Crônica - El Condor Pasa - José Vicente J. Camargo



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Crônica  -  El Condor Pasa                                 
José Vicente J. Camargo

É uma música folclórica peruana de 1913, composta por Daniel Robles e escrita por Julio de La Paz, declarada patrimonio cultural do país em 1993. Expressa o conflito entre duas culturas: a dos brancos, representada desde os conquistadores espanhóis e a dos povos indígenas, cujo ápice foi a nação inca, dizimada por estes em 1532. O condor, que voa nas alturas, encarna a alma de um inca morto em combate em defesa da tão almejada liberdade.

A música, de acordes agudos e cadenciados, tocados por uma flauta de sobro inca, feita com tubos de bambu, chora o destino ingrato e injusto imposto a grande nação. Seu som comove quem ouve, que não deixa de se solidarizar com esse povo culto e empreendedor e de se lamentar das causas dessa destruição desleal, uma vez que os incas – apesar de terem a maioria numérica e o conhecimento da região (da capital Cusco, no Peru, o império possuía 25 mil quilómetros de caminhos que uniam as diferentes comunidades), não possuíam armas de fogo – inclusive canhões nem cavalos, valiosos no transporte das cargas pesadas, itens considerados decisivos para a vitória dos conquistadores.
Ao ritmo dessa música folclórica, retornei, semana passada, de uma viagem de 20 dias ao norte da Argentina e do Chile, regiões ricas em vestígios das civilizações inca e pré-inca. Adicionando as que já fiz anteriormente à essas regiões na Bolívia e Peru, visitando sítios arqueológicos, museus e ouvindo explicações de guias especializados, acredito que absorvi conhecimentos para melhor compreender esses povos, a riqueza de suas culturas e a fatalidade da sua destruição.

Essas civilizações se desenvolveram no meio de uma paisagem única. Muito me impressionou as cadeias de montanhas ultrapassando 4.000 metros de altura que estampam um mosaico colorido de até 14 cores diferentes. Esses tons são provenientes de diversos minerais – entre outros:  ferro, manganês, potássio, enxofre – que emergiram do subsolo quando a Cordilheira dos Andes se formou há milhões de anos. Nesta mesma altitude, nos altiplanos, encontram-se as lagoas de águas serenas e cristalinas, refletindo o azul do céu, os picos gelados dos vulcões e as montanhas ora coloridas, ora áridas, dado a cobertura de pedras e pó, originários da solidificação das cinzas vulcânicas. Vez ou outra, esse espelho de água se estremece com o pouso de um bando de flamingos cor de rosa e de outras aves, algumas delas vindas do hemisfério norte. Diluído pelas águas do degelo e da chuva, o sal – vindo também do subsolo – forma salmoura, que após evaporação, dá lugar a grandes áreas de salitre branco e brilhante, contrastando com a aridez da paisagem. Em certos pontos, essa tranquilidade é quebrada pelo contínuo esguicho de água fervente (geotermia) que chega a atingir dez metros de altura, formando nuvens vaporosas em contato com o ar frio. Além dessas atrações, os Andes e seus altiplanos oferecem um tapete colorido de vegetação rasteira, que, dependendo da época do ano e dos nutrientes do solo, pode ser amarelo, lilás ou verde. Essa natureza exuberante se completa com a presença de animais milenares como a vicunha, alpaca e lhama. Coroando este cenário místico, temos a culinária rústica a base de milho (inclusive o roxo) e batata (sete tipos diferentes), introduzida na Europa pelos conquistadores e tida como a salvadora da fome crônica que atingia este continente.

Nesses dias, ao me inteirar da civilização inca, meu pensamento escapava para os anos que morei na Alemanha como doutorante da Universidade de Hanover. Por cinco anos convivi com a comunidade estudantil latino-americana. Os sábados eram dias de festa. Iniciávamos pelo futebol, emendando com um almoço típico e encerrando com um baile ao ritmo de salsas, merengues, rumbas e sambas regado a pisco, tequila e caipirinhas que furava a madrugada. Éramos uma comunidade com representantes de vários países latino-americanos. Entre nós não existia nacionalidades nem fronteiras. Éramos todos “irmanos”! Os estudantes alemães e de outros países participavam em menor número, mas com a mesma alegria e entrosamento. Uma verdadeira “globalização” há mais de quarenta anos, quando o significado atual desse termo estava por nascer.

Se, hoje em dia, essa globalização entre os países europeus, norte-americanos e asiáticos é uma realidade, e a sul-americana não deslanchou? Ficou em ineficientes tratados como Mercosul, Pacto Andino e outros, que após anos de sua formação, não se consolidaram. Aonde estão os jovens latino-americanos de Hanover?

Somente uma América do Sul unida, com a participação ativa do Brasil, que também conheceu a destruição do seu povo nativo e de sua cultura pelos colonizadores, pode dar peso às suas reivindicações nos fóruns mundiais. Ser uma voz respeitada e considerada de igual para igual nos tratados comerciais. Não deixar mais repetir o desdém da sua colonização.

No meio desses pensamentos, elevo minha vista ao céu, à procura do Condor, que com suas asas abertas de três metros de envergadura, pode congregar a união das nações sul-americanas e carrega-la, assim como fez com o heroico inca, ao topo das montanhas da Cordilheira, donde, refletindo sua pantomina de cores brilhantes, demandaria o respeito das demais nações.

Neste estado de confraternização latino-americano, minha alma, ao som da flauta inca, também se desprende e se junta ao Condor no almejado voo da liberdade...

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