Aquele chapéu - Fernando Braga


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Aquele chapéu
Fernando Braga

      Seu Francisco, à noite, guiando sua caminhonete em estrada vicinal, tendo ao lado sua esposa, acabou atropelando uma vaca que perambulava pela estrada. O impacto foi tal que o animal acabou penetrando parcialmente dentro do carro após estourar o para-brisa, atingindo o rosto e a cabeça de sua companheira que morreu na hora. Seu Francisco na cabeça, no tórax, foi levado com urgência para o pequeno hospital, inconsciente. Drenado um pneumotórax, recuperou os sentidos e após 15 dias já podia se comunicar. Ficou muito abatido, abalado quando soube da morte dela.

      Nunca mais recuperou sua atividade, e o prazer de conduzir os seus negócios aos poucos foi definhando. Prevendo sua morte chamou os três filhos e compassadamente lhes disse:

      —Estou no fim e nem tenho mais prazer em viver. Sinto a morte bem próxima. Quero dividir o que temos.

     — Para você Rodrigo, o mais velho, quero deixar o meu sítio e metade do dinheiro que tenho no banco. Para você Flávio deixo nossa quitanda, esta casa e ainda os outros 50% do dinheiro que está no banco.

      Levantou-se com dificuldade, foi até seu guarda roupa, de lá tirou um chapéu tipo Panamá, cinza, usado, mas bem conservado e colocou-o na cabeça de Otávio, o filho mais jovem dizendo:

      — Você, meu querido filho deixo este chapéu que usei em minha vida, com a certeza, de que será muito bem cuidado por você.

      Como previra, a morte veio buscá-lo em questão de dias.

      Após o enterro, os irmãos se reuniram e discutindo sobre a último desejo do pai - disseram:

      —Achamos que nosso pai não foi justo, devia estar um pouco fora da realidade.     Você, Otávio, não recebeu nada!

      —Nos dois conversamos e pretendemos dividir o que papai nos deixou. Você não será prejudicado.

      —Não, não, não, exclamou Otávio. Tenho certeza que ele estava plenamente senhor de si, quando fez a divisão. Não vou aceitar.

      —Sabe Otavio, nós sempre achamos que você, desde que nasceu era o filho predileto, preferido do papai e da mamãe também. Vocês eram muito ligados, mais do que nós; conversavam muito entre si. Acreditamos que não foi justo o que ele fez. Pode contar conosco. Vamos dividir, sim!

      —Pelo contrário, se assim ele quis, é porque foi justo.

      —Pretendo deixá-los em breve, ir em busca da minha própria vida, da minha lenda pessoal. Vou para nossa capital, Belo Horizonte, arranjar um emprego e continuar meus estudos. Pretendo ter uma profissão e me formar médico. Não sei se vou conseguir, mas vou tentar. Só desejo que vocês sejam muito felizes.

    —Tenho um pedido, se não for exagerado. Gostaria que me emprestassem R$ 10.000,00, para ir a BH, onde arranjarei uma pensão, um emprego e uma escola.

      —Não tem problema! Esperamos que tenha sucesso. Se precisar algo mais, pode se comunicar conosco.

      Assim, dias após, foi até a rodoviária e comprou a passagem para Belo Horizonte. Voltando para casa, arrumou sua mala, colocou o chapéu em uma das mãos e pegou o ônibus, caminho para BH.

      No caminho, foi matutando, pensando na vida, o que encontraria à sua frente   naquela grande cidade, que ainda não conhecia. Estando o chapéu no joelho, olhou, alisou-o, lembrando carinhosamente de seu pai, endireitou sua aba e colocou-o na cabeça.

       Serviu muito bem, mas sentiu uma vibração em seu corpo, uma sensação estranha, que não era nem boa, nem má. Tirando o chapéu a sensação desapareceu, voltando quando recolocou. Mantendo-o na cabeça, logo a sensação foi desaparecendo. Em seu íntimo, não sabia explicar a sensação diferente que experimentara.

      Após três horas, o ônibus parou em um restaurante à beira de estrada com o chapéu na cabeça, pediu um café com leite e um sanduíche. Após sua pequena refeição, recebeu a comanda para pagar na saída. Quando chegou no caixa, o empregado disse:

- Pode passar. O chapéu pagou.

       Não entendeu.

      Insistiu no pagamento, mas teve a mesma resposta. Acabou passando sem nada pagar. Matutou: —Será que algum conhecido pagou para mim? Mas, eu não conheço ninguém aqui!

      No ônibus, tirou o chapéu da cabeça, colocou-o sobre o joelho e adormeceu.
      Em sua cidade, havia obtido informação de algumas pensões baratas em BH, próximas à rodoviária. Dirigiu-se a uma delas, que achou mais adequada e conseguiu um quarto por alguns dias.

      Tendo boa aparência, conseguiu emprego em um restaurante no período noturno, ajudando o cozinheiro. Pensou:

      —Com este salário vai dar para pagar a pensão por um mês. Agora preciso ir atrás de uma escola.

      Em um colégio distante, de onde se hospedara, portando seu diploma do curso ginasial, foi tentar matricular-se no curso científico. Estava ainda no começo do ano. Quando disse ter 20 anos, um dos membros da diretoria, por coincidência presente, disse-lhe:

      —Você está muito atrasado! Com sua idade deveria ter terminado o Científico. Sugiro que tente fazer a Madureza, onde poderá concluir três anos em apenas um! Logo, poderá prestar vestibular, inclusive há um cursinho aqui perto que posso lhe indicar. É caro, mas o melhor. Mas lembre-se, terá que se dedicar de corpo e alma, estudar muito.

      Otávio saiu intrigado e resolveu ir até o cursinho próximo. Obteve informações precisas, mas o preço era salgado para ele. Tinha os R$ 10.000,00 consigo. Talvez pudesse recorrer novamente aos seus irmãos.

      Mais à noite, vendo seu chapéu em cima da cama, colocou-o, para sair e dar uma volta, conhecer um pouco da cidade grande e comer algo. Ao colocá-lo novamente, teve a mesma sensação estranha, vibração no corpo, que logo passou.

      Percorreu algumas avenidas, um parque no meio da cidade, mais tarde entrou em um bar e pediu um refrigerante e um sanduíche misto quente. Portando o chapéu na   cabeça pediu a conta ao garçom, que logo voltou dizendo-lhe que nada devia, que o chapéu havia pago. Ele não acreditou. Insistiu, mas a resposta foi a mesma.

      Foi para a pensão e ao deitar-se, pegou o chapéu endireitou sua aba, beijou-o e disse:

      —Obrigado, meu pai.

      No dia seguinte ainda estava encabulado, intrigado com o que acontecera. Seria aquele chapéu mágico?

      Resolveu fazer novo teste. Foi até um bar próximo, com o chapéu na cabeça, tomou seu desjejum e ao pedir a conta, novamente o chapéu havia pago. Era demais!

       Se fosse a algum local e pedisse a conta, sem o chapéu na cabeça, a conta era-lhe apresentada normalmente. Agora estava entendendo porque seu pai havia lhe deixado apenas aquele chapéu. Ele era mágico. Usaria o chapéu e não mais o tiraria da cabeça, a não ser para tomar banho.

      Voltou ao cursinho, o chapéu na cabeça e ao fazer a matrícula, disseram-lhe que poderia fazer todo o curso de graça. Fez sua matrícula, bem satisfeito.

      Procurou por pensão mais próxima, o que o fez. Ao mudar-se foi acertar sua conta de uma semana na pensão e mais uma vez o chapéu já havia pago.

      Realmente, não tiraria mais o chapéu da cabeça. Tudo ele continuava pagando. Não precisava mais de dinheiro. Bendito chapéu!

      No cursinho, pediu autorização para assistir às aulas, vestindo seu chapéu. Foi-lhe concedido o privilégio, com a condição que se sentasse na última carteira. Sempre que colocava o chapéu na cabeça a mesma sensação lhe vinha, o que se tornou agradável.

      Começando as aulas, onde iriam ensinar toda a matéria dos três anos do curso científico, em apenas 10 meses, notou que aprendia facilmente tudo o que era exposto na aula. Não precisava nem tomar anotações. Nas arguições frequentes, ele a tudo respondia com muita clareza e corretamente. Nas provas semanais suas notas eram sempre as melhores de toda a turma, o que começou a chamar a atenção de todos os colegas e até dos professores. Adquiriu um punhado de amigos, e todos procuravam dele se aproximar. Só não entendiam, porque nunca tirava aquele chapéu da cabeça. Ele adorava, amava o seu querido, que só tirava ao dormir e tomar banho.

      Terminou brilhantemente o curso, prestou exame, sendo aprovado plenamente, com mérito, recebendo o diploma correspondente ao término do curso científico.

      Agora enfrentaria o exame vestibular, para entrar na UFMG, frequentar a desejada Faculdade de Medicina. Era o que mais queria na vida. Cumpriria a sua “lenda pessoal”?

      Passou a conversar com seu chapéu pois notara que ele, além de pagar suas contas, facilitava para entender tudo que lhe era exposto na escola e também para memorizar facilmente. Ouvia e não esquecia.

      Participou do exame vestibular, sem ter feito cursinho especializado, como a grande maioria dos estudantes fazia. Estudou em dois meses toda a matéria física, matemática, português, química, biologia, que bastava ler, para guardar em sua mente.

      Com o chapéu na cabeça, sentia que sua mente se abria inteiramente.

      Quando saiu o resultado final, viu que havia sido classificado em terceiro lugar. Apenas duas notas melhores. Será que também tinham algum amuleto? Ou mesmo, um chapéu?

      Muito contente resolveu voltar à sua cidade e visitar seus irmãos e contar-lhes sua vitória, podendo agora iniciar o curso de Medicina, que era gratuito. Tinha certeza absoluta que o chapéu pagaria todas outras despesas. Mas, nada confidenciaria, nem aos irmãos. Iria iniciar uma vida nova na faculdade.

      Juntou-se aos colegas no time de futebol da faculdade, e ele que era um “perna de pau” em sua cidade, passou a ser um ás na prática deste esporte. Jogava no meio de campo e além de bom marcador, quando ia para a frente, driblava com facilidade, era muito veloz e tornou-se aquele marcador de gols. Mas, jogava com chapéu enterrado na cabeça, preso com uma fita para que não caísse. Tornou-se conhecido pelos alunos das outras séries mais adiantadas e também pelos professores. E seu apelido pegou facilmente: “O chapéu”.

       Aluno excelente, querido, companheiro de todos, negava-se sempre a explicar porque não tirava o chapéu nas aulas, praticando esporte e mesmo quando escurecia. À noite ao deitar-se, com um beijo o tirava, beijava-o, agradecendo o pai e dormia o sono dos justos. Pela manhã após o banho, o que primeiro fazia era....

      Ainda no segundo ano foi convocado para participar do time oficial da escola para disputar o torneio de futebol, onde se confrontariam 15 escolas federais e estaduais de medicina. Era a realização de mais uma Intermed.

      Tornou-se o artilheiro da competição, conseguindo, junto aos companheiros de equipe, vencer o campeonato, após derrotarem os gaúchos, que traziam a certeza que seriam os campeões. Ele, conseguiu fazer um gol do meio de campo quando observou que o goleiro estava muito adiantado. Nem o Pelé conseguira esta proeza. Foi a consagração total. Saiu carregado nos ombros pelos colegas.

      Após anos de uso contínuo, por mais que zelasse, seu chapéu estava em frangalhos, mas não importava. Tinha medo de que se o levasse a um tintureiro para higieniza-lo cuidadosamente, perdesse o encanto. Muitas vezes, foi presenteado com um chapéu parecido, para substituir o velho. Mas, no dia seguinte lá estava ele com o mesmo chapéu. Continuava afirmando que se o retirasse da cabeça, sentiria uma dor terrível.

      Os professores médicos, não tinham explicação para o fato e sabiam que ele estava somatizando, era um caso psiquiátrico. Mas como podia ser um caso psiquiátrico, se o rapaz era formidável em todos os sentidos? Deixe-o usar o seu “ensebado”, enfatizavam. Brilhou em todo o curso médico.

      Em sua formatura, foi escolhido como orador da turma e para todos, não poderia ser outro. No anfiteatro, completamente cheio, lá estavam seus irmãos, agora casados.

      Subiu as escadas para a tribuna, elegantemente vestindo sua beca e...com o ensebado chapéu na cabeça. Foi um murmúrio geral e com muitas risadinhas. Os que não o conheciam, acharam aquilo um desaforo, um desfeito àquela majestosa festa.

      Seus irmãos não acreditaram que ele estivesse usando aquele chapéu, que há sete anos havia herdado do pai. O pai ali estava presente em corpo e alma, para os três.

      Após sua brilhante oração onde agradeceu aos seus mestres, colegas, sua vivência dos seis anos de faculdade, não deixou de referir-se com muito carinho a seu amado pai que havia lhe proporcionado esta grande vitória. Após retirar o chapéu, beijou-o e colocou-o de encontro ao seu coração. Foi a última vez que o colocou na cabeça.

       Havia cumprido linda “lenda pessoal”.

A QUARTA DIMENSÃO - Oswaldo U. Lopes



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A QUARTA DIMENSÃO
Oswaldo U. Lopes



Tem gente que não consegue sair de duas dimensões x, y que dirá três ou quatro.

Demonstrar três é uma beleza, simples até, usando o quadro negro (que hoje é verde), mesmo sabendo que ele só tem duas: cumprimento e altura, os famosos x, y. Você faz um bom desenho e todo mundo percebe a terceira dimensão, o eixo z. Pronto, o ilustre mestre conseguiu demonstrar o cumprimento, a altura e a profundidade.

As três dimensões do espaço. Seus alunos conseguem assim calcular áreas nos planos horizontal e vertical e volumes no espaço. Quantos metros cúbicos tem a sala? É a glória. Mesmo aqueles que são quase aespaciais conseguem entender, embora no seu mundo próprio, ajam como aberrações não funcionais.

Foi aí que introduziram o tempo como dimensão. Não aquele simples de explicar:

- No meu tempo

- Já era tempo

- Há quanto tempo

- Faz tempo que a gente não se encontra

Não esse lírico tempo que parece passar depressa ou nunca chegar. Um minuto na chapa quente que parece durar uma eternidade ou uma eternidade com seu amor que parece durar um minuto apenas, como Einstein.

Como explicar para aquela bonita moça que ela pode esperar o  tempo que quiser seu amado, mas ele não virá porque morreu na guerra. Do mesmo modo como explicar a mãe que seu lindo menino de olhos azuis que o passar do tempo vai acentuar os efeitos da paralisia infantil e o moleque vai andar coxo e de braço pendente. Nunca vai andar de bicicleta ou skate.

É o mesmo tempo, dimensão para uns, sofrido para outros, corrido, lento, equacionado por Einstein, esperando uma teoria unificadora que o ajuste, tempo de saudade, de lágrima, de separação, do campo gravitacional, ausente na velocidade da luz e presente no que mais couber.


O INSETO INOCENTE - Sérgio Dalla Vecchia



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O INSETO INOCENTE
Sérgio Dalla Vecchia

Crash, crash, foi o ruído que Fernanda ouviu do quarto.

Sonolenta, revirou-se na cama a espera de mais algum barulho.

Crash, crash e crash, novamente.

Parecia vir da sala!

Agora acordada, ouvia mais um som. Era do coração dançando em seu peito.

Fernanda levantou-se descalça e, pé ante pé chegou a porta.

Encostou um ouvido para melhor identificar o ruído.

Colocou também as duas mãos espalmadas, enquanto a audição e tato trabalhavam na identificação daquele som.

Toc, crash, crash e toc!

Assim ela percebeu mais um toc!

Que será? Pensava Fernanda. Parecia vir da sala mesmo.

As mãos transpiravam, a adrenalina fluía velozmente pelo sistema circulatório da assustada moça.

Pensou em ligar para a polícia, mas tinha receio de ser em vão e constrangê-la.
Com coragem, abriu a porta e saiu silenciosamente em direção à escada que acessava à sala.

Crash, crash e toc em seguida.

Agora sim, o som partia do meio da sala.

Fernanda muito curiosa, agarrou com as duas mãos o corrimão e começou a descer. Um degrau, outro e mais um.

Chegou ao meio da escada. Os olhos, agora acostumados ao escuro, captaram algo embaixo da mesa. Parecia um objeto esférico do tamanho de uma bola de tênis.

—Que será? - Pensou ela.

Com os olhos fixos caminhou na direção. Foi quando viu um outro objeto menor escuro aproximar-se da bolinha até tocá-la.

Crash, foi o barulho que ouviu naquele momento.

Crash, crash e a bolinha movimentou-se!

Fernanda foi se aproximando até que um suspiro de alívio surgiu nos seus lábios.

Tratava-se de um simples besouro tentando empurrar uma bolinha de papel amassado e produziu o crash, crash.

Despreocupada, acendeu a luz capturou o besouro e o atirou para fora. Tão feliz estava que poupou o pobre inseto que tanto a importunou.

Alegre foi para a cozinha e enquanto sorvia um delicioso copo d'água, ouviu novamente e mais perto; Toc e toc!

Não houve tempo para mais nada!

Um grito ecoou pelos ares, enquanto uma mão forte tapou sua boca!

Foi o último grito da solitária Fernanda na sua curta passagem pela vida!


Confronto de Narcisos - Ledice Pereira




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Confronto de Narcisos
Ledice Pereira



A notícia de que Kim Jong-Un convidou Donald Trump para um encontro em maio próximo levou-me a uma viagem:

Num ringue, em sumários trajes de Sumô, de um lado o ditador norte-coreano, do outro, o surpreendente Trump, a se enfrentarem numa luta de Narcisos.

Torcidas, identificadas pelos cortes de cabelo no estilo de seus ídolos, se fazem presentes, instigando-os a derrubarem o rival.

Os egos os mantém eretos, mas a necessidade de vencer o inimigo, no menor espaço de tempo, melhor dizendo, em segundos, os transforma em verdadeiros Hércules, com o propósito único de empurrar o adversário para fora do círculo ou para o solo.

Imaginação à parte, vejo esse encontro com certa cautela. Da cabeça de cada um, assim como das fraldas dos bebês, nunca se sabe o que poderá sair.

De qualquer forma, ambos devem conhecer as regras: como no jogo, quem usar de técnica ilegal – ou ‘Kinjite’ – será automaticamente derrotado.

Torço para que o assunto a ser tratado seja o desarmamento nuclear. Em todo caso, o mundo terá que aguardar até que o encontro seja mesmo realizado e disso decorra um esperado tratado de Paz.
       


EMBARQUE ADVERSO - Sérgio Dalla Vecchia



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EMBARQUE ADVERSO
Sérgio Dalla Vecchia

Desci voando do táxi no Porto de Miami. Com bagagem e passaporte em mãos, adentrei ofegante na sala de embarque.

Incrédulo, olhei para o mar e vi a silhueta imponente do navio, que me levaria à um cruzeiro pelas Bahamas. Ele distanciava-se em baixa velocidade, deixando apenas a pitoresca esteira branca da saudade.

O desapontamento foi constrangedor. Havia perdido o embarque dos meus sonhos.

Ainda recuperando o fôlego, sentei-me remoendo o ocorrido.

Abatido, com as duas mãos apoiando o queixo consegui ouvir uma voz rouca oferecendo um passeio até Freeport.

Freeport era a primeira parada do cruzeiro e não era distante.

Sem pestanejar, comprei a passagem com o homem da voz rouca.

Pela velocidade da lancha chegaríamos em tempo de encontrar o navio aportado.

Ressuscitei!

A lancha era confortável e eu era o único passageiro.

Enfim zarpamos! Mar calmo, céu azul, tudo perfeito para uma ótima navegação.

O capitão era um velho lobo do mar, conhecia a região como poucos.

Logo após a partida, cansado acomodei-me junto à janela da pequena cabine.

Difícil era conseguir cochilar com o desconforto das batidas do casco, singrando a superfície irregular do mar azul. Mesmo assim eu estava felicíssimo.

Não demorou e o capitão puxou conversa:

—Você conhece as curiosas histórias sobre o Triângulo das Bermudas?

—Sim, já li sobre fatos registrados que impressionam, recordo-me de alguns:

O desaparecimento misterioso de um cargueiro americano em 1918 e de uma esquadrilha de aviões da Força Aérea Americana que decolou de Fort Lauderdale em 1925, que também sumiu sem deixar nenhum vestígio.

—Portanto sabe que navegamos em águas misteriosas, onde tudo é aleatório e inquietante!

—Capitão, não queira me assustar. Estamos em 2017 e esses fatos ocorreram muitos anos atrás. A tecnologia de navegação naval é moderna e detecta com precisão mudanças repentinas do tempo, concentração de energia nas nuvens, ventos, objetos a frente, profundidade e outras inúmeras informações pertinentes. Portanto não me apavore, quero apenas chegar a Freeport.

—Moço, não é bem assim, virou-se o capitão dizendo piano, com uma expressão atinada:

—Fatos estranhos continuam ocorrendo, não são muito divulgados devido ao forte turismo, mas posso dar-lhe alguns exemplos:

—O platô submerso com águas rasas, onde aflora uma pequena crista denominada Ilhas Bermudas é o palco de inúmeros naufrágios;

—A planície abissal das Bahamas, contrastando com águas rasas da região, também contribuem com fenômenos peculiares;

—Também o surgimento de inusitadas nuvens de formas hexagonais, que provocam repentinamente ventos de 250Km/h.

—Já disse capitão, não me amole com essas histórias, não vou cair em contos de um velho Lobo do Mar querendo apavorar turistas.

—Ok, desculpe ter importunado. - Disse o capitão desapontado.

A voz rouca calou-se e o barco seguiu seu rumo.

Pelo cansaço adormeci, mesmo recebendo os solavancos da luta do casco versus mar.

De repente fui retirado do banco pelo tranco violento de uma grande vaga.

O mar era outro! Ondas de três metros, com cristas brancas despenteadas pelo vento forte, insistiam em emborcar a nossa pequena embarcação.

As condições meteorológicas eram diferentes, nuvens escuras em forma de hexágono, rolos de nevoeiro passavam velozmente, trombas d´água despejavam como urina as toxinas do céu raivoso, insuflando ainda mais as turbulentas águas.

O capitão pilotava com maestria, dava motor na subida da onda retirava em seguida com hélices em vazio, tamanha a inclinação do barco na crista. Mantinha o rumo firme cortando em 45º graus com a experiência de velho lobo do mar.

—Comece a rezar, poderemos emborcar a qualquer momento, estou usado de toda habilidade, tudo pode acontecer, portanto segure-se bem! - Ordenou o capitão.

Rezei com todo fervor, como nunca havia feito antes.

O barco era uma casca de noz em meio a imensidão do mar revolto.

As ondas invadiam sucessivamente o convés e a presença iminente da morte me fazia tremer de desespero.

Após algum tempo, meu cérebro confundia-se entre sonho e realidade. Foi quando surgiu aquela voz rouca de longe me chamando.

—Moço, acorde! Acorde! Pare de tremer! Chegamos a Freeport.

Ainda confuso não entendi nada. Para surpresa, naquele momento o céu estava azul anil e o mar parecia um lago de tão calmo!

—Corra, não vá perder o embarque novamente. - Alertou o capitão.

 Corri como nunca até chegar ao navio. Após muitas explicações às autoridades, consegui finalmente embarcar.

O camarote era ótimo, instalei-me e logo fui para o convés apreciar o mar.

Encostei-me na amurada e a vista era deslumbrante, não fossem algumas nuvens eu diria que o céu e o mar eram um só.

Qual foi a minha surpresa ao avistar a lancha que me trouxera, logo abaixo junto ao casco, com o capitão acenando efusivamente.

Nisso passou um oficial junto a mim e curioso parou.

Voltei-me para ele e disse:

—Está vendo aquela lancha lá embaixo. Foi nela que cheguei até aqui e o capitão gentilmente veio despedir-se.

O oficial ainda intrigado perguntou:

—Desculpe-me, não vejo lancha alguma!

Perplexo de pronto respondi:

—Como não está vendo! Olhe, lá está ela e o capitão acenando!

O oficial ainda não entendendo nada, pediu licença e retirou-se.

Incrédulo, olhei novamente para o mar e estranhamente só vi água. A lancha desaparecera por completo!

Atônito, minha mente tornou-se confusa, letras se embaralhavam, estrelinhas multicoloridas pipocavam e tudo rodava. Não conseguia o equilíbrio. Havia alguma força atuando sobre mim. Senti a amurada, o abdômen sobre ela, depois uma perna, a queda livre e o contato frio da água do mar envolvendo meu corpo.

A apneia, o desespero e uma voz rouca me chamando:

—Venha, dê-me a mão e embarque novamente na lancha da fantasia, onde degustaremos ainda mais, os apetitosos mistérios do Triângulo da Bermudas.

  

Obra de ficção.
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Marielle - Ledice Pereira



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Marielle
Ledice Pereira

Difícil fugir do tema que causou comoção generalizada.

Ela venceu a cor, a pobreza, a vida na favela e foi indo em frente.

Sabe-se lá, como conseguiu estudar, cursar Ciências Sociais na PUC RJ, concluir o Mestrado em Administração Pública, tornando-se líder. Lutou pelos direitos humanos, assunto esse tão polêmico, defendendo as minorias. Venceu nas urnas, obtendo votação maciça: mais de quarenta e seis mil votos que a fizeram vereadora no Estado do Rio de Janeiro.

E continuou mostrando a que veio, dando a volta por cima, gritando palavras de ordem, colocando seus quarenta e poucos anos a serviço de sua ideologia.

Entretanto, seu discurso direto incomodava a alguém. Foi seguida e, num ataque covarde, executada.

Quis o destino que o motorista, alguém que apenas precisava complementar o salário para oferecer mais conforto à pequena família, estivesse no lugar errado, na hora errada.

Duas vidas que se foram, deixando saudade, inconformismo e exemplo.

Será esse, como tantos outros, um crime sem solução?