HÁ MAIS COISAS ENTRE O CÉU E A TERRA DO QUE PODE IMAGINAR NOSSA VÃ FILOSOFIA. - PARTICIPANTE DO CONCURSO ESCREVIVER 2018


HÁ MAIS COISAS ENTRE O CÉU E A TERRA DO QUE PODE IMAGINAR NOSSA VÃ FILOSOFIA.
William Shakespeare



HÁ MAIS COISAS ENTRE O CÉU E A TERRA DO QUE PODE IMAGINAR NOSSA VÃ FILOSOFIA.

William Shakespeare


Ledice Pereira
PSEUDÔNIMO: PIGMALEÃO

Aquela era a décima resposta negativa que Rafael recebia de, no mínimo, uns cinquenta curriculum vitae, que enviara para os mais variados escritórios de advocacia da cidade. A maioria nem lhe dera satisfação.

Recém-formado, recusara de cara a oferta do pai, para trabalhar em sua empresa, como assistente no departamento jurídico, recebendo um salário condizente com um iniciante.

Recusando-se a ganhar aquela mixaria, saiu, batendo a porta, sem nem mesmo se despedir. “O que o velho estava pensando? Que iria se aproveitar dele? Estava muito enganado. Mostraria sua capacidade.”

Desde criança Rafael tinha o rei na barriga.

Nascido em berço esplêndido, acostumara-se, desde sempre, a ter tudo a seus pés. Era pensar em algo, mencionar para a mãe e logo ver seu sonho realizado.

Um atrás do outro: a fantasia mais extravagante, o carrinho mais completo e caro, a bicicleta último tipo. Coleções, as mais diversas, álbuns de figurinhas, todos, porém incompletos. Não tinha paciência, nem persistência, para completá-los. Interrompia, assim que tinha conhecimento da existência de outro.

Ao completar oito anos, ganhou do pai uma viagem para a Disney. Foram dias intensos em que, em companhia da babá, percorreu todas as atrações. Queria abraçar o mundo no mesmo dia, usufruir de todos os brinquedos numa tacada só. No final do quarto dia, a barriga da perna doía e parecia pisar em brasas, tanto lhe ardia o pé.  Além do mais, formiga que era, não resistira às gulodices enormes e coloridas que havia em toda parte, provando de tudo. Não deu outra, o organismo reclamou. E teve que amargar um dia inteiro dentro do quarto de hotel. Ele, que não estava acostumado a ser contrariado, passou o dia comendo frutas e torradas, bebendo água e jogando vídeo game e, lógico, descontando seu mau humor na coitada da babá.

A mãe, ah! a mãe, enquanto isso, dedicava-se às compras. Chegava carregada de sacolas, jogava para o alto os sapatos e atirava-se na cama.

“Era bonito de se ver!!!”

Nem essa babá, nem as tantas outras que lhe sucederam, suportaram o trabalho por muito tempo. O menino chegou a agredir, fisicamente, algumas delas. A mãe atribuía a uma personalidade forte.

Na adolescência, não poderia ser diferente, o garoto tornou-se insuportável tanto em casa, com os empregados, como com os colegas de classe.

Por outro lado, Rafael possuía um QI acima do normal, que o tornava um dos primeiros alunos da escola. Por essa razão, julgava-se superior.
Cursou o ensino fundamental com um pé nas costas, decidindo fazer o último ano do ensino médio fora do país.

Num intercâmbio, promovido pelo Rotary Club, ao qual o pai pertencia, teve que obedecer a algumas normas impostas pelo próprio programa e outras da família que o recebeu em Londres. Como estar ali, era algo que muito desejava, submeteu-se às regras.

Ao retornar, entretanto, tudo que aprendeu foi por água abaixo. Voltou a ser aquele ente irascível.

Aprovado no vestibular da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, tentou subornar os veteranos para que não lhe cortassem os cabelos. Achava que sempre poderia comprar quem quisesse.

Sua alta dose de arrogância, menosprezando os colegas, resultou no afastamento deles. Com senso crítico aguçado, achava o conteúdo das aulas medíocres. Invariavelmente, discutia com os mestres, que julgava incompetentes.

Rafael cavou sua própria cova. Se, de um lado, ia bem em todas as matérias, de outro, vivia só. Não tinha amigos. Todos o evitavam. E, quer saber, ele também achava o ambiente um porre. Tanto que desistiu de participar da festa de formatura, o que pra sua mãe, que já havia idealizado brilhar mais do que as outras, com seu rico figurino, representou a morte.

O pai, ao contrário, não criara grande expectativa. Ele, que nunca concordara com a forma de educar da esposa, mas que, por estar inteiramente voltado para o trabalho, deixou que ela realizasse a difícil tarefa, sabia que o que viria após a formatura, era o que importava.

A vida havia sido desenhada de forma tão colorida para o menino, que lhe dificultara distinguir o preto e branco nela intrínseco.

A realidade chegou, mostrando-lhe a cara nua e crua.

Aquele rapaz, mimado, que sempre obtivera tudo que almejava, para quem a vida se lhe apresentara repleta de facilidades, enfrentava, pela primeira vez, o efeito daquela palavrinha de apenas três letras, tantas vezes pronunciada por ele, o NÃO.

Esse era apenas um dos obstáculos a enfrentar.

O pai, que havia construído seu império com muito trabalho, dedicação, esforço, perseverança e determinação, ficou firme, embora pressionado pela esposa, preocupada com a frustração do pobre filhinho. Ela sofria, vendo-o passar pela humilhação de ser preterido.

Após uns seis meses de intensa busca, Rafael conseguiu lugar como auxiliar no departamento jurídico de uma imobiliária. O salário, bem, o salário era a metade do que o pai lhe oferecera.

Ah, e teria que se destacar se quisesse mesmo continuar ali.

Quem o indicou para a vaga foi Jorge, um ex-colega de classe. Um daqueles a quem ele menosprezou. De família humilde, entrara como estagiário, ainda no terceiro ano da Faculdade. Além de cumprir o estabelecido no currículo, contribuía com as despesas de casa. Por se revelar esforçado, competente e sedento do saber, em poucos meses foi efetivado.

Rafael foi obrigado a aceitar as condições oferecidas, até porque o pai cortara-lhe a mesada.

Ali, no pequeno escritório, descobriu que não era o ‘sabe tudo’ que sempre se julgara ser. Muitas vezes teve dúvidas, sendo obrigado a ter a humildade de perguntar ao colega como agir, aquilo sim, estava sendo um aprendizado: que não se vive só; que cada ser humano tem seu valor; que devemos reconhecer nossas limitações.

Era preciso cair na real, sentir o chão debaixo dos pés, tomar consciência de que o ser humano, ou quem quer que seja, é apenas um minúsculo e insignificante grão de areia, na imensidão do planeta terra em que habita.

Era preciso considerar que esse planeta é infinitamente minúsculo, em proporção aos demais, nessa imensa galáxia em que está inserido, e que essa galáxia é apenas uma dentre as inúmeras existentes num Universo gigantesco.

Rafael era esperto o suficiente para enxergar que sua existência significava, apenas, um milésimo ou milionésimo de uma cabeça de alfinete, nesse imenso Universo em que vivia.

Entretanto, ao vislumbrar oportunidade de promoção, por ocasião das férias de Jorge, sutilmente, aproximou-se do chefe do departamento e, como quem não quer nada, passou a criticar a forma como o colega elaborava e analisava os contratos sociais, segundo ele, em desacordo com as necessidades da empresa.  O chefe, impressionado com o que julgava ser uma visão estratégica do jovem, passou a ele a execução da tarefa. Não demorou muito para o rapaz assumir todas as funções de Jorge, numa premeditada puxada de tapete. “O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”.

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