AQUARELA QUAL? QUAL A COR? - OSWALDO U. LOPES


ARY BARROSO


AQUARELA QUAL? QUAL A COR?

OSWALDO U. LOPES

 

                            Brasil

                            Meu Brasil brasileiro

                            Meu mulato inzoneiro

                           Vou cantar-te nos meus versos

        Lá estava Regina fazendo as duas coisas de que mais gostava na vida. Dirigir carro e ouvir música brasileira. Essa então era impagável, em todos os sentidos que a palavra tinha: impagável porque não tinha preço e impagável porque a fazia sorrir sempre.

        Compositor -  Ary Barroso, radialista famoso, com várias invenções que ficaram na história. Quer um exemplo: introduziu a gaitinha para narrar gols no futebol. Lembrou? Foi um dos que Introduziu os programas de calouro no rádio com direito a congo (Tião Macalé no próprio), chamava-se Calouros em Desfile.

        Segundo ele mesmo, compôs essa música no ano de 1939, numa noite chuvosa em que não pode sair de casa e onde estavam apenas ele, sua mulher e um cunhado.

        Bem, se ele não podia sair de casa e tendo como parceiros sua mulher e seu cunhado, o uso de palavras como: inzoneiro, merencória, sestrosa e trigueiro, só tinha uma explicação: mais um caso de Machado de Assis na mamadeira.

                                   Ah, abre a cortina do passado

                                   Tira a mãe preta, do cerrado

                                   Bota o Rei Congo, no congado

                                  Brasil, Brasil

        Pois é, estamos em 1939 e Ary Barroso faz uma forte manifestação antirracista! Cerrado aí é sinônimo de senzala. Lembra um pouco Frank Sinatra que também gravou Aquarela do Brasil e sua grande amizade por Sammy Davis. O negro de maior sucesso no Show-business americano e que fez também sucesso quando de sua visita ao Brasil. Sinatra não se hospedava nem cantava em hotéis e cabarés que não aceitassem Sammy Davis como hóspede ou cantor colaborador.

        Tudo isso para lembrar o incrível desempenho de Sammy Davis em São Paulo em que ele começou imitando um americano padrão dançando samba e dizendo vocês acham que a gente dança samba assim? Aquela coisa horrorosa que todos já vimos em algum lugar algum dia e de imediato passou a dançar como se tivesse nascido numa Escola de Samba. Inesquecível e inarrável, quem viu, viu, e vive da memória. Ela tinha visto.

        E ainda tinha a história da mãe preta. Ela tinha tido uma, que não vivia na senzala, mas trabalhava na casa da família dela e a criara. Mãe preta melhor que a mãe branca. Em que estrela nesse céu profundo, Beni viveria agora?  Parou de pensar quando as lágrimas começaram a correr e foi ficando difícil guiar.

                             Deixa, cantar de novo o trovador

                             A merencória luz da lua

                             Toda canção do meu amor

        E agora, como reconhecer que merencória, com mamadeira machadiana ou não, soava muito melhor do que melancólica. Esta tinha uma sílaba a mais e entortava a voz sem compaixão. É, seu Ary sabia das coisas.    

                           Ah, ouve essas fontes murmurantes

                           Onde eu mato a minha sede

                                   E onde a lua vem brincar

                          Ah, esse Brasil lindo e trigueiro

                                  É o meu Brasil, brasileiro

         Curioso, a versão que ela adorava ouvir e que estava tocando era para piano, sem voz, tocada por um americano nascido em Nova York de origem latina: Carmen Cavallaro. Esta era fácil de encontrar como parte do filme: The Eddy Duchin Story, no Brasil – Melodia Imortal.

        Bem, e quem gravara Aquarela do Brasil? Todo mundo, stop. Não acredita? Pois então vamos lá e olhe que vou deixar de fora muita gente que a memória não é mais meu forte; que é isso, Regina, deixando escapar a idade!

        No Brasil: Francisco Alves (a primeira), já fez 80 anos e vai indo para 85. O próprio Ary Barroso, Carmem Miranda, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Elis Regina, João Gilberto (até inventou uma versão para o inglês) Gilberto Gil, Caetano Veloso, Toquinho (duas versões em castelhano), Titulares do Ritmo, João Bosco, Gal Costa, Emilio Santiago, Dominguinhos, Agnaldo Rayol, Alcione, Tim Maia, Os Três Tenores, Tom Jobim (linda gravação, obrigado, maestro). Nos USA: Frank Sinatra, Dione Warwick, Carmem Cavallaro.  Quem teve a pachorra de contar fala em 414 gravações.

        Incrível esse Ary Barroso, fez de tudo, até mudou o clube para o qual torcia. Pois é, isso, vocês nunca ouviram falar. As pessoas mudam de cidade, de emprego, de parceiro ou parceira, de gênero, mas nunca mudam de clube de futebol para o qual torcem. O Senhor Ary Barroso no começo da vida torcia para o Fluminense, fez até parte da diretoria, brigou e virou torcedor...Do Flamengo, dá para acreditar?

‘Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer!”

                                   Oh Brasil samba que dá

                                   Bamboleio que faz gingar

                                   Oh Brasil do meu amor

                                   Terra de Nosso Senhor

        Lembrou-se de uma gravação, nesse pedaço ouvia-se a musica enquanto a cena filmada era o Cristo do Corcovado com a Baia da Guanabara ao fundo. Ficou triste pensando no meu Brasil, do meu amor. Onde estaria, com quem estaria?                  

 

ABAIXO, A LETRA NA ÍNTEGRA:


Aquarela do Brasil

João Gilberto

Brasil!
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingar
O Brasil do meu amor
Terra de nosso Senhor

Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o Rei Congo no congado
Canta de novo o trovador
A merencória à luz da Lua
Toda canção do seu amor
Quero ver essa dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado

Esse coqueiro que dá coco
Oi! Onde amarro a minha rede
Nas noites claras de luar
Por essas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
Onde a Lua vem brincar
Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro

Brasil!
Terra boa e gostosa
Da morena sestrosa
De olhar indiferente
Brasil, samba que dá
Para o mundo se admirar
O Brasil, do meu amor
Terra de nosso Senhor

Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o Rei Congo no congado
Canta de novo o trovador
A merencória à luz da Lua
Toda canção do seu amor
Essa dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado

Esse coqueiro que dá coco
Onde amarro a minha rede
Nas noites claras de luar
Por essas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
Onde a Lua vem brincar
Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro

Brasil!
Meu Brasil brasileiro
Mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingar
O Brasil do meu amor
Terra de nosso Senhor

Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o Rei Congo no congado
Canta de novo o trovador
A merencória à luz da Lua
Toda canção do seu amor
Quero ver essa dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado

Esse coqueiro que dá coco
Onde eu amarro minha rede
Nas noites claras de luar
Por essas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
Onde a Lua vem brincar
Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro

Oi! Essas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
Onde a Lua vem brincar
Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro
Brasil!

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Composição: Ary Barroso. Essa informação está err

 

https://www.youtube.com/watch?v=3RrDAI7tFzU




A temível pirata Ching Shih - Ises de Almeida Abrahamsohn

 

A temível pirata Ching Shih

Ises de Almeida Abrahamsohn

 

Shih Yang nasceu num casebre miserável em Guangzhou (Cantão) na China  uns vinte anos antes do fim do século XVIII. Até cerca de 1800 a jovem  esquálida trabalhava como prostituta na região do porto da mesma cidade. Porém, a analfabeta Shih era ambiciosa e muito inteligente. Conseguiu enfeitiçar um pirata de nome Ching até que ele acedeu em casar com ela no ano de 1801. E ela passou a ser conhecida como Ching Shih, isto é a mulher de Ching. Juntos conseguiram controlar a maioria dos navios piratas menores que serviam ao Vietnã e que atuavam no mar da China.

O casal comandava uma turma de quinze marinheiros recrutados entre os procurados pela polícia. Era assim que trabalhavam. Acolhia os criminosos no seu navio em troca de obediência absoluta. O seu navio era temido pelos mercadores e pelos piratas menores que navegavam aquelas regiões.

Os mercadores tinham sua carga roubada e, se resistiam, Shih os comandava a andar pela prancha até caírem no mar. Esses assassinatos, entretanto, eram ocasionais e serviam para manter a aura de terror que cercava o casal de piratas.

Com o passar do tempo, Shih percebeu que seu domínio sobre Ching estava diminuindo. O homem estava ficando frouxo dizia ela à sua escrava doméstica. Era preciso eliminá-lo. Porém os marinheiros eram fiéis a Ching, de modo que era necessário que a morte parecesse ser de causas naturais. Ching adoeceu e em uma semana morreu. Na verdade, não há provas de que ela o tenha envenenado.

O ano era 1807 e Shih assumiu controle total do navio e foi dominando piratas de navios menores, um a um. Chegou a ter uma frota de cerca de 300 navios, todos dedicados à pirataria com cerca de 30.000 piratas a seu serviço no auge de seu domínio. Era chamada de “Pirate Queen”. Qualquer um que desobedecesse suas ordens ou resolvesse ser independente era imediatamente decapitado.

Shih organizou os navios em esquadras e estabeleceu regras de distribuição dos bens e valores pirateados. Com seu amante Chao Ling, ela estabeleceu um sistema de cobrança de taxas de pedágio para os navios cargueiros que saiam do porto de Cantão carregando sal ou prata ou outros bens valiosos.

Você poderia pensar que Shih teve um final violento ou trágico. Nada disso! Ela sabia mexer seus hashi ou em mandarim  筷子 (kuàizi) (o caractér significa "objetos de bambu para comer rapidamente").

A grande pirata negociou um acordo com o governo chinês mantendo a maior parte das riquezas que acumulou. E mesmo os seus companheiros piratas foram perdoados. Alguns até mantiveram os seus navios e foram incorporados à Marinha e ocuparam postos importantes na administração.

Shih acabou morrendo com idade bem avançada e é considerada na história da pirataria como de extraordinário sucesso.

 

Fontes:

 

1- https://pt.wikipedia.org/wiki/Ching_Shih

 

2- One Woman's Rise to Power: Cheng I's Wife and the Pirates
Author(s): Dian Murray. Source: Historical Reflections / Réflexions Historiques , Fall 1981, Vol. 8, No. 3, WOMEN IN CHINA: Current Directions in Historical Scholarship (Fall 1981), pp. 147-161. Published by: Berghahn Books.

 Stable URL: https://www.jstor.org/stable/41298765

 

 

O Senhor da Terra - YARA MOURÃO

 



O Senhor da Terra

YARA MOURÃO

 

I

O cowboy tinha um olhar silencioso, largo, que seguia pacientemente a manada cinzenta.

Sua voz poderosa de comando ressoava quente e áspera pela estrada modorrenta.

Era uma tarde de sol alto com aquela claridade ácida zunindo pelo rosto, pelos olhos, cegando a caminhada. Mesmo assim, ele seguia em seu cavalo adornado de peles, como um animal de raro porte que levasse um nobre ao seu destino.

Chegando às cercanias do rancho, seu canto surdo e dormente ecoou no campo como uma oração. Porque ali era o altar de suas oferendas, seu porto, onde podia, por fim, saborear, no cheiro morno e no suor pegajoso de seu cansaço, a luta e a glória de ser o senhor daquela terra.

 

II

Ana ainda secava os cabelos quando o ouviu chegar. Demorou-se no banho até livrar-se dos restos do parto. O bezerro demorou horas na sanha pela vida. Ele sobreviveria e também a mãe. Mas a luta exauriu bicho e gente numa empatia enclausurada dentro daquele galpão.

Ana sentiu uma imersão no seio da natureza desde o primeiro até o último mugido dolorido. Quando cravou os olhos no focinho da vaca Ana envolveu-se num silêncio cúmplice; de alguma forma o ressonar compassado do animal lhe trazia o ritmo da respiração do parto. O bicho mugia de tempos em tempos e ela gemia quando vinham as contrações.

Posicionou-se ao lado da vaca no macio da palha no chão, - que era como o macio do colchão de palha- Não havia pressa; o tempo escorria doído. O arfar do peito se misturava ao gosto açucarado que lhe escorria pelo rosto. Não sabia mais o que era ela e o que era o animal.

As patas retesaram.

Sentiu um forte puxão nas pernas.

A pressão no ventre expulsou aquele pedaço de carne lambuzado de vida.

Ana acomodou a cria. Banhou-se.

Ouvindo o canto na beirada da cerca correu para abraçá-lo. Queria lhe dar logo a notícia de que seu esperado bebê havia chegado.

 

Romance de férias - Ises A. Abrahamsohn

 




Romance de férias

Ises A. Abrahamsohn

 

Aquela incrível luminosidade do Mediterrâneo foi se insinuando sob sua pele, até preenchê-la totalmente de uma felicidade sutil. A brisa suave vinda da costa teimava em levar seu chapéu. Chapéu comprado às pressas antes de embarcar no porto de Chania ao se despedir de Heitor. Não queria ceder ao mar essa lembrança dos dias passados em Creta. Deixou-se ficar ali no tombadilho aspirando aquele azul cristalino refletido do mar Egeu.

Tinham sido férias inesquecíveis. Conheceu Heitor por acaso. Ligou para o seguro viagem para indicarem um oftalmologista. Era uma infecção banal, um terçol, que logo desapareceu com uma pomadinha de antibiótico. O médico ligou para  o hotel para saber se estava melhorando. Convidou-a para um café. Marisa hesitou um pouco antes de aceitar. Afinal estou em férias e ele é bem simpático. Soube que era inglês, Hector, a mãe grega casada com um militar inglês estacionado em Creta após a segunda guerra. Também lhe contou que era divorciado e, após a separação traumática, viera há cinco anos se instalar em Chania, cidade natal de sua mãe. Se de fato era verdade, Marisa não insistiu em saber. Encontraram-se ainda várias vezes, ele a levou para conhecer a ilha e ela se encantou com o namorado. Um romance de férias, por que não? Ele deve pegar as turistas desavisadas como eu que aportam por aqui. Hector se revelou muito carinhoso e as noites compartilhadas foram muito, muito agradáveis. Ao final de três semanas, chegara a hora de Marisa se despedir. Se ficar mais tempo vou me apaixonar por ele, e a coisa ficará complicada.

Pensou no seu consultório de psicóloga em São Paulo, nos dois filhos adolescentes. Na sua vida estruturada em São Paulo. Ele lhe propusera vir morar em Chania. Mas, e daí? Mas as crianças, mas os pais, mas como vou me sustentar?

 Hector veio ao cais, vê-la embarcar. Disse que iria visitá-la em São Paulo.

  Venha mesmo, disse Marisa, ao abraçá-lo. Subiu a escada do navio e, debruçada na amurada, jogou-lhe um último beijo enquanto o navio se afastava. E ali ficou olhando o casario do porto pouco a pouco esvanecer e os contornos das montanhas brancas se fundirem com o mar tranquilo e azul, o mesmo azul dos olhos de Heitor.


A raposa do “Pequeno Príncipe” - Ises de Almeida Abrahamsohn

 



A raposa do “Pequeno Príncipe”

Ises de Almeida Abrahamsohn

 

Alzira virou-se para Emília, sua irmã, e comentou quando assistiam ao programa no domingo à noite. Esse é mesmo uma raposa velha. Político daqueles que roubam e enganam a todos. E o pior é que é reeleito ano após ano.

As duas irmãs septuagenárias conviviam no mesmo apartamento desde a viuvez de Emília, três anos mais nova. Alzira nunca se casara embora tivera alguns companheiros ao longo da vida. Duas irmãs muito diferentes no temperamento e na maneira de encarar a vida. Emília era enfermeira de profissão, serena, de fala pausada, contente com sua vida atual, sem sobressaltos ou outras ambições a realizar. Tinha apenas duas amigas com as quais ia a concertos e ao cinema. Eram amigas de longa data, que se mantiveram desde a época do hospital. Conversavam sobre livros, filmes e pessoas e acontecimentos comuns. Vez por outra combinavam um almoço ou jantar em algum restaurante especial. Emília sabia que podia contar com as duas. Para o que der e vier... comentavam entre si, e de fato o apoio era recíproco, não importa a situação.

Alzira, em contraste, estava sempre com a agenda cheia. Tinha trabalhado como jornalista por quarenta anos. Era muito falante e agitada, tinha um grande número de conhecidos. Todos os dias da semana eram ocupados. Grupo de teatro, grupo de discussão política, grupo de ginástica, grupo de dança, grupo do clube de carteado, grupo de culinária étnica, grupo dos enólogos e assim por diante. Raramente estava em casa. Apenas no domingo, quando cansada, aproveitava para dormir até o meio dia. Depois almoço com a irmã, a leitura do jornal à procura das novidades culturais e algum filme ou programa na TV. Para recomeçar o carrossel de atividades na segunda.

Você é muito parada, Emília, dizia Alzira enquanto digitava alguma mensagem no celular. Venha conhecer os meus amigos do clube. Só lá tenho dez ou mais pessoas superinteressantes. Você vai conhecer gente nova e, cá pra[PA1]  nós, as suas amigas Tereza e Dora do tempo do hospital são absolutamente insípidas. Você precisa de agente animada e estimulante.

Emília sorria... Alzira, eu não preciso de dezenas de conhecidos falando o tempo todo, sobre assuntos que não me interessam especialmente. Você sempre foi agitada, hiperativa. É bom ter muitos interesses, porém é necessário cultivar aquilo que de fato agrada e sobretudo cultivar amizades. Você certamente leu algum dia O pequeno príncipe de St. Exupéry. Lembra? Todas as misses nos concursos citavam o livro. Devia fazer parte das respostas treinadas antes nos bastidores à fatídica pergunta: Se havia algum livro preferido da concorrente.

Vou lembrar a raposa, personagem que dialoga com o menino. Essa raposa, símbolo de astúcia, mas também de inteligência, fala sobre a necessidade cativar as pessoas, se você quer ter amigos verdadeiros e não apenas conhecidos. Cativar é dar atenção especial. É o primeiro passo para conhecer verdadeiramente alguém. Vai acontecer que muitas vezes não haverá reciprocidade. Mas quando houver, poderá ser o início de uma verdadeira amizade. Como a que eu tenho com a Tereza e a Dora. E aí você terá amigos de verdade, serão poucos, e para mantê-los você continuará a alimentar a amizade. Ou como diz a raposa: precisará cativá-los. Experimente tentar cativar algum de seus conhecidos.

Aconteceu que Alzira ao sair de uma das atividades não viu o buraco na calçada mal iluminada. Tropeçou e caiu, sem conseguir se levantar. Levada ao hospital soube que tinha fraturado o osso da perna direita. Terrível notícia. Um mês com gesso, sem apoiar o pé e mais algumas semanas de fisioterapia para voltar a andar. Revoltante, pensou Alzira.  As minhas amigas do clube? Vou ter que ficar em casa vendo as séries do Netflix, mas chega uma hora que satura. Preciso conversar com o pessoal, saber das últimas...

Em casa, Alzira derreada numa poltrona e com a perna engessada apoiada no puff, tinha o celular como último recurso de atividade social. Ligava para uma, depois para outra, para as Marias do carteado, para a Sônia da dança, para o Edú e o Mário do grupo dos enólogos, para o Joaquim da política.

Oi, fulana (o) soube do meu acidente? Pois é, estou imobilizada em casa. Venha me visitar. Tomar um cafezinho... e um bolo feito pela minha irmã...

Ah...  Essa semana você não pode? Venha na segunda próxima...

Que pena, também não dá?

Vamos diga qual o dia par a gente marcar... Eu aviso a Emília.

Sim, eu sei que você é muito ocupada (o), arruma um tempinho aí...

Tá certo, a gente se telefona na semana para combinar. Abraço, querida (o)...

Após umas dez ligações, cujo teor não variou muito do acima descrito, Alzira suspirou. Que gente tão ocupada e agitada. Não tem nem uma horinha para visitar uma acidentada, para um papinho com uma amiga sozinha aqui ... 

Cansada, Alzira voltou a atenção ao jornal que estava lendo. Mas as letras começaram a embaralhar, as pálpebras ficaram pesadas e ela adormeceu.

O celular tocou e Alzira atendeu.

Quem é? Perguntou, ao ouvir uma voz meio rouca que desconhecia.

Sou a raposa, a amiga da Emília.

Raposas não usam telefone, retrucou Alzira. Isso deve ser um trote.

Não, não desligue, sou a raposa do Pequeno Príncipe, aquela que fala dos verdadeiros amigos e da necessidade de cativá-los...

Venha me visitar, dona raposa ou seu raposo não sei se você é macho ou fêmea, eu estou com a perna quebrada e nenhum dos meus conhecidos tem tempo para mim.

Você tem que ter amigos, Alzira e não apenas conhecidos.

Nesse momento, Emília entrou trazendo um copo de chá gelado e acordou Alzira do seu cochilo.

Alzira acorde, seu celular está tocando insistentemente.

Deve ser a raposa, pensou Alzira, mas era a Joyce do grupo de leitura. A Joyce era aquela colega um tanto tímida, ruiva e sardenta, de fala pausada, muito tranquila. Alzira tinha conversado um pouco com ela, até a achou interessante, mas ela era ofuscada pelos mais falantes do grupo.

Soube que teve um acidente e está imobilizada em casa, falou Joyce. Eu já tive uma fratura de perna e sei como é chato ficar assim presa a uma poltrona. Gostaria de lhe fazer uma visita.

Alzira ficou sensibilizada. Agradeceu muito e marcaram a visita para o dia seguinte. Joyce veio e ao longo da conversa descobriram muitos pontos em comum. Alzira conteve sua habitual loquacidade. Despediram-se com a promessa de Joyce de voltar em dois dias.

À noite, em sonho Alzira voltou a encontrar uma raposa.

Você pediu e eu fui visitá-la hoje, Alzira, falou a raposa ruiva. Agora cabe a você me cativar.

Mais tarde, Alzira deixou uma mensagem de WhatsApp para Joyce agradecendo a visita. E pediu para Emília fazer o bolo de laranja que Joyce disse ser o seu preferido. As visitas de Joyce se repetiram e Alzira e Joyce desenvolveram uma verdadeira amizade alimentada por cuidados e atenções recíprocas.


 [PA1]

O Buraco Negro - Yara Mourão

 



O Buraco Negro

Yara Mourão

 

E é assim, com uma atração tamanha

Que ele habita o universo.

E com uma força estranha

Faz o movimento inverso

Pois não se expande, mas concentra

Em seu abismo sideral,

Mundos inalcançáveis

E as maravilhas incontáveis

Da explosão primordial!

 

O buraco negro me fascina.

Me faz pensar na triste sina

Do homem, sem lugar no cosmos

Onde melhor seria

Ser um astro

A orbitar sem deixar rastro.

Onde, enfim, eu gostaria

De estar só; e ficar perdida

Entre a morte e a vida

Como um átomo qualquer.

E aí, desintegrar...

Desfazer minha matéria,

Desfazer os sonhos meus,

Habitar o nada

E me encontrar com Deus.  

BURACO FALANTE - Oswaldo U. Lopes

 


BURACO FALANTE

Oswaldo U. Lopes

 

         Bruno desviou do primeiro buraco e, como consequência, caiu no segundo. Foi então que começou a entoar:

Buraco, buraco

Buraco que eu nunca quis

Buraco que nunca se acaba

Buraco que se acaso desaba

Faria o mundo infeliz

         Eta, paródia malfeita (Bocage que me perdoe) , mas foi desviar do da esquerda e caiu no da direita.

         — Buraco filho da p...

         — O que você disse?

         — Eu disse buraco canalha

         — Não foi o que eu ouvi

         — Quem é você, se estou sozinho no carro?

         — Sou o buraco falante

         — E desde quando buracos falam?

         — Desde que vocês nos inventaram.

         A coisa começava a ficar complicada, estrada escura, desconhecida e cheia de buracos. E agora um deles começara a falar. Meu São Cristóvão valei-me!

         — Ele não pode valer-te se você guiar a porcaria que está guiando.

         — E desde quando você lê pensamentos?

         — Desde que esteja na cara o que você pensou. E não vai apelar para Santo Antônio só porque é seu padrinho e homônimo de seu falecido pai.

         — Vamos nos entender, não conheço a estrada que além de péssima é cheia de buracos. Fui desviar do buraco à esquerda e cai no buraco à direita. O que você acha disso?

         — Eu não acho nada, você desviou de mim e caiu no buraco do primo André.

         — Não me diga que vocês são parentes.

         — É claro que somos. Todos os buracos são. Alguns são tão próximos que você mal consegue separar, são os gemelares. Outros são encostados, mas com pequena separação, são irmãos. Outros se separam por distância maior são os primos. E assim vai. Têm buracos sobrinhos, tios, cunhados. Como em todas as famílias.

         — A conversa está boa, mas a estrada é nova para mim e está cheia de parentes seus. Eu queria mesmo era encontrar um bom Posto de Gasolina, comer alguma coisa e tratar de descansar. Você pode me ajudar?

         — Essa é fácil 28 buracos a frente você encontrará o tal posto.

         — Porra, que coisa de louco! Agora vocês medem distância em buracos?

         — Muito mais preciso que aquele metro duvidoso que conservam em Paris e cuidado, não vai ultrapassar aquele caminhão pela esquerda que você vai cair no tio Afonso. E esse é um buraco dos bons.

         E assim seguiram a conversa, de buraco em buraco e acreditem, Bruno chegou ao tal posto. Agradeceu ao buraco falante, primo do André e até descobriu que o tal buraco também tinha nome: Augusto.

         — Boa noite, Augusto.

         — Boa noite, Bruno!

 

 

 

A BAILARINA ENDIABRADA - Oswaldo U. Lopes

 




A BAILARINA ENDIABRADA

Oswaldo U. Lopes

 

                            Caia

                             A tarde feito um viaduto

                             E um bêbado trajando luto

                             Me lembrou Carlitos

 

        Regina continuou guiando, enquanto escutava a musica. Gostava muito dela, achava bonitos os versos, lindos para dizer a verdade e o curioso, absolutamente datável.

        Não ia ficar discutindo, calendário Gregoriano, Juliano ou coisa que o valha. Muito menos A.C, D.C., A.D, E.C. (era comum),

A.E.C. (antes da era comum). Ficou apenas pensando o que o próprio Jesus Cristo, Causa e Senhor da polemica pensaria dela:

“ Amai-vos uns aos outros como eu vos amei, fazei sempre o possível e o impossível para viver em paz com seus irmãos. ”

        Simples não. Poderia ter dito: Não me aborreçam, o importante não é quando nasci, mas a mensagem que Eu vos trouxe.

        Viaduto que caiu no Rio de Janeiro era o Elevado Paulo Frontim, que devia ter o nome de um francês e desmoronou antes de inaugurado no dia 20 de novembro de 1971. Dia conhecido e manjado, Depois de Cristo, Ano do Senhor, ou da Era Comum, era um sábado e matou muita gente e ficou famosa a fotografia de uma betoneira em cima da parte que desabou. Que ideia, que associação de fatos!! Regina sorriu, os versos se comunicavam por um poder misterioso que só a poesia tem.

        Já escutara muita gente cantando a musica. O próprio autor João Bosco, o outro autor Aldir Blanc, Zizi Possi, Casoy, Heróis de Botequim, Trio Café, mas que a desculpasse Maria Rita e sua bela carreira, mas como Elis Regina não havia comparação. Já vira e ouvira suas diferentes versões e ainda ficava impressionada, como naquele frágil corpinho cabia tanta voz.

        Aos Precisionistas de plantão, Regina pensou, a canção é samba foi iniciada no ano de 1977, em 1979 estava pronta e a primeira gravação foi da Pimentinha (Elis). Por suas conotações semiexplícitas também ficou conhecida como Hino da Anistia. Em qualquer calendário que se queira adotar foi composta (1979) depois da queda do viaduto (1971).

                             A lua

                             Tal qual a dona dum bordel

                             Pedia a cada estrela fria

                             Um brilho de aluguel

 

        Continuava a guiar e a lembrar. Quando fora mesmo que mandara um homem para a Zona? O Bar era o Reencontro que ganhara maldosamente o apelido de boate dos Cornos. Não era verdade, o dono fazia questão absoluta de que não houvesse nem garotas nem garotos de programa entre os presentes.

        Então você tinha casais e não poucos, gente solteira a vontade, gente procurando gente, respeitadas certas regras, já que ninguém que frequentava era ou estava a fim de programa.

        Pois bem, ela estava no balcão com um delicioso Martini nas mãos quando o cara sentou ao lado e vai que vem, começou a esfregar na sua perna e no braço. Lançou lhe o olhar fulminante número dois, o famoso “se enxerga e chega para lá”. Suas amigas que conheciam o olhar diziam dele: ”Chique mesmo é mandar se "fuder" só com o olhar”.

        Parece que olhara para uma toupeira recém-saída do escuro, o cara continuou com o mesmo tipo de aproximação. Não teve dúvida falou alto e bom som:

        “ Quer encostar em mulher que aceita, até contra vontade, porque ta afim de cache, vai para a ZONA”. Ouviu o salão estremecer e até ouviu aplausos que iam num crescente. Pelo espelho viu o cara sair pela porta todo escondido e envergonhado. Teve vontade de repetir: Vai para a Zona, mas não foi necessário, o cara simplesmente escafedeu-se.

                              Meu Brasil que sonha

                                      Com a volta do irmão do Henfil

                             Com tanta gente que partiu

                             Num rabo de foguete

 

        Até o humor era melhor. Quanta saudade do Pasquim, dos fradinhos que dava até arrepio de lembrar! É o Milton Nascimento tem razão a musica popular de hoje está uma porcaria, bem lembrado embora ele não tenha dito porcaria, tinha toda razão. M...

        Ainda tinha o Victor Brecheret a dar voltas no túmulo e ranger de ódio. A direita sanguinária, quase destruiu a sua famosa dançarina, salva por gente boa na coisa. A esquerda de ponta queria destruir ou remover seu monumento imortal: As Bandeiras.

        Coisa de intelectual apressado que leu e não entendeu. Para encontrar na história da arte algo semelhante, era preciso ir ao Parthenon dos gregos, Miguelangelo ou Rodin. É favor não confundir, estátuas de escravocratas a cavalo com espada na mão com conjunto de granito, esculpidos na pedra em grupo monumental e único!


                             Chora a nossa pátria mãe gentil

                             Choram Marias e Clarisses

                             No solo do Brasil

 

        Meu Deus, eles estão falando do pessoal da resistência na TV Cultura. Rodolfo Konder, Pacheco Jordão, Vladimir Herzog, ela lembrou que também deixara rolar lágrimas. Corria o ano de 1976, maio para ser mais precisa, estava em Londres para um Congresso de Patologia que coincidiu com a chegada do Presidente Geisel.  

      Acostumado com repressão bancada pelo exército, Geisel não imaginava ou imaginou que, além de passear de carruagem com a Rainha Elizabete, haveria, como houve muitas e muitas manifestações de contrários à sua presença que não foram impedidas pela policia, mas por ela organizadas.

        Dai a publicação de uma foto horrível do Vladimir com as pernas dobradas na altura dos joelhos, com um cinto amarrado no pescoço pendurado numa janela baixíssima. Foto apontada como do suicídio do jornalista. Não tinha ideia de onde ela surgira, fora lhe passada por um colega inglês no Congresso, mas era crua demais, dolorosa demais, brutal demais, sentiu as lagrimas lhe escorrerem pela face. Acabara de ver a foto testemunha do assassinato do jornalista.

 

                                    Azar

                                    A esperança equilibrista

                           Sabe que o show de todo artista

                           Tem que continuar

 

        Estava chegando ao final de seu trajeto. Quase chorara de novo. A bailarina endiabrada estava cansada. De dor, de miséria, de tristeza. Como é que ia fazer para continuar o show?

        Esta é uma outra história que não cabe aqui. Até daqui a pouco. Um beijo...

 

 

Veja aqui uma das tantas interpretações magníficas que a Elis fez dessa música.