Ilha urbana - Ises de Almeida Abrahamsohn



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Ilha urbana
Ises de Almeida Abrahamsohn


Quando Pilar foi despedida da oficina de costura do Bom Retiro bateu o desespero na família. O trabalho semiescravo no galpão de fundo da oficina rendia o suficiente para pagar o quarto no cortiço e alimentar os dois filhos. Álvaro, o marido, conseguia apenas magros e incertos bicos como pedreiro. No próximo dia dez já não havia como pagar o aluguel. Ou moravam ou comiam.

Naquela noite Álvaro chegou com a notícia. Iriam se mudar para o centro da cidade. Jose, um colega boliviano o alertou. Havia um prédio já com várias famílias morando ali, bem no centro, perto do largo Paissandu. Era um antigo prédio de escritórios.  Teriam de fazer as divisórias com algumas placas de madeira. Mas na necessidade...

Álvaro fazia a propaganda do lugar. Era uma ilha no meio da cidade rica, dizia ele. Bem no meio da cidade, insistia. Claro, não ia ser de graça. Uns trezentos ao pessoal do movimento, mas sempre era a metade do que pagavam no cortiço. Emprego haveriam de achar fácil por lá sem ter que pegar condução. Centenas de botecos e restaurantes e prédios de escritórios. Tinha luz elétrica, uns dois banheiros por andar e dois tanques com torneiras construídos pelos moradores com ajuda do movimento.  Pilar acabou concordando. O que mais lhe doía era ter que tirar as crianças da escola ali do bairro onde passavam a maior parte do dia. Não dava para levar e buscar pagando a condução.

No dia seguinte, Álvaro levou José para falar com o chefe da ocupação de prédio. Pago o adiantado, os dois amigos começaram o trabalho. O espaço era no sexto andar, num dos cantos. Pelo menos esse pedaço tem janela e não fica grudado no banheiro, comentou Jose. Limparam a área demarcada e saíram em busca do material. Iriam trazer domingo. Impossível descarregar ali em dia de semana. Jose conseguiu uns tapumes e placas de madeira e o carreto de transporte. Martelaram durante toda a semana pra montar as duas mambembes paredes que limitavam a área. Dentro fixaram sarrafos altos para pendurar as cortinas de separação das áreas de dormir e cozinhar. As últimas economias de Pilar foram para comprar a fiação elétrica e para uma porta escalavrada, comprada de um catador. Dia dez estava logo aí e, não pagando o aluguel adiantado, teriam que deixar logo o cortiço senão os capangas do dono jogariam tudo na rua. Mudaram no fim de semana. Os vizinhos ajudaram a transportar os parcos e estropiados pertences. Fogãozinho de duas bocas e as duas possessões mais valiosas: uma velha geladeira vermelha e a arcaica televisão.

Pilar arranjou emprego de cozinheira num bar próximo. O marido alguns bicos. Os dois filhos, menina de nove e garoto de sete ficavam em casa até que achassem vaga em escola por ali perto. Eram ajuizados. Passavam o dia vendo TV. As coisas pareciam ir bem.

No dia primeiro de maio, a família toda saiu para ver a festa dos sindicatos no Anhangabaú. De longe ouviram o estrondo e viram um clarão. Fogos de artifício, com certeza. Perceberam a agitação das pessoas. Um comentava com outro e muitos corriam na direção da Rio Branco. Viram um patrício olhando no celular.

̶  Qué pasa, compañero?

̶  Fogo num prédio, amigo.

O casal parou, o coração gelou. E se...  Foram andando rápido! As crianças correndo atrás. Até chegarem mais perto.

Era lá mesmo, fogo em seis andares, os bombeiros tentando. Não havia o que fazer. Ficaram olhando, mudos, as lágrimas rolando pelas faces. De repente, o estrondo. A ilha dos despossuídos ruiu.

Salvaram o que tinham no corpo. Recomeçar agora seria de menos que zero....

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