HÁ MAIS COISAS ENTRE O CÉU E A TERRA
DO QUE PODE IMAGINAR NOSSA VÃ FILOSOFIA.
William
Shakespeare
HÁ MAIS COISAS ENTRE O CÉU E A TERRA DO QUE PODE IMAGINAR NOSSA VÃ FILOSOFIA.
William Shakespeare
Ledice Pereira
PSEUDÔNIMO: PIGMALEÃO
Aquela era a décima resposta
negativa que Rafael recebia de, no mínimo, uns cinquenta curriculum vitae, que
enviara para os mais variados escritórios de advocacia da cidade. A maioria nem
lhe dera satisfação.
Recém-formado, recusara de cara a
oferta do pai, para trabalhar em sua empresa, como assistente no departamento
jurídico, recebendo um salário condizente com um iniciante.
Recusando-se a ganhar aquela
mixaria, saiu, batendo a porta, sem nem mesmo se despedir. “O que o velho
estava pensando? Que iria se aproveitar dele? Estava muito enganado. Mostraria
sua capacidade.”
Desde
criança Rafael tinha o rei na barriga.
Nascido
em berço esplêndido, acostumara-se, desde sempre, a ter tudo a seus pés. Era
pensar em algo, mencionar para a mãe e logo ver seu sonho realizado.
Um
atrás do outro: a fantasia mais extravagante, o carrinho mais completo e caro,
a bicicleta último tipo. Coleções, as mais diversas, álbuns de figurinhas,
todos, porém incompletos. Não tinha paciência, nem persistência, para
completá-los. Interrompia, assim que tinha conhecimento da existência de outro.
Ao
completar oito anos, ganhou do pai uma viagem para a Disney. Foram dias
intensos em que, em companhia da babá, percorreu todas as atrações. Queria
abraçar o mundo no mesmo dia, usufruir de todos os brinquedos numa tacada só.
No final do quarto dia, a barriga da perna doía e parecia pisar em brasas,
tanto lhe ardia o pé. Além do mais,
formiga que era, não resistira às gulodices enormes e coloridas que havia em
toda parte, provando de tudo. Não deu outra, o organismo reclamou. E teve que
amargar um dia inteiro dentro do quarto de hotel. Ele, que não estava
acostumado a ser contrariado, passou o dia comendo frutas e torradas, bebendo
água e jogando vídeo game e, lógico, descontando seu mau humor na coitada da
babá.
A
mãe, ah! a mãe, enquanto isso, dedicava-se às compras. Chegava carregada de
sacolas, jogava para o alto os sapatos e atirava-se na cama.
“Era bonito de se ver!!!”
Nem
essa babá, nem as tantas outras que lhe sucederam, suportaram o trabalho por
muito tempo. O menino chegou a agredir, fisicamente, algumas delas. A mãe
atribuía a uma personalidade forte.
Na
adolescência, não poderia ser diferente, o garoto tornou-se insuportável tanto
em casa, com os empregados, como com os colegas de classe.
Por
outro lado, Rafael possuía um QI acima do normal, que o tornava um dos
primeiros alunos da escola. Por essa razão, julgava-se superior.
Cursou
o ensino fundamental com um pé nas costas, decidindo fazer o último ano do
ensino médio fora do país.
Num
intercâmbio, promovido pelo Rotary Club, ao qual o pai pertencia, teve que
obedecer a algumas normas impostas pelo próprio programa e outras da família
que o recebeu em Londres. Como estar ali, era algo que muito desejava,
submeteu-se às regras.
Ao
retornar, entretanto, tudo que aprendeu foi por água abaixo. Voltou a ser
aquele ente irascível.
Aprovado
no vestibular da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, tentou subornar
os veteranos para que não lhe cortassem os cabelos. Achava que sempre poderia
comprar quem quisesse.
Sua
alta dose de arrogância, menosprezando os colegas, resultou no afastamento deles.
Com senso crítico aguçado, achava o conteúdo das aulas medíocres.
Invariavelmente, discutia com os mestres, que julgava incompetentes.
Rafael
cavou sua própria cova. Se, de um lado, ia bem em todas as matérias, de outro,
vivia só. Não tinha amigos. Todos o evitavam. E, quer saber, ele também achava
o ambiente um porre. Tanto que desistiu de participar da festa de formatura, o
que pra sua mãe, que já havia idealizado brilhar mais do que as outras, com seu
rico figurino, representou a morte.
O
pai, ao contrário, não criara grande expectativa. Ele, que nunca concordara com
a forma de educar da esposa, mas que, por estar inteiramente voltado para o
trabalho, deixou que ela realizasse a difícil tarefa, sabia que o que viria
após a formatura, era o que importava.
A
vida havia sido desenhada de forma tão colorida para o menino, que lhe
dificultara distinguir o preto e branco nela intrínseco.
A
realidade chegou, mostrando-lhe a cara nua e crua.
Aquele
rapaz, mimado, que sempre obtivera tudo que almejava, para quem a vida se lhe
apresentara repleta de facilidades, enfrentava, pela primeira vez, o efeito
daquela palavrinha de apenas três letras, tantas vezes pronunciada por ele, o
NÃO.
Esse
era apenas um dos obstáculos a enfrentar.
O
pai, que havia construído seu império com muito trabalho, dedicação, esforço,
perseverança e determinação, ficou firme, embora pressionado pela esposa,
preocupada com a frustração do pobre filhinho. Ela sofria, vendo-o passar pela
humilhação de ser preterido.
Após
uns seis meses de intensa busca, Rafael conseguiu lugar como auxiliar no
departamento jurídico de uma imobiliária. O salário, bem, o salário era a
metade do que o pai lhe oferecera.
Ah,
e teria que se destacar se quisesse mesmo continuar ali.
Quem
o indicou para a vaga foi Jorge, um ex-colega de classe. Um daqueles a quem ele
menosprezou. De família humilde, entrara como estagiário, ainda no terceiro ano
da Faculdade. Além de cumprir o estabelecido no currículo, contribuía com as
despesas de casa. Por se revelar esforçado, competente e sedento do saber, em
poucos meses foi efetivado.
Rafael
foi obrigado a aceitar as condições oferecidas, até porque o pai cortara-lhe a
mesada.
Ali,
no pequeno escritório, descobriu que não era o ‘sabe tudo’ que sempre se
julgara ser. Muitas vezes teve dúvidas, sendo obrigado a ter a humildade de
perguntar ao colega como agir, aquilo sim, estava sendo um aprendizado: que não
se vive só; que cada ser humano tem seu valor; que devemos reconhecer nossas
limitações.
Era
preciso cair na real, sentir o chão debaixo dos pés, tomar consciência de que o
ser humano, ou quem quer que seja, é apenas um minúsculo e insignificante grão
de areia, na imensidão do planeta terra em que habita.
Era
preciso considerar que esse planeta é infinitamente minúsculo, em proporção aos
demais, nessa imensa galáxia em que está inserido, e que essa galáxia é apenas
uma dentre as inúmeras existentes num Universo gigantesco.
Rafael
era esperto o suficiente para enxergar que sua existência significava, apenas,
um milésimo ou milionésimo de uma cabeça de alfinete, nesse imenso Universo em
que vivia.
Entretanto,
ao vislumbrar oportunidade de promoção, por ocasião das férias de Jorge, sutilmente,
aproximou-se do chefe do departamento e, como quem não quer nada, passou a criticar
a forma como o colega elaborava e analisava os contratos sociais, segundo ele,
em desacordo com as necessidades da empresa. O
chefe, impressionado com o que julgava ser uma visão estratégica do jovem,
passou a ele a execução da tarefa. Não demorou muito para o rapaz assumir todas
as funções de Jorge, numa premeditada puxada de tapete. “O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”.
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