Matar ou morrer
Ises A. Abrahamsohn.
Amigos são para essas coisas, era o que
Juvêncio repetia a Leonardo, seu grande amigo e a quem tentava convencer. E, de
fato, era o seu melhor e único amigo desde os tempos de adolescência em
Penápolis onde cresceram. Agora desesperado, quase chorando, Juvêncio estava de
volta e expunha o que pretendia. Não era fácil. Queria sumir, deixar de
existir, desaparecer.... Não adiantava apenas fugir e assumir nova identidade,
eles o achariam e matariam. O que ele precisava era morrer, ser enterrado de
maneira convincente e depois assumir a nova identidade. E a única saída era Leonardo.
O amigo tinha herdado a funerária do pai e como tal saberia como proceder,
argumentava o infeliz enquanto relatava suas desventuras.
Ao se casar com Shirley, Juvêncio não
tinha ideia do que o esperava. O franzino e calmo contador estava absurdamente
apaixonado pela policial. Um mulherão, de um e setenta e oito de altura, corpão
recheado e, o que mais o encantava, a moça era cabo da PM. Difícil explicar
essa atração que, aliás, foi mútua. Ele
muito calmo e atencioso, incapaz de matar uma mosca, era o que comentavam os
colegas. Talvez essas qualidades fossem as que atraíram Shirley. E ele, o que
viu naquela mulher que não hesitava em distribuir bons golpes de judô e atirar
quando necessário? Talvez algum fetiche reprimido de possuir uma amante de
coturnos... Durante os primeiros anos as coisas se passaram bem. O rapaz se
empolgava com as narrativas e os feitos da mulher tanto fora como no calor do
leito. Ela gostava da plácida companhia a esperá-la em casa à noite. O que o
pacato contador não gostava era o almoço ruidoso com a família dela aos
domingos. Sentia-se um peixe fora d’água. Os quatro cunhados eram policiais.
Vangloriavam-se de feitos reais ou imaginários contados com animadas descrições
das humilhações impostas às vítimas. Ficava calado salvo algum polido elogio à sogra e algum
comentário neutro sobre futebol com o sogro. Dos cunhados tinha que ouvir as piadas,
que ele entendia, com razão, como insinuações sobre sua virilidade. Virilidade
que, aliás, ia muito bem. Quem não ia bem era a mulher. Esquivava-se do leito e
passou a chegar tarde em casa. Juvêncio desconfiou. Um detetive lhe confirmou
as suspeitas. Ao confrontar a mulher, essa lhe disse simplesmente:
̶ Nem pense em
divórcio. Na minha família ninguém se divorcia. Somos muito católicos. E nem
pense em se mandar me deixando sozinha. Meus irmãos e eu acharemos você em
qualquer lugar no Brasil e lá fora também!
O outrora calmo contador ficou
atarantado. Adoecia de desgosto. Não encontrava saída. Levantava ainda de
madrugada para sair sem encarar a mulher e voltava à noite quando ela já
dormia.
Resolveu procurar o seu amigo de sempre
em Penápolis. Poderia desabafar e descansar longe de casa e da mulher. Esgotado
deixou um bilhete dizendo que estava doente e iria sair de férias para o
interior. No ônibus a caminho de
Penápolis veio-lhe a ideia, inicialmente nebulosa. O amigo poderia ajudá-lo a
desaparecer. Juvêncio elaborou o plano: um enterro fictício, nova identidade e
refazer a vida bem longe de São Paulo.
Demorou a convencer Leonardo a
participar de seu plano. Havia muitos obstáculos, arrumar atestado de óbito,
nova identidade e principalmente o medo da fraude ser descoberta. Finalmente,
depois de muita conversa, o amigo cedeu. Simulariam um infarto seguido de velório
e enterro. Teria que acontecer no fim de semana. A Shirley só seria avisada depois
do enterro, na segunda feira. E assim foi feito. O atestado de óbito seria dado
por um doutor de outra cidade que devia favores ao dono da funerária. Os amigos
viajaram para o interior de Tocantins, onde numa pequena cidade Juvêncio virou
Valmir, mesma idade e mesmo tudo o mais. Finalmente
chegou o dia. O contador, preparado e maquilado pelas mãos hábeis de Leonardo
deitou-se no caixão da funerária. Trabalho perfeito, a face e lábios de exata
aparência cérea, o pseudo-defunto ali permaneceu por quinze minutos,
acompanhado por velas e coroa de flores. Tempo mais que suficiente para várias
fotografias. De um pulo, Juvêncio saiu do incômodo leito, agarrou a mala e
sumiu da cidade já como Valmir dos Santos. O caixão vazio fechado foi
devidamente enterrado no cemitério local. As fotos e o atestado de óbito foram despachados
para Shirley. Um irmão da viúva até veio a Penápolis conferir o túmulo. Não
insistiu muito nos detalhes, nunca gostara do falecido.
O renascido Valmir continuou viajando
para o norte até o Pará. Chegou a Parauapebas, cidade em expansão onde se
estabeleceu. E lá encontrou a cabeleireira Marilyn, com quem se casou e vive
feliz até hoje.
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