que faria. Usaria o fato real da briga simulada dos capangas no clube e dos tiros disparados por eles. Teria nos demais frequentadores do clube daquela noite, testemunhas da veracidade do acontecido - assim estaria obedecendo seu chefe redator quanto a fidelidade das fontes. Completaria o texto com sua versão própria – que poderia lhe custar o tão sonhado prêmio de melhor repórter investigativo do ano, mas era para a salvação de Inês, que ainda lhe cutucava o coração. Não mencionaria que os tiros foram dados ao leu, mas sim dirigidos a Igor, provocando a fuga apressada do casal. Só mais tarde, passado o susto, percebeu-se que um dos tiros acertou Igor com certa gravidade. Inês, no esconderijo improvisado por amigos e em represália ao pai, convocaria o repórter em questão para relatar o que sabe das falcatruas paternas, principalmente dos negócios que têm participação majoritária sem nunca ter sido informada ou entender coisa alguma. E de outros que têm conhecimento, envolvendo políticos influentes de dentro e de fora do Governo, podendo fornecer a polícia federal pistas consistentes para a intimação dos envolvidos. As reportagens de Andre poriam lenha na fogueira, aumentando a pressão da opinião pública para delações premiadas dos réus mais vulneráveis, forçados também por seus familiares.


E assim se passou, fechando o ciclo jornalístico daquela manhã nervosa no Congresso Nacional. Resta pedir a Inês e Igor, através do amigo jazzista, que se quedem onde estão, pois doravante será ele, quem dará as cartas dentro do princípio que os meios justificam o fim, e neste caso, um fim venturoso para todos os milhões de cidadãos ansiosos para um despertar glorioso do gigante adormecido...