UM DIA, UM CACO DE VIDRO - MARIA LUIZA MALINA



TEXTO ENVIADO PARA CONCURSO ESCREVIVER 2018



Um dia, um caco de vidro

Maria Luiza Malina

Já passava da meia noite estrelada, que anunciava a entrada de um novo ano, talvez as estrelas ou a noite nem sabiam se estariam fazendo parte de algum acontecimento importante naquele pequeno planeta.

O fato é que Maria Cristina nos seus 23, suspirava pelos quatro cantos do jardim. Um grande amor havia se partido. Um grande vaso de cristal havia se quebrado. Muito magrinha, os longos cabelos cobriam-lhe as costas imitando um negro manto. No jardim, na escassez das pequenas lanternas, a silhueta meiga era agora nada mais do que algo estranho olhando para o infinito, cantarolando a música da época dos anos sessenta, remetendo a um chamado longínquo “Marcianita branca ou negra, gorduchinha, magrinha, gigante serás meu bem...”

As mãos entrelaçadas imploravam a vinda de algum marciano “venha buscar-me, estou pronta” lágrimas e lágrimas escorriam pela meiga face. Acreditava fortemente que, alguma coisa aconteceria. O transe. Na verdade, o que ela queria mesmo era morrer. As ondas cerebrais estreitamente ligadas à matéria e à energia emitiam uma vibração que só ela captava. Um chamado. Tudo parou.

Dos olhos molhados viam-se agora dois faróis enormes a iluminarem a direção em que olhava. Os cabelos esvoaçam causando cócegas. O longo vestido seguia o balançar do corpo em êxtase. Um riso histérico. Um chamado. Tudo parou.

Lá está ela. Sem identidade. Deitada na grama tendo o sol a retirar a coberta do sereno por acordá-la. Bocejou looongo. Não era a mesma Maria Cristina do dia anterior. Alegre sentou-se à mesa para a refeição matinal. Substituiu os pães por frutas e muita água. A mãe estranhou as novas atitudes refinadas e de pouca fala. Já não era mais a mesma. Intrigou-se com as perguntas frequentes “quanto tempo falta para escurecer” ou “a noite vai demorar a chegar”... Cansada das atividades da passagem do ano e visitas, não se dera conta de que a filha passara a noite no jardim. Dormiu boa parte do dia e, pouco se alimentou. “É ressaca” desculpava a mãe, tem cura.

A noite chegou com uma demora de 1 hora de atraso, era horário de verão. Se uma folha ao cair muda o todo ao seu redor, imagine uma hora.... Lá estava ela a postos. Rodeada da família em conversas entrelaçadas dos mais diversos assuntos e sons. Aquilo que seria uma simples confraternização começou a embaralhar a cabeça. Saiu de perto. Os passos eram suaves, desviando de coisas e pessoas com muita graça. Sua mãe a acompanhava com olhos. Besliscava um aperitivo daqui outro dali, nada de grandes comidas “é ressaca” pensava a mãe.

O escuro se fez junto ao silêncio. O tempo estava a seu favor. Na casa, todos dormiam, até mesmo a cuidadosa mãe. Aos pequenos e volitantes passos lá se foi Maria Cristina ao encontro vibracional que recompôs a harmonia e o equilíbrio tão devastado pela quebra do grande amor.

Não pensava em nada. Em um instante lá estava. Impávida, leve com a canção à boca. Translúcida, sim era assim que ela aos poucos se tornava, uma imagem desgastada, sem sombra. Um borrão talvez.

Volitava embalada em sua leveza, amada e segura pelas mãos de alguém que bem conhecia, mas não sabia o nome. Deixava-se levar. Eu mesmo arrisquei um piscar de olhos, aprovando sua decisão. A perdi no espaço, confesso ou, foi-me sugerido um torpor de silêncio. Nada mais vi. Tampouco quanto ao seu retorno. Inacreditável.

Na manhã seguinte a mesma cena com a mãe perplexa. O semblante de Maria Cristina brilhava, brilhava. “Esta noite ela não me escapa”, murmurava a mãe com seus botões.

Maria, a linda Maria Cristina passou o dia entre os lápis e papéis, desenhava cidades vistas por cima, plantas exóticas, animais gigantes, figura de humanos um tanto estranha, mapas, planetas e um escuro imenso. Nesse imenso escuro mergulhava e, a cada mergulho seu conhecimento captava tudo com muita facilidade.

A noite se apressou. Nuvens escuras anunciavam um forte temporal. Portas trancadas. Todos se recolheram após o jantar. Inclusive ela. Exausta na sala, a mãe vigilante adormeceu. Isso não seria problema. E assim foi.

O quarto de Maria Cristina tinha uma porta balcão. Abriu-a. A canção chegou-se em forma de esquecimento. Ao seu lado a mão estendida e o convite para o passeio. O brilho dele era tão intenso que, ofuscou minha visão em cegueira repentina, quando dei-me conta ela voava feliz acenando sem olhar atrás.

Na manhã seguinte... O ritual da mesa posta estava sem a presença dela. “Dorminhoca, vou acordá-la” disse a mãe.

Ao entrar no quarto, o clarão repassou-lhe a mesma sensação que eu tive ao vê-lo, fechou os olhos e tudo sumiu.

— Maria Cristina! Onde você está, acorde, levante-se? – gritava a mãe desesperada, pressentindo alguma desgraça.

— Estou aqui mamãe, ao seu lado me vestindo – cantou afetuosamente.

— Se está aqui então me abrace, quero sentir seu corpo – tremulava a voz da mãe.

— Mamãe querida. Estou aqui. Sempre estarei. Sei que estás preocupada comigo. A experiência que tive em sonho ou mesmo vivida, sei lá, pois pareciam tão reais, tornaram tão mesquinhas às minhas diferenças, frente a grandeza do Universo. E eu, imagine só! Achando que nada mais valia a pena. Vou contar tudo o que “vivi”!

Sentia-me uma Wendy na história do Peter Pan. Esperava por ele todas as noites, sentia que ele viria. Sei e vi claramente que existe sim alguns alguéns a mais ao nosso redor e, estão ao nosso alcance, basta sermos e acreditarmos em nosso potencial. Somos todos pequenos deuses.

A mãe sentou-se à cama observando sua menina a se vestir. Ouvindo, adormeceu no conto das viagens entre os planetas, admirando a inteligência da filha, o quanto havia evoluído naquelas férias graças a um caco de vidro, do tamanho de um meteoro, desviado caminho. Acordou com aquela sensação que bem conhecemos – de vida realizada – mas, onde estaria Maria Cristina! 


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