Olhos Verdes - José Vicente J. Camargo



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Olhos Verdes
José Vicente J. Camargo

Como a caçula de três irmãos, de corpo franzino e voz suave, passava despercebida no cotidiano da vida familiar. A atenção de meus pais era toda voltada para as peripécias, afazeres e opiniões de meus irmãos. Vez ou outra minha mãe jogava um olhar para mim perguntando triviais como: o que está fazendo, se já arrumara o quarto, pendurara a roupa ou escovara os dentes. De meu pai, nem olhar recebia, a não ser quando me pedia para buscar café, chinelos e o que mais detestava: seu cachimbo de cheiro mais fedido que o cocô do meu gato Thor, batizado com este nome, pela cor verde de seus olhos e ruiva de seu pelo, iguais aos olhos e cabelos do garoto homônimo da minha classe, que me fazia ruborizar ao mirar-me e que surgia sempre nos meus sonhos.

Mas essa vida à parte, não me afetava. Vivia em paz no cantinho que encontrara para mim. Compreendia, apesar dos meus dez anos, essa preferência dos meus pais pela força muscular dos meus irmãos, já que vivíamos quase isolados numa das ilhotas que compunham o delta do Rio das Neves - chamado assim por suas águas serem do degelo das montanhas nevadas que se perfilavam a alguns quilômetros da costa. Assim eles, como os demais habitantes – uns duzentos ao todo – dependiam, para sobreviverem, da própria força física e do bom tempo para a pesca do atum.

Como libriana, procurava me divertir com as minhas divagações. Imaginação para tal não me faltava. Ao contrário de meus irmãos, frequentava a escola primária da ilha, enquanto eles tomavam a barcaça das sete da manhã para o colégio na cidade em frente, no continente. Da porta de casa à da escola, demorava cerca de uma hora. Poderia fazer em bem menos tempo, mas, em segredo, pegava o caminho da praia para passar pelo costão de pedras, onde, pela maré da manhã, se formavam, nos buracos em sua borda, os aquários naturais repletos de peixinhos coloridos, moluscos, baratinhas marítimas e, com sorte, até siris e camarões. Minha alegria era descobrir algum peixinho de cor diferente ou “caçar” uma baratinha para o siri que supunha faminto.

Foi então, após dois verões bem quentes e chuvosos, que comecei a observar que as piscinas de peixinhos estavam desaparecendo. A maré subia cada vez mais. Se continuasse assim, um dia o costão seria engolido pelas ondas. Estranhei o fato e contei aos amiguinhos da escola que não me deram bola, e à professora que disse ser imaginação minha. Em casa comentei com minha mãe que me deu uma bronca por não ir direto à escola e perder tempo com bobagens de peixinhos e baratinhas. Além do mais podia escorregar nas pedras, rasgar minha roupa. Meu pai ouviu e continuou impassível a fumar seu cachimbo. Meus irmãos só queriam saber da festa de formatura e que garotas convidariam para dançar a valsa.

Os meses se passaram! Continuei meu desvio pelo costão (para minha mãe dava a desculpa de passar pela casa da minha melhor amiga para irmos juntas a escola) e, com tristeza, continuava a observar a diminuição crescente dos laguinhos na borda. Mas, dado a frustração do primeiro anúncio, preferi não comentar com ninguém.

Até que um dia, num jantar, meu irmão mais velho solta a língua:

― Não é que estão dizendo no colégio que, dado ao “el niño” (aquecimento das águas do pacífico), provocado pelos últimos verões quentes e chuvosos, e também ao aquecimento global, as águas do Rio das Neves estão subindo e inundando as várzeas. O campo de futebol e o atracadouro já desapareceram. O pessoal que mora nessa área está se mudando para casas de parentes e amigos. Se a água continuar subindo e aumentar o número de desabrigados, o colégio fecha e transforma as salas de aula em acampamento. Amanhã a barcaça que nos leva, já vai atracar no lado oposto ao estuário do rio e, nesse fim de semana chegam políticos graúdos da Capital com especialistas para estudarem a situação.

― Se vêm com políticos, só podem ser especialistas em roubar o dinheiro público. Estão atrás, isto sim, da ajuda financeira do Governo. Replica o pai carrancudo.

― E tem mais! Retruca o irmão mais novo: meu professor de geografia disse que a enchente pode inundar as ilhas do estuário e, se for das pequenas, até “engoli-las” por completo. A nossa, com certeza, vai estar entre elas. É melhor irmos arrumando as trouxas e pensando num novo lar...

Neste momento tornei-me o foco surpreso dos olhares de todos! Decifrei seus pensamentos:

“Como pode essa garota, vivendo no mundo da lua, tão distante nos seus afazeres, observar as mudanças da natureza com tanta precisão?”

Cresci em tamanho, empinei o busto inerte e acariciando o Thor, levantei da mesa exclamando:

― Sou eu quem vai escolher o local do novo lar! Será numa outra ilha maior e mais distante, com muitos costões a beira mar.

Ah! E que na escola tenha garotos de olhos verdes e cabelos ruivos...


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