Troca de Emoções - Maria Verônica Azevedo






Troca de Emoções
Maria Verônica Azevedo


         Perdi o sono de madrugada. Uma olhada no relógio revelou que eram cinco horas.

         Então, me deu a vontade de ver o amanhecer na praia.

         Eu estava em Salvador para ministrar um curso de Didática para professores. A aula só começaria às oito horas no salão do hotel.

         Vesti uma roupa leve: bermuda de algodão e camiseta. Desci os dois lances de escada que levavam à recepção do hotel. Saí em linha reta em direção à praia de Itapuã.

         Com os olhos no encontro do céu e mar, livrei-me das sandálias afundando os pés na areia branca e macia. O silêncio era reconfortante. A luz do Sol se insinuava no horizonte.

         Na praia, as silhuetas dos pescadores, começando a voltar da lida, quebravam a paz e rompiam o quase silêncio com suas vozes que se misturavam ao rumor das ondas.

         Vinham empurrando, até a arrebentação, os humildes barcos de pesca repletos de pequenos peixes.

         Era bonito de se ver os garotos ajudando os pais. Ali mesmo separavam os peixes por tamanho em grandes cestos de palha.

         Sentei-me na areia e fiquei ali observando.

         Um menino cuidava de um dos grandes cestos, agachado na areia, observando o pai que dobrava a rede de pesca.

         No instante seguinte o pai o chamou para comemorar o êxito da pescaria daquele dia.

         Começaram um canto ritmado. O pai se pôs a ensinar ao filho passos de capoeira. A cena me emocionou. Guardei-a na memória. Meses depois a reproduzi num quadro.
        
                 


         Enquanto observava a dança de pai e filho, um movimento ao longe, na orla do mar, mostrava uma silhueta difícil de distinguir.

         Fixei a atenção. Aos poucos percebi a aproximação de um burro com dois grandes cestos no lombo, um de cada lado e um homem acomodado entre eles, no lombo do animal. Vinha bem devagar entoando uma canção.

         Vendia água de coco.

         O Sol já estava forte suficiente para que o calor me fizesse desejar a bebida.  

         Ali, no meio daquela cena poética, me senti bem recebida naquela terra baiana, até então bastante estranha para mim.

         Sai da praia revigorada e com mais coragem para encarar a tarefa de falar sobre educação para aquele grupo de cinquenta professores de escolas fundamentais do interior da Bahia. Uma realidade tão diferente da minha.

         Dessa vivência eu mais aprendi do que ensinei. Foi emocionante a troca de experiência com aqueles professores que faziam muitas perguntas, mas também emocionantes depoimentos de vida. E de uma vida desconhecida para mim.
        

VENTO CONTRA - Sérgio Dalla Vecchia



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VENTO CONTRA
Sérgio Dalla Vecchia



Zaki (inteligente, esperto), filho de Simba (força, leão) e Iana (flor bonita, graciosa) sentado no chão de terra batida dos seus ancestrais, esforçava-se para terminar a lição de casa, utilizando as três únicas ferramentas intelectuais que recebeu na humilde escola primaria no interior do Congo; lápis, caderno e borracha. 

Ele se apegou tanto nessas desconhecidas ferramentas, esperto como seu próprio nome dizia, com a força herdada do pai Simba e a graciosidade da mãe Iana nada o detinha para fazer as lições e desvendar o mundo encantado das letras.

Era querido por todos os poucos coleguinhas e pela amada professora. Via nela seu futuro. Com sofreguidão engolia as frases ditadas, para depois digeri-las transcrevendo-as para o caderno.

Certo dia surgiu um grupo de jovens voluntários para tratarem da saúde dos alunos. Médico, dentista, nutricionista e outros abnegados do bem querer.

Zaki quando viu a figura do médico, de branco e estetoscópio no pescoço, arregalou os grandes olhos e como uma máquina fotográfica registrou no âmago do cérebro a imagem de um salvador.

Nesse momento de sintonia, o simpático médico vendo aquela expressão de espanto, passou a mão na cabeça do menino e disse-lhe. Calma garoto não vou lhe fazer mal algum, não tenha medo.

Ainda atônito, Zaki foi relaxando até soltar palavras presas na garganta:

—Quero ser igual a você!

O jovem médico, sensibilizado o abraçou carinhosamente.

— Zaki, você terá que estudar muito e lutar com muita garra para vencer os principais inimigos, a carência e o preconceito para se diplomar em medicina.
Zaki ouvindo aquilo, não se abalou e com expressão confiante disse:

— Você me ensina a ser médico?

Essa pergunta tão espontânea, atingiu Dr. Irajá de tal maneira, que respondeu de pronto com o coração.

— Ensinarei sim com muito gosto! Respondeu emocionado.

Desse dia em diante, Dr. Irajá acompanhou pari passo a escalada de estudos de Zaki ajudando financeiramente.

A cada desafio, médico e aprendiz se uniam como num só e logo a barreira era transposta com sucesso. Eram como pai e filho. O amor pela profissão os fundia.

Zaki um rapaz de 25 anos, agora lutava para a conquista do diploma tão almejado. Estava no último ano da famosa Queen Mary University of London.

Nas madrugadas enquanto estudava, o sono queria derrubá-lo, mas com os pés imersos numa bacia de água fria, logo o rechaçava e mais algumas páginas eram assimiladas. Assim ia madrugada a dentro.

Às vezes, Zaki escapava por instantes da sua perseverança e recordava a infância sofrida, o primeiro caderno, das vogais e da imaculada professora. Pensamentos de glória e ao mesmo tempo de tristeza pela carência da sua terra natal, inundavam seu cansado cérebro. Lágrimas brotavam!

Assim, passado algum tempo chegaram os exames finais.

Após muita ansiedade, ele foi aprovado nos exames com louvor e classificando-se entre os três primeiros colocados.

Dr. Irajá e Zaki não se continham de tanta alegria. Ambos haviam derrotado com bravura a carência e o preconceito que sopravam incessantemente na direção contraria do objetivo.

Logo voltaram à África, onde foram recebidos com honras na mesma Escolinha e com o mais caloroso dos abraços da amada professora.

O BALEIRO SE FOI - Silvia Helena De Ávila Ballarati




O BALEIRO SE FOI
Silvia Helena De Ávila Ballarati


          Quero apresentar pra vocês uma pessoa encantadora, um ser humano especial, o tio Beto.  Ele não era meu tio de sangue, mas eu o considerava como se fosse. Aliás, quando soube da dura verdade, chorei por uma semana, fiquei arrasado, não havia meios de me consolar.  Isso foi há muito tempo...

          Tio Beto tinha sempre o bolso da calça repleto de balas para dá-las às crianças. Agradá-las era o que o movia na vida. Desde sempre fora assim e agora, com a doença de Alzheimer se avizinhando, estava esquecendo quase tudo, menos as suas preciosas crianças, parecia se lembrar apenas delas mesmo.

          A própria esposa fora confundida com a funcionaria doméstica várias vezes, o que lhe causava uma pontada de tristeza; mas na maioria das vezes, acabava rindo da situação. Entretanto, a meninada, esses nunca perderam a identidade e importância para tio Beto.

          Chamava os mais próximos de nomes, os mais inusitados, Reco-reco, Farofinha e por aí iam os variados apelidos. Os olhinhos ansiavam pela convocação, parecia a hora da chamada na escola. Eu também incorporava profundamente essa fantasia, era chamado de Chico-Juca.

          Tio Beto dizia que o segredo da felicidade estava na comida mais saudável do mundo, o Mufurufo e a partir disso, todos comiam com satisfação. Deixavam as mães enlouquecidas quando pediam para fazer a receita do tal prato que não existia. Nada mais era, do que arroz, feijão, carne moída, ovo e tomate, delicioso! Se comerem direitinho o mufurufo, vocês vão ficar circuncinfláusticos, dizia tio Beto, abrindo aquele sorriso.

          Quando nos empoleirávamos em seu pescoço, deixando-o em apuros, era fácil tirar-nos de lá. Bastava chamar Tchau-tchau, Manezinho, vamos tomar um diurético anacreôntico, que era um simples copo d’água. Mas essa água era a própria energia que nos revigorava. Corríamos atrás do tio Beto, fazendo fila para beber do maravilhoso elixir.

          Se algum menino chorava, ele punha a mão no bolso, tirava um punhado de balas e o distraía dizendo que ele era muito silamagnático, isto e aquilo. Fazia muitos gestos e caretas e a tristeza passava como que por encanto.

          Quando a doença foi tomando conta de tio Beto pra valer, as poucas visitas que sua mulher permitia, eram as crianças. Em geral, receber pessoas deixava-o muito agitado e para ela ficava difícil acalmá-lo depois.  Só mesmo para a meninada ela abria uma exceção.

          Nós não o achávamos doente; o fato de repetir incessantemente as perguntas e respostas era prazeroso, parte da brincadeira.  Quem é você? E a gente apressava em se apresentar, gritando, sou o Chico-Juca. De novo, quem é esse? Sou a Farofinha, o Miau-Miau, e assim passávamos a tarde.

          A mulher dele conservava a bombonière cheia de balas, no intuito de manter a tradição de dá-las para as crianças, e principalmente, por saber que pequenos gestos como esses traziam conforto ao marido. Nós adorávamos! E ela, na sua altiva resiliência, cada vez mais, via-se na condição de uma desconhecida cuidadora.

          A cada termo que tio Beto nos ouvia dizer, daquele palavreado inventado, ele sorria e seus olhos ficavam marejados. E nós disputávamos para falar mais alto, para sentar no colo dele em primeiro lugar, sem nunca nos darmos conta da emoção que nossa visita causava nele.

           O fato de tio Beto se alterar, preocupava a esposa, mas esses momentos valiam a pena. Eles traziam um pouco do que restava do passado, vinha-lhe à mente a alegria contagiante do marido, o amor que os unia, enfim, resquícios da felicidade que viveram um dia.  Célia, companheira de décadas, fora definitivamente esquecida; em contrapartida, as crianças e suas alegres brincadeiras jamais, essas permaneciam no mais profundo e inexplicável recanto da memória, totalmente preservadas.  

          Hoje, olhando para trás, acho tudo muito interessante. Do que nossa mente mais gosta e prefere recordar, ninguém tem a menor ideia.  Esses caminhos são o verdadeiro segredo, principalmente para pessoas especiais como o tio Beto.
  

Um padre emblemático - Ledice Pereira



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Um padre emblemático
Ledice Pereira


A morte de Padre Simone deixou a cidade maranhense de Governador Eugênio Barros à deriva por alguns meses. Alguns padres de cidades vizinhas vinham rezar uma ou outra missa de domingo, mas a falta de alguém que tivesse pulso firme e conduzisse a vida religiosa do município fez com que os fiéis se dispersassem.

Depois de uns três meses, surgiu, montado num cavalo, Padre Evaristo. O prefeito estranhou não ter sido avisado, mas a cidade estava tão precisada que recebeu o homem com as honras da prefeitura, encaminhando-o para as dependências da velha igreja.

Uma cama simples e limpa e uma escrivaninha antiga compunham a decoração do quarto, mostrado por Alberta, responsável pela limpeza da Igreja e adjacências.

Ao lado, um pequenino banheiro mostrava ao homem o desejado chuveiro.

Alberta fez um muxoxo, ao verificar as pegadas de terra deixadas pelas botas do padre.

Padre era santo então tinha que limpar e ficar quieta.

Após o banho reconfortante, padre Evaristo procurou-a para entregar-lhe a roupa surrada e suja.

Cara serviçal! gritou. Cá estão minhas vestes. Sei que me achas um marmota, mas que fazer? Estes são os trajes de que disponho. Ficaria muito grato se me fizesses um caldo bastante nutritivo, pois a viagem deixou-me deveras fadigado. Outrossim, podes dirigir-te à botica para compra-me uma droga qualquer que me tire esta dor de cabeça alucinante?

Alberta, mulher simples, de pouco estudo, criada ali na região, o olhava espantada, sem entender patavina. Devia lavar a roupa e fazer uma sopa. O resto, bem o resto achou muito complicado. Botica, tinha uma dentro do armário. Droga, nossa, ali não tinha droga não.

E assim começou a saga de Evaristo vamos chamá-lo assim.

A cidade de Governador Eugênio Barros fica a 372 km da Capital, São Luís. Com uma área de 817 km² e uma população aproximada de 16.000 habitantes, a cidade tem vida própria. Tudo parece funcionar a contento e com muita simplicidade, apesar de ter sido emancipada em 1961 e, portanto, muito jovem.

Aquela noite, depois de fartar-se com a sopa feita por Alberta, o nosso homem recolheu-se aos santos aposentos onde sonhou sonhos inimagináveis.

O prefeito poupou-o de rezar missa no dia seguinte. A população estava mesmo desacostumada.

Uma semana e o sino tocaria sempre às 6h.

A semana foi de grande proveito para nosso Evaristo. Conheceu a cidade, o comércio, a botica, como dizia, a única agência bancária.

Ia cumprimentando a todos, com seu jeito único.

Satisfação, senhores! Sou o novo pároco da cidade. Esperarei, com grande efusividade, a presença de todos na próxima terça-feira. Não se olvidem!

A população se entreolhava. Que figura mais esquisita era aquele padre.

A curiosidade levou-os à missa na semana seguinte.

Ao toque do sino todos se aglomeravam à frente da Igreja Nossa Senhora da Conceição.

Lá estava ele sorridente, recebendo um a um.

Bem-vindo, senhor! Bem-vinda, senhora!

Naquele horário da manhã, não era habitual haver sermão, mas o padre estava sedento de transmitir sua eloquência.

“Irmãos e irmãs, vós estais na casa do Senhor e deveis respeitá-la acima de tudo. No momento em que depreenderes a palavra do Senhor, vosmecês sentir-se-ão aprazíveis!

Hoje, entabula-se uma nova era na existência de todos que aqui se deparam...”

E por aí foi o discurso de uma hora proferido pelo novo sacerdote.

Alguns tiveram que ir se esgueirando sorrateiramente pelos cantos da igreja, procurando uma saída. Outros, ainda ali permaneceram tentando decifrar aquele sermão.

Que saudades do Padre Simone! diziam perplexos.

Alberta, que acompanhara de perto a celebração da Missa sentia-se desconfortável. Estava tão habituada à simplicidade do velho padre. Voltou para sua cozinha para preparar o café quando ouviu:

Os ovos podem ser poché.

Ficou olhando com aquela cara de interrogação. Que raio de ovo é isso. Nunca ouvi falar essa palavra.

O senhor vai desculpando qualquer coisa, mas não entendo nada do que o senhor fala.

Assim foi que Governador Eugênio Ramos conheceu Evaristo.

Aos poucos, o padre deixou de ser uma incógnita para os eugênios barrenses, que foram se acostumando àquele palavreado estranho, o que os obrigava, muitas vezes, a consultarem os dicionários, a biblioteca, os professores.

Principalmente, os jovens começaram a se preocupar com a maneira de falar. Passaram a ler mais, a trocar ideias, a promover papos-cabeça.

Os professores passaram a se informar mais sobre a língua portuguesa e seus sinônimos para estarem prontos a responder às indagações dos alunos.

Até as crianças passaram a perguntar o significado dessa ou daquela palavra, ampliando o antes pobre vocabulário.

Vereadores e até o Prefeito passaram a usar verbetes mais rebuscados.

Apenas os idosos resistiam, talvez por vergonha, à nova febre que movia a cidade.

Passados dez meses, a Cúria comunicou o Prefeito de que estava encaminhando um novo pároco para a cidade. Ao saber da existência de Padre Evaristo, o Bispo mostrou-se surpreso. Não havia, nos arquivos, nenhuma informação sobre esse religioso, muito menos indicação de que devesse substituir Padre Simone.

Acionada, a Polícia Federal entrou em ação para descobrir a charada.

Depois de muita investigação e sério interrogatório, concluiu-se que nosso Evaristo havia estudado no Seminário em São Luís. Sua mãe fizera promessa à Virgem Maria de que o filho seria padre.

O jovem não tinha a menor vocação e acabou fugindo do seminário. Com medo de voltar para casa, passou a morar nas ruas da cidade. Sua forma educada e diferente de falar e tratar as pessoas garantia-lhe, sempre, um prato de comida. Os bicos como jardineiro ou pintor de paredes davam-lhe algum trocado e até um local para dormir.

Ao saber, pelos jornais, da morte de Padre Simone, achou que poderia se fazer passar por substituto. Sabia dos trâmites que levavam à demora em designar alguém para o lugar dos padres que faleciam. Foi assim que se apresentou como novo Pároco da cidade. Tudo para ter uma cama, banho, comida de graça e afeto. Em troca, ensinar a língua formal, que tanto apreciava.

Quase deu certo. Foi preso, mas logo conseguiu a liberdade. Afinal, em poucos meses tinha transformado a vida cultural de uma pequena cidade.

PEDACINHOS COLORIDOS DE SAUDADE - Ledice Pereira



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PEDACINHOS COLORIDOS DE SAUDADE
Ledice Pereira

Ao constatar que o Carnaval se aproximava, Natália sentiu-se triste e nostálgica.
Quantos teriam sido os carnavais em que rasgara a fantasia?

Dez, vinte, quem sabe mais.

Fora uma foliona incansável. E isso começou ainda quando criança nos bailinhos do clube, acompanhada dos pais, dos tios e da cidade inteira. Àquela época, morava em Paranapiacaba, cidadezinha colonizada por ingleses, responsáveis pela construção da ferrovia São Paulo Railway, que ligava a cidade de Santos a Jundiaí. A maioria da população trabalhava na Estrada de Ferro e morava nas casas construídas também pelos ingleses numa arquitetura diferenciada.

O ponto alto era o clube União Lira Serrana, palco das festividades de carnaval, réveillon e domingueiras que reunia toda a comunidade.

Quantas recordações povoavam a cabeça grisalha de Natália.

Quantas ilusões vividas sob o batuque das bandinhas musicais que animavam os bailinhos de então.

Promessas de amor que duravam apenas aquelas noites de carnaval e que depois se perdiam durante a quaresma para nunca mais ouvir falar.

É verdade que a esperança a alimentava durante alguns meses para depois aceitar a desilusão.

Ao mudar-se da cidade para São Paulo, já com idade de frequentar os bailes e corsos carnavalescos, Natália continuou com sua fascinação pelas festividades de Momo.

Não perdia um ensaio de Escola de Samba e até passou a frequentar uma quadra da Mocidade Alegre, que ficava perto de sua casa. Lá, conseguiu seu primeiro emprego aos dezoito anos. Costureira de mão cheia, arte que aprendera com a mãe, foi contratada para confeccionar as fantasias que seriam usadas no próximo desfile.

Dedicou-se tanto que foi convidada a desfilar pela escola como destaque, cuja fantasia teria que produzir.

Ao atravessar a passarela, Natália mal podia acreditar que estava ali naquele momento mágico, participando de toda aquela alegria festiva, ao ritmo contagiante da bateria.

Lá, encontrou aquele que foi o amor de sua vida, Mestre-Sala Fernandinho.

Durante doze anos, viveu aquele sonho de amor. Mas o sonho acabou e Fernandinho apaixonou-se perdidamente pela porta-bandeira da escola, uma linda jovem de vinte anos.

Para Natália ficou apenas a lembrança de momentos maravilhosos vividos. A proximidade do casal, entretanto, obrigou-a a afastar-se dali.

Continuou costurando para sobreviver, mas nunca mais seus olhos brilharam como dois faroletes. Tornaram-se opacos e tristes, o que não a impediram de, a cada ano, reviver os carnavais passados.

Hoje, só lhe resta ligar a TV e acompanhar os desfiles, até que o sono implacável venha cerrar-lhe os olhos e, quem sabe, levá-la a sonhos inimagináveis repletos de pedacinhos coloridos de confetes.


O Professor visitante - Ises A. Abrahamsohn.



Esquecia-se em brisas.  Emaranhava-se em fumaça.

O Professor visitante
Ises A. Abrahamsohn.

Os fatos, verídicos, até prova em contrário, aconteceram em Minas Gerais na década de 1960.

Era raro aparecer alguém realmente desconhecido na cidadezinha de beira-de-rio perdida naquele fundo de vale. Mas decididamente, esse sujeito ninguém conhecia. Não era parente ou amigo de alguém da cidade. Ao descer do ônibus na praça principal, de imediato despertou a atenção dos aposentados que jogavam truco na calçada do bar do Aníbal. Trajava terno cinza escuro e gravata, e carregava duas surradas malas bastante pesadas. Caminhou em linha reta até os jogadores que agora, em silêncio, examinavam o estranho. Este, porém não se intimidou e se apresentou.

Senhores, me apresento. Sou Epaminondas Antenor Santana de Bulhões, professor de línguas. A nossa, a língua pátria, que mais bela não há e também de outras menos afortunadas das terras de além-mar. Para facilitar podem me chamar de Antenor.

Muito prazer, murmuraram os quatro senhores, surpreendidos com a desenvoltura e maneirismos do recém-chegado.

O Ernesto adiantou-se e fez a pergunta que estava nos olhos dos companheiros: o que trazia o ilustre cavalheiro a São Gonçalo?

O visitante explicou que viera instalar-se na cidade como professor particular e procurava casa para alugar. Perguntaram-lhe o porquê de ter escolhido aquela cidade tão pequena, de recursos limitados e onde não teria muitos alunos.  Antenor deslanchou em extensa exposição de motivos entre os quais a saúde abalada que o levaram a escolher um lugar calmo para residir.

O Aníbal vindo do interior do bar se acercou e ofereceu a casa que tinha sido da finada sogra. O sujeito tinha lhe caído do céu. A casa estava vazia há dois anos sem interessados. Foram todos acompanhar o potencial inquilino até o imóvel e o Aníbal ainda arrumou um carrinho para ajudar com as malas.

O professor Antenor, que foi como o grupo passou a chamá-lo, se instalou na casa após pagar em dinheiro o primeiro aluguel.

Dois dias depois uma placa fincada no pequeno jardim anunciava Dr. E Antenor Bulhões de Castro, professor particular de línguas latinas.

O visitante movimentou o comércio local. As pessoas olhavam curiosas aquele homem muito magro e pálido, alto, de cerca de cinquenta anos sempre de terno escuro e gravata apesar do calor. Usava um chapéu claro tipo Panamá e óculos escuros. Parecia não suar. Os comerciantes se admiravam da fala do professor. Um ou outro até anotava as palavras.

O calor me faz estremunhar, não sou estouvado, não vou espaventar.

Na loja querendo comprar lençóis soltou ao atônito balconista:

Preciso de sobcorpos e de cobrecorpos para leito de matrisposos. A tessitura tem que ser algodonosa e mórbida sem remelexos para não afrontar a minha dermocobertura supradelicata.

O rapaz, sem atinar o pedido do freguês, chamou o dono. Seu Jamil achou mais fácil pedir ao comprador que apontasse nas prateleiras o que desejava. Resolvido. O sujeito queria lençóis para cama de casal de algodão macio sem bordados.

E assim o professor Antenor passava pelo comércio local esbanjando seu vocabulário, espantando os lorpas e mandriões (como os chamava) que o escoltavam para gozar dos balconistas atrapalhados com o linguajar pouco compreensível.

Ao elogiar o almoço, simples arroz, feijão e bife do bar do Aníbal, cascou:

Estupefaciente o merencório que cá degustei!

Que venga agora para intrapolar o altruístico gástrico um dedal daquele seu néctar cor das nigromantes noturnas.

Diante da aparvalhada expressão do Aníbal, Antenor se apressou a apontar a garrafa de licor de jenipapo no balcão.

Duas semanas mais tarde apareceu o Carlinhos à porta do professor, enviado pela mãe para tomar aulas com o grande erudito cuja fama tinha se espalhado pela cidade. A mãe de Carlinhos tinha grandes projetos para o garoto de doze anos. Logo teria de sair de São Gonçalo para cursar o ensino médio. Teria que fazer uma prova para ser admitido no colégio em Diamantina. O professor viera a calhar. O garoto poderia se preparar melhor para o exame.

Carlinhos voltou da primeira aula assustado. Escutara palavras e expressões que jamais tinha encontrado nos livros escolares ou naqueles emprestados da biblioteca. O professor ainda insistiu: Vejo que está despreparado para o exame. Tem que aprender muito. A se exponenciar escorreitamente no vernáculo culto da língua pátria. Em outras palavras, o garoto saiu de lá se sentindo um zero à esquerda.

Mas Carlinhos não era bobo. Tinha anotado, quando possível, algumas das palavras do empolado professor. Foi ao dicionário buscar as palavras. Espavento, vorticidade, esdruxularia, aldrabão, até existiam, mas com significados muito diferentes daqueles que o professor usava.

Mas astremonte, escalopédio, facetonímia, exponenciar, definitivamente não existiam.

Carlinhos foi conversar com a professora de português, Dona Arlete. Esta já tinha ouvido falar do tal sujeito. Achou tudo aquilo muito estranho. Foi com Carlinhos conversar com o Antenor. Apresentou-se como interessada no programa de estudos do garoto. O Antenor estava menos exuberante, talvez inibido pela mestra, mas ainda assim soltou algum palavreado: ludopédio, reguloso, estorninho, lebrateiro e etc. Com muito jeito, a professora descobriu que Antenor vivia antes em Botumirim, uma cidade minúscula perto de Montes Claros. Despediram-se e Arlete conseguiu no dia seguinte, com dificuldade, falar por telefone interurbano com a diretora da escola local.

Desfeito o mistério. O professor não se chamava nem Epaminondas nem Antenor e nem tinha altissonante sobrenome. Era um prosaico João das Neves. Tampouco era professor. Tinha apenas fixação por palavras de dicionário. Procurava palavras estranhas no dicionário e depois as usava, dando outro sentido ou criava palavras novas. A família o mantinha sob vigilância uma vez que era incapaz para o trabalho. Tinha desaparecido de casa carregando nas malas livros e dicionários, vestindo as roupas do irmão e levara o dinheiro da pensão do avô.

No dia seguinte, a família veio buscar João das Neves. Só se despediu do Aníbal. Ainda sorriu envergonhado quando este o tratou por professor. Atravessou cabisbaixo a praça e entrou no ônibus com o irmão.

MONSENHOR PARAGUAÇU - Oswaldo U. Lopes



MONSENHOR PARAGUAÇU
Oswaldo U. Lopes


         Monsenhor Anacleto Paraguaçu já tinha idade, não tinha era prestigio, provavelmente fora essa a razão dele ser designado como pároco da pequena Mato Seco. Falava empolado, com citações as mais complicadas, usando e abusando de palavras difíceis, ou mesmo inexistentes no vocabulário, de sua livre criação.

         Havia gente que o julgava parente do famoso Odorico Paraguaçu, coronel e prefeito da linda Sucupira (criação do insuperável Dias Gomes). De fato Monsenhor adorava criar palavras e neologismos meio malucos, mas não o fazia a todo momento e toda hora. Era nos sermões de domingo que ele se superava e deitava falação.

— Estamos hoje aqui celebrando a visita dos Majestáticos e Podenentíssimos Reiarcos, vindos do Oriente para cá, nesta bela cidatosquia que fica a oriente de Oriente.

         De fato Mato Seco ficava a leste (oriente) da cidade de Oriente, maior e muito mais conhecida do que Gramínea não hidratolada (era como monsenhor designava Mato Seco).

         Alias tudo ajudava a confusão. Oriente, Mato Seco deviam sua existência ao avanço das Estradas de Ferro Paulista que se deu no fim do século XIX, inicio do século XX. Muitos da região asseguravam que, por exemplo, o nome de Oriente, dado a cidade, advinha do fato dela estar a leste do Rio Grande. Nisso não estava sozinha, também estavam a leste do rio, Mato Seco, Lins, Marilia, Pompeia e todo estado de São Paulo.

Havia os mais prosaicos, Oriente devia seu nome ao fato da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, nomear suas estações em ordem alfabética, e ali chegara a vez do O. Aí os mais afoitos viam o nome de Pompéia na sequência como prova irrefutável do afirmado.  Dedução furada, Pompéia devia seu nome à esposa do senador Rodolfo Miranda que se chamava: Aretuza Pompeia.

         Bem com este cenário, Monsenhor Anacleto se encaixava que nem peça de quebra-cabeças nos arranjos caipiras e no estilo típico de vangloriações que tanto caracterizam o viver nas pequenas cidades do interior paulista.

                  Vai daí que, mulieribus, pecatorium, batisterimo, crucificatorium etc. eram palavras repetidas e respeitadas.

                   Tudo seguiria em paz na pacata e progressista Gramínea Enxuta e a vida seria blulacea, riderenturi e franconade, não fosse pela existência do Joãozinho, moleque manjado, que junto com a Mariazinha, menina também manjada, bolou um plano espetaculosium e baixou no iPhone um programa tipo dicionário e munido dele sentou-se embaixo do púlpito.

         Monsenhor Anselmo, ignorantibus do planejadoviche iniciou seu típico sermão da quaresma. Só que agora depois de cada palavra estranha que ele proferia, ouvia-se claramente uma voz potente:

— Essa palavra não existe.

         E bota potente nisso, ouvia-se até fora da Igreja. Monsenhor começou pedindo silêncio usando algumas palavras típicas de sua lavra e o que se ouvia, contradizendo o pedido, era o terrível:

— Essa palavra não existe.

         Monsenhor desceu do púlpito disposto a estraçalhar o desafortunado. Joãozinho que não era boco, mandou-se para a entrada da Igreja, com seu maldito instrumento ainda funcionando. Monsenhor deveras injuriado correu-lhe atrás e assim corriam pela cidade, ele vociferando e o iPhone esbravejando: 
— Essa palavra não existe.



GLOSSÁRIO SE NECESSÁRIO (pela ordem de aparecença)
Podenentissimos – poderosos
Reiarcos – reis
Cidatosquia – cidade
Hidratolada – molhada
Mulieribus – mulheres
Pecatorium – pecadores
Batisterimo – batismo
Cricificatorium – crucificação
Blulacea – azul
Riderenturi – risonha
Franconade – franca
Espetaculosium – espetacular
Ignorantibus – ignorante
Planejadoviche  - planejado