DIAMANTE BRUTO - Ledice Pereira






DIAMANTE BRUTO
Ledice Pereira


Personalidade marcante, machista, exigente com todos que o cercavam, Humberto gostava de se gabar, contando aos quatro ventos como conseguira chegar aonde chegou.

Homem forte, alto, musculoso orgulhava-se de sua própria trajetória.

Herdara aquelas terras (improdutivas) do pai e dos tios que, por sua vez, herdaram de seu avô. Os primos preferiram abrir mão da fazenda que, segundo eles, requeria muita mão de obra e dedicação.

A economia da região baseava-se, então, na agropecuária de subsistência.

O avô ali se fixara, vindo da província de Nazareth, em Portugal, nos idos de 1912. Acostumado a temperaturas mais amenas, escolheu o local por ser uma das cidades mais frias em algumas épocas do ano.

Inicialmente, trabalhou pesado como colono até conseguir trazer mulher e filhos.

Tanta dedicação ao velho coronel lhe valeria uns hectares de terra no testamento do patrão.

Ali viveu com a família, onde os filhos construíram suas casas e constituíram as próprias famílias.

Humberto ali nasceu. Amava aquelas terras localizadas a 390 km da capital baiana, no município de Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina.

Ao herdar a fazenda, Humberto, que não era homem de fraquejar, jurou para si mesmo que ia torná-las ricas e produtivas.

Num acordo com um fazendeiro rico, casou-se com sua única filha, jovem, sem graça, tímida, submissa, prestativa. Era o que Humberto queria. Mulher tinha que ser mesmo submissa.

Imagine casar com mulher de personalidade...

A diferença de idade era de vinte anos. Clotilde acabara de fazer vinte anos. 

Acostumada a servir e obedecer ao pai ia apenas mudar de casa.

Era boa dona de casa, qualidade exigida por Humberto. O sogro garantira que a comida feita pela filha era dos Deuses.

Bastava isso. Humberto não acreditava no amor.

Inicialmente, Clotilde vivia com o coração apertado. Sentia-se só. Tinha medo de tudo, de chuva, de trovão, de ruídos indefinidos.

Sentia-se só, mas não ousava sequer reclamar das frequentes viagens do marido.

Para cuidar dos negócios dizia.

Às vezes passava semanas inteiras fora de casa. Voltava dizendo-se cansado, mal a olhava. Trazia a mala cheia de roupa suja. Não raro, ela encontrava peças íntimas femininas no meio daquela bagunça.

Anos se passaram. Clotilde engravidou três vezes. Os filhos nasceram com a ajuda de parteira. Sempre sem que o pai estivesse presente.

A ele interessavam apenas os negócios e a liberdade de ir e vir.

Resolveu investir na produção de vinho. Soube que a região era propícia. Equipou suas instalações com as máquinas mais modernos, contratou mão de obra, os treinou, tornando-se um dos principais produtores de uvas e vinhos da região.

À Clotilde cabia cuidar dos três filhos e da casa.

Quando os filhos atingiram a adolescência, cansada daquela vidinha medíocre, resolveu colocar em prática a ideia que vinha amadurecendo, voltar aos estudos. Enfrentou o marido.

A princípio, Humberto foi contra. Era homem de pouco estudo. Dizia-se formado na escola da vida.

Pra que agora ela quer ir frequentar escola isso num tá me cheirando bem.

Mas ela estava decidida.  Ele teve que concordar.

Ela vai desistir logo logo melhor eu não ir contra.

A maturidade revelou-a uma mulher determinada. Estudava até a madrugada. Terminou os estudos com ótima avaliação. Foi em frente. Preparou-se para cursar a Universidade de Gastronomia. Entrou.

Ali, se destacou. Era sempre procurada pelos colegas que viam nela uma mãe, tornando-se representante de classe. Foi até escolhida para ser a oradora da turma.

Tristeza e timidez deram lugar a alegria e satisfação.

E não parou por aí. Quis trabalhar num restaurante, a contragosto do marido, que intimamente passou a prestar mais atenção nela, admirando-a em silêncio.

Os filhos sentiam orgulho da mãe.

Clotilde tornou-se mais segura de si. Modernizou-se. Sua autoestima ficou lá em cima.

Promovida a chef de cozinha, sentiu-se prestigiada e com sua competência elevou o nome do restaurante.

Através dela, Humberto tornou-se sócio, levando para lá os vinhos que produzia, que tiveram ótima aceitação.

O mundo do vinho começou a lapidar aquele homem, antes tão rude. Teve que aprender a diferenciar tipos de uvas, a colhê-las com delicadeza, a identificar sabores e aromas, a sugerir a melhor harmonização para os pratos ali servidos. Tornou-se quase um sommellier.

Finalmente, rendia-se às qualidades da mulher, admitindo a si próprio que sentia algo mais por ela. Mas não era homem de demonstrar seus sentimentos.
Clotilde percebeu certa mudança no comportamento do marido. Ele parecia mais humano.

Mas também não quis dar o braço a torcer. Aprendera com ele a não revelar o que ia ali dentro de sua alma.



A tática - Ledice Pereira





A tática
Ledice Pereira

Georgette tinha enorme expectativa com a nova vida. Casada há três meses, procurava viver o sonho das histórias de fada que, até pouco tempo, a embalavam. Estava com dezoito anos e pensava que com o casamento estaria livre das implicâncias do pai.

Apaixonou-se por Felipe no primeiro encontro. Ele era lindo, forte, atlético, divertido.

Nos primeiros meses de casado, ele ainda continuou a ser aquele príncipe, mas passado o tempo começou a voltar tarde, sair com amigos, ir ver jogar o amado time de futebol, enfim, já não era mais o mesmo.

Acho que terei que botar minha imaginação para trabalhar. Tenho que trazer o Felipe mais pra perto de mim.

Quebrou a cabeça procurando ter uma ideia brilhante.

Começou por fingir falar ao telefone, sempre que ele chegava em casa. Mostrava-se efusiva como se estivesse num papo interessantíssimo. Desligava como se nem mesmo tivesse notado a presença do marido.

Como ele não demonstrasse curiosidade com a identidade do interlocutor pensou em outro artifício.

Nas semanas que se seguiram passou a sair perto do horário da chegada de Felipe, voltando sempre após se certificar que ele já se encontrava em casa.
Oi amor, já chegou? Desculpe o atraso.

Você estava onde?

Ah, eu não te falei? Fui encontrar uma turma de amigos. Jantei com eles. Você não está com fome, não é mesmo?

Como a cena se repetiu algumas vezes, Felipe começou a ficar com a pulga atrás da orelha.

Com quem será que ela sai tantas vezes e volta tão alegrinha olha como está toda pintada toda arrumada acho que ela está é me traindo.

Ele não queria demonstrar sua insegurança. No entanto, resolveu permanecer mais tempo em casa, deixando de sair com os amigos, para poder controlá-la de perto.

Georgette conseguiu botar um cabresto no maridão sem que para isso tivesse que brigar, fazer cena de ciúme, chorar ou mostrar-se insatisfeita.

Simplesmente usou da inteligência!

O vesgo - Fernando Braga




O vesgo
Fernando Braga

Seu nome era Primígio. Aos 9 anos, aproximou-se da mãe e perguntou o porquê deste nome tão diferente. Ela disse que seu nome seria Aprígio, mas na hora do registro no cartório o pai enganou-se, colocando-lhe um nome parecido.

Desde muito pequeno, os pais e parentes, passaram a chamá-lo de Pri.

Na escola, coleguinhas de grupo escolar, na realidade sempre maldosos, gozadores, procurando defeitos nos coleguinhas, lhe deram o apelido de Migio.

Mas, era Mijo pra cá, Mijo pra lá, o que ele detestava. Chegou a pedir e depois proibir que assim o chamassem, mas quanto mais reagia, mais o apelido grudava.

Talvez seja esta uma das razões para ele, desde pequeno ser bravo, brigão, desaforado, respondão e até segundo alguns, um pouquinho louco. Desenvolveu facilidade para brigas, que topava sempre, não tendo medo, nem de colegas maiores.

Dificilmente perdia briga e quando a iniciava, não sabia parar. Eram chutes, socos, quedas, para todos os lados. Facilmente tirava sangue do nariz de seus adversários. Naquele tempo ninguém usava pau, pedra, canivete ou estilingue para enfrentar o adversário. Pegar pau ou pedra era covardia. Tinha que ser no braço e na perna!

Adquiriu a fama de valente, corajoso, machinho, mas o apelido se mantinha. Depois que sua mãe lhe explicou o erro do pai, a quem tanto amava, passou a “não dar bola”.

Ainda moleque, fez amizade com uma turminha da vila, cujo chefinho deles era um tal de Alaor, moleque ousado, metido, brigão, que tinha um olho torto, o que lhe dava cara de mau. Um dia teve que enfrentar o Alaor e pela primeira vez levou a pior, jorrando sangue de seu nariz. Não esmoreceu, até o dia em que a briga empatou, ambos saíram machucados, mas... amigos.

Com a turminha da vila, gostava de pular muro, entrar no quintal de vizinhos para roubar garrafas, galinhas e as frutas da época. Medo só de cachorro. Fins de semana saiam a vagar pelas estradas vicinais, campos e penetrar nas matas próximas, armados com estilingue e caçarem passarinhos.  Era uma turminha da pesada!

Em um dia trágico, resolveram pegar a rabeira de um caminhão carregado, que vinha desviando dos buracos da estradinha de terra. Quando o caminhão diminuiu a marcha, correram atrás e se dependuraram na carroceria. Após uns 100 metros, o caminhão acelerou e ao passar por uma depressão forte da estrada deu um grande baque, o que fez soltar as mãos de Alaor, que após uma pirueta, caiu em cheio de cabeça, em uma pedra da estrada. Todos se soltaram e foram socorrê-lo. Conseguiram parar um carro que vinha passando, levando-o para um pronto socorro. O colega morreu 10 dias após, por ter quebrado a coluna do pescoço e lesado a medula. Aquilo foi demais!

Primígio nunca havia visto alguém morrer! Ainda mais um amigo!  Nunca mais se esqueceu de Alaor e seu olho torto.

Parou de estudar após o término do ginásio, indo trabalhar com o pai na mercearia da família. O tempo passou, casou-se e teve dois filhos. Manteve o gênio difícil, era bravo, pouco comunicativo, introspectivo.

Talvez relacionado à morte de Alaor, quando via uma pessoa vesga, sentia dentro do peito uma compaixão inexplicável, ficando com dó, triste e até deprimido.

Certa ocasião ao parar em um sinal de trânsito, viu se aproximando um pedinte, que não tinha as pernas e que se deslocava sobre um pequeno carrinho usando as mãos para deslocar-se protegidas, por um pano enrolado. Ao se aproximar do carro de Migio, abriu um sorriso largo, mostrando dentes perfeitos, estendendo uma de suas mãos, pedindo ajuda. Quando Migio olhou na cara do aleijado, viu que tinha também os olhos tortos, era estrábico.

Aquilo foi demais! Ver o aleijado não o impressionou tanto, quanto sua vesguice. Antes que o sinal abrisse, tirou uma nota de 50, entregando-a ao infeliz!  Quando viu a nota, o pedinte ficou olhando-a e não acreditava, uma vez que todos lhe davam moedinhas pequenas e raramente uma nota de 2 reais.
— Deus te ajude! Deus te ajude! gritava

 Este fato se repetiu algumas vezes e já havia pensado em comprar uma cadeira de rodas para o infeliz, mas não mais o encontrava. Tanto atropelamento nesta avenida, será?

Em outra ocasião, em sua casa, ocorreu um vazamento da caixa d´água localizada no forro, “chovendo” dentro da antessala do quarto. Foi demais!

Fechou o registro geral da água e pela manhã, tendo que ir trabalhar, pediu à esposa que procurasse o telefone de algum encanador próximo.

 Ao voltar para o almoço, viu um carro parado em frente da casa. Entrou e sua mulher disse ter acabado de pagar ao encanador, que acabara de sair pelo portão ao lado. Perguntou à mulher se tudo estava bem, quanto tempo gastara ele para efetuar o serviço e ainda, quanto havia pago. Quando soube que ela pagara R$ 1.300.00, achou exorbitante, muito caro por um serviço de hora e meia. Criticou a esposa de ter bancado boba e ter pago tal quantia sem pestanejar. Saiu rapidamente pela porta da frente e muito bravo, pisando em brasas, deu a volta pela frente do carro do encanador ainda presente. Gritou:

— Espera um pouco aí! Quero falar com você!

 Quando se aproximou da janela, o encanador olhou em sua direção e perguntou:

— O que foi,  patrão?

Quando Migio o encarou, o homem era vesgo, bem vesgo.

 Perdeu suas forças, tornou-se repentinamente calmo e disse com voz melodiosa:

— Não! Não! não queria que o senhor fosse embora, sem me despedir! Quero agradecer sua atenção, presteza e serviço bem executado.

— De- me seu cartão, para chamá-lo outras vezes. Muito obrigado, meu amigo!
Entrando, sua mulher perguntou:

— Conseguiu um desconto, seu bravinho?

— Não! Lhe dei mais 100, né?

— Tinha certeza de que você faria isto, o cara era vesgo! Eu te conheço!

Anos após, Primígio em uma queda, bateu fortemente a parte lateral da cabeça e a órbita. As pálpebras do olho esquerdo incharam, ficaram roxas, tapando toda a visão deste lado.  Quando a pálpebra desinchou, sua mulher lhe disse que o seu olho esquerdo estava torto para dentro. Bem que ele havia percebido que sua visão não estava normal, vendo tudo embaçado e duplo.

Imediatamente foi se olhar no espelho, mas, como via tudo duplo, não deu para ver o olho torto. Ficou desesperado! Ficar vesgo? Tudo menos isto! Não suportaria!

Foi a um oftalmologista que disse ter ele tido uma paralisia do nervo que mexe o olho para fora, podia ser passageiro. Se não voltasse ao lugar, podia fazer uma operação para corrigir. Muito aflito, agarrou o médico pelo avental, perguntando se não podia fazer a cirurgia no dia seguinte. O médico indicou um tratamento ortóptico.

Ficou muito depressivo, angustiado, com o saudoso amigo Alaor não saindo da sua cabeça. Após dois meses seu olho voltava à posição normal. Ainda bem!

Ajoelhada a mulher rezava, preocupada em ir logo à Aparecida, cumprir promessa! Graças à Deus! 




AS BOLACHAS E O POLITICAMENTE CORRETO - Oswaldo Lopes





AS BOLACHAS E O POLITICAMENTE CORRETO
Oswaldo Lopes



         Faz algum tempo que esta curiosa e confusa história começou. Para que não restem dúvidas a respeito da confusão, ela diz respeito a uma poderosa indústria de material aviatório, de nome FERRANTI, inglesa com fortes laços em Edimburgo, na Escócia. Não ajuda muito dizer que o fundador da indústria chamava-se Sebastian Ferranti, nascido e criado no Reino Unido que como sabemos e ainda hoje vemos não é tão unido assim. Creio não ser necessário, em São Paulo, explicar que Ferranti é um sobrenome italiano.

         O pessoal da Ferranti tinha desenvolvido um espetacular caça a jato que conseguiria decolar em pistas muito curtas e ganhar rapidamente velocidades vertiginosas. Havia, porém um pequeno problema. No momento exato em que ia descolar do solo e iniciar o voo, as asas eram arrancadas com forte tranco. Por pura sorte, os testes eram feitos em uma pista longa e os pilotos de teste começavam a arrancada bem junto da cabeceira, desse modo sobrava espaço para a frenagem e até agora ninguém se machucara. O difícil era encontrar pilotos que ainda quisessem fazer os necessários testes.

         Por incrível coincidência encontrava-se em visita a Ferranti um experiente e famoso piloto português, Felipe de Sacadura Coutinho.

         Pelo sobrenome creio que os leitores já o identificaram como um legitimo descendente dos intrépidos pilotos portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho que passaram a história por terem sido os pioneiros na travessia aérea do Atlântico Sul.  Não se tem dúvida de que foram intrépidos e para ter certeza de que eram portugueses, basta observar-lhes os nomes e ascendentes próximos.

- Carlos Viegas Gago Coutinho
 Filho de José Viegas Gago Coutinho e Fortunata Maria Coutinho
         Apesar de também ser piloto, foi o navegador da viagem. Devemos-lhe a invenção de um astrolábio aéreo que foi utilíssimo na navegação aérea, foi patenteado e muito utilizado nos primórdios da aviação.

-Artur de Sacadura Freire Cabral

 Filho de Artur Freire de Sacadura Cabral que, por vezes, tem seu nome grafado como de Corte Real e Albuquerque. Casado com Maria Augusta Da Silva Esteves de Vasconcelos (de solteira) que passou depois a assinar Maria Augusta de Sacadura Cabral.

         Foi o piloto na famosa viagem, tenente da Armada era conhecido pelas suas qualidades de aviador, desapareceu num voo Amsterdã – Lisboa e seu corpo nunca foi encontrado, como aliás aconteceu com muito destes pioneiros da aviação.

         A outra maneira de saber que eram portugueses é lembrar as brincadeiras e piadas que se fizeram a respeito dos dois, embora tenham sido muito festejados ao término de sua jornada.

         Uma delas era uma charada;

— Fala com dificuldade, filho do Couto, não é esse é o outro (4.2)
         Fala com dificuldade – Gago, filho do Couto – Coutinho, não é esse é o outro: Sacadura (4) Cabral(2).

         Pois é, lá estava o Felipe de Sacadura Coutinho a contemplar o quarto protótipo de famoso avião quando pediu uma furadeira de razoável porte e com ela passou a fazer numerosos furos na junta das asas com o corpo o avião. Tendo feito isso dos dois lados, declarou o avião pronto para os testes.

         Desnecessário dizer que não encontraram perto, nem longe, nenhum dos pilotos de teste da Ferranti. Alguns se trancaram no banheiro fazendo sabe-se lá o que, e outros mandaram cartas de demissão por via aérea que foi a mesma via que usaram para cair fora, temendo sequer estar perto daquela barbaridade.

         Isso não desencorajou Felipe que sem paraquedas e como macacão que vestia, intrépido como seus ascendentes, instalou-se no cockpit e deu a partida. O avião saiu célere e alçou voo, Felipe orgulhosamente fez piruetas e rasantes, como que querendo provar que sua ideia funcionara perfeitamente no aparelho da Ferranti que não mais corria riscos de destroçar-se por arranco das asas.

         Terminado os testes pousou orgulhoso o aparelho e foi efusivamente cumprimentado. Mas, como lhe ocorreu tão brilhante ideia? Era a pergunta mais frequente.

— Simples, dizia ele, é o principio da bolacha, nunca quebra no picotado[1].
        


[1]  Na verdade, como naquele tempo ainda não tinham inventado o politicamente correto, Felipe afirmou que era o principio do papel higiênico que nunca rasga no picotado. Hoje certas expressões soam melhor quando acertadas para ouvidos sensíveis e delicados.

Amigo da Onça - José Vicente J. Camargo



Amigo da Onça    
José Vicente J. Camargo


Chego no escritório e vejo na minha mesa, na caixa de entrada correspondências, um envelope marrom utilizado para a comunicação entre a empresa e a casa matriz na Alemanha – espero que não seja nenhuma reclamação por estar com os negócios abaixo da meta – estranhando que não indica o remetente. Abro-o e levo um susto com uma série de fotografias de mulher pelada. Espantado, meu primeiro impulso é esconder o material explosivo que tenho nas mãos. Olho em volta para ver se há alguém observando. Minha secretária não está na mesa – deve ter ido buscar meu cafezinho e água – jogo rapidamente as fotos na primeira gaveta e leio o bilhete em alemão que veio junto: “Favor entregar para Sara na boate” Grato Wolf”. Um segundo bilhete em português, grampeado em uma das fotos, dizia: “Com amor Lobo”.

A ficha cai! É do alemão que veio da casa matriz por uns dias para divulgar com clientes nossos produtos. Ele ficou sob meus cuidados. Na primeira noite, após o jantar, me pede para levá-lo à uma boate. Me explica que mora numa cidadezinha numa zona rural onde todos se conhecem, ficando difícil dar qualquer passo em falso. Como na Alemanha todos os horários são respeitados, mulher e filhos sabem de antemão a hora da chegada. Qualquer desvio é motivo para alarme e início de uma busca em todos os telefones conhecidos. Então usa suas viagens ao exterior para adicionar um pouco de tempero na sua vida sexual. Na boate se engraçou com uma frequentadora e pediu, dado a confusão de idiomas, minha intermediação sobre o preço da noitada que achou muito alto – pudera! Com a pinta de gringo, ela abusou nas verdinhas... Me entendi com ela na base da “oferta e procura” e obtive um bom abatimento.

Alemão amigo da onça! Depois de toda a atenção que lhe dei, me coloca nessa situação de risco com essas fotos pelo correio interno, sabendo que as correspondências podem ser inspecionadas (por isso não indicou remetente!). Eu bem que reparei que ele estava meio sonolento no dia seguinte, mas pensei que era devido ao fuso horário. E depois assinar como “Lobo”, que é a tradução em português do seu nome “Wolf”, aprender a escrever em português “com amor”, arrumar os melhores ângulos e diferentes poses para as fotos – ele mesmo, espertinho, não saiu em nenhuma para não se incriminar – tudo leva a crer que a noitada foi longa e não deve ter ficado em uma só, depois que aprendeu o caminho da toca...

E agora? Guardar essas fotos aqui, nem pensar, minha secretária revisa a mesa todo dia a procura das correspondências para despachar. Levar pra casa pior ainda. Entregar à Sara na boate, como ele me pede, seria o melhor, mas muito arriscado, pois ele me confidenciou que o gigolô dela também trabalha lá. Se me ver, vai pedir satisfações sobre o desconto que pedi e recebi daquela noitada, assunto que com certeza não lhe agradou. E depois, com esse tipo de gente não adianta falar sobre altos e baixos do mercado, vai ser encrenca na certa! Picar e jogar numa cesta de lixo por aqui, também me parece perigoso, pois, além de alguém me poder ver, tem muito curioso que quebra a cabeça juntando os pedacinhos para saber se é algo importante para alguma fofoca. O melhor é, no caminho de casa, jogar numa dessas caçambas estacionadas na rua. Mas tenho de tomar cuidado para que ninguém me veja, que não haja câmeras de rua e usar luvas para não deixar impressões digitais. Caso contrário, se for flagrado, serei preso por distribuir pornografia e, se um menor encontrar, acrescido de pedofilia.

Revoltado pelo tratamento recebido – ainda por cima, dado ao cansaço dele, a apresentação aos clientes ficou aquém da expectativa – penso em dar o troco! Após expediente, passo pela boate e, sem entrar, chamo o porteiro “leão de chácara” daqueles que só de olhar perde-se a vontade de entrar. O chamo de lado, lhe dou as fotos e, em troca dessas e de mais uns bons trocados, lhe peço uma dele mirando as fotos, desnudo e “naquele estado”. Diante do seu olhar enviesado, prometo que não tem internet no meio, aumento o cache e digo que amanhã venho buscar.

De posse da foto, cem por cento original, que geraria arrepios frenéticos dos adeptos, coloco no envelope das correspondências internas com um bilhete:

“Wolf, sua Sara foi despedida da boate pelo gigolô. Deixei as fotos com o porteiro que me pediu sem falta para avisá-lo, quando da sua próxima visita a São Paulo. Gostaria de convidá-lo para uma feijoada regada a caipirinha e quem sabe, depois, tirar algumas fotos. Ele se chama “Leão”...

Acontece nas melhores famílias - Fernando Braga



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Acontece nas melhores famílias
Fernando Braga


Eu, médico, casado com Helena, somos 5, considerando meus três filhos adolescentes de 15, 13 e 12 anos. Ela é psicóloga, natural de uma cidade do interior do Estado. Perdeu o pai há alguns anos e a mãe continuou vivendo com a irmã, na mesma casa. O pai lhes deixou bens suficientes. O seu único irmão, José Ricardo, formado em medicina, com residência médica em pediatria, fora completar seus estudos na Universidade de São Francisco.

Durante seu estágio, Ricardo frequentemente se comunicava conosco, falando de seu entusiasmo e progresso dentro da especialidade. Morava em alojamento, com um grupo de colegas. Soube eu, de detalhes ocorridos neste período, que fortemente contribuíram para uma virada drástica em sua vida.

A principal delas foi que um dia seu preceptor, mais velho, convidou-o para um jantar em sua casa. Recebido amavelmente pelo mestre, foi conduzido à sala de visita, esperando que outros convidados chegassem em breve.

Após duas ou três doses de Whisky, recebeu um convite que nunca esperava, cheirar um pouco de cocaína. Estranhou muito, mas na hora, muito animado com a bebida, não recusou, experimentando a droga pela primeira vez.

Maliciosamente, o jantar havia sido preparado apenas para os dois. Após a sobremesa, o chefe o convidou para conhecer o apartamento, conduzindo-o no final, à seu aposento. La chegando, vendo um ambiente favorável, o chefe se declarou homossexual. Novamente cheiraram o pó branco.  Com a cabeça zonza pela bebida e pela droga, quando percebeu, estava sujeitando-se aos desejos do chefe. Acabou dormindo no apartamento.

Nos dias posteriores procurou evitá-lo e mesmo a seus colegas, preocupado que outros soubessem do que ocorrera.

Tudo passando desapercebido, o mesmo episódio repetiu-se outras vezes.

Percebeu que naquela grande cidade, era imenso o número de homossexuais e lésbicas e, ficou conhecendo a famosa Rua Castro, onde os gays se encontravam em bares, boates, onde também rolavam bebidas alcoólicas e drogas.

Frágil, acabou tudo aceitando, tornando-se um viciado.

Quando terminou o estágio, voltou para São Paulo, para aqui trabalhar e viver.
Quando chegou, ficou 20 dias morando conosco, até que alugasse um pequeno apto e arrumasse um emprego, o que foi fácil, com o curriculum que tinha. Neste período, nada notávamos errado em sua conversa, conduta, maneira de ser, mas costumava sair às noites e voltar tarde. O mesmo, quando ocasionalmente vinha nos visitar, almoçar alguns domingos. Gostava do apartamento que alugara, de seu trabalho em dois ou três hospitais e parecia feliz.

No entanto, tempos após, recebemos comunicação de que Ricardo estava preso em uma delegacia de bairro. Para lá me dirigi e qual não foi minha surpresa quando soube, que havia sido preso como um traficante de droga!

Nesta ocasião, confessou-me ele, que havia se viciado nos EEUU e que havia comprado uma quantia maior de coca para uso próprio e para dois outros amigos.

Arranjamos um advogado para defendê-lo, que com um habeas corpus retirou-o da prisão, mas tendo que responder a processo futuro.

Após seis meses, foi julgado por um juiz muito severo, que tinha perdido um filho por overdose e odiava absurdamente traficantes. Apesar de ser réu primário, médico, acabou por condená-lo a quatro anos e meio de prisão em regime semiaberto, tendo que pernoitar todos as noites na prisão. O advogado apelou.

Uma vez preso, sua vida desandou. Percebemos que ele havia se tornado outra pessoa, não só física, como mentalmente. Mais magro, havia adquirido trejeitos, como os homossexuais. 

Após cumprir 1/6 da pena ficou livre. Voltou a trabalhar como pediatra e a morar sozinho novamente. Reconhecendo a maldade da justiça, procuramos nos aproximar dele, mas tornou-se esquivo, introvertido, aparecendo apenas em datas especiais como no Natal. Pouco ia ao interior visitar a mãe e irmã. Ia mais em busca de dinheiro.

Certa ocasião, veio nos visitar, trazendo dois “amigos”, que eram descaradamente verdadeiras bichas, com trejeitos, maneira feminina de se expressar, com gritinhos e risadinhas descabidas, o que nos deixou perplexos. E o pior, com meus três filhos presentes.

Quando Ricardo dirigiu-se ao WC, o acompanhei, fechei a porta e incisivamente disse a ele que sumisse logo, com os seus amiguinhos e que nunca mais voltasse em minha casa, com aquelas “duas”. Uma vergonha total, disse a ele e principalmente, na frente de meus filhos adolescentes.

Logo se despediram, ele saiu às pressas, quase sem falar e por meses, ficou sem dar notícias.  Pesa em nossa consciência, o fato de que, desde então, procuramos evitá-lo, sem nos preocuparmos em lhe oferecer ajuda.

Tragicamente, certa manhã fomos comunicados pelo zelador de seu prédio, que a diarista, o havia encontrado morto. Levado ao IML foi confirmado que havia se suicidado, ingerindo veneno de rato. No enterro, todos os familiares presentes mostravam-se consternados.

Voltei a seu apartamento pegar suas coisas. Encontrei poucas roupas de uso pessoal, livros, CDs, televisão pequena e na gaveta de uma pequena escrivaninha, um livro grosso, um diário.

Sem fazer qualquer referência ao mesmo, escondi-o e passei a lê-lo, longe de minha mulher ou filhos.

Confesso que no término da leitura, eu estava atônito, embasbacado, sem reação!

Tomei então conhecimento de mais fatos particulares da sua vida.

Contou ele com detalhes o jantar em que foi convidado por seu mestre, o primeiro contato com a droga, a bebida em excesso, sua primeira relação homossexual.

Com detalhes, confidenciou suas reações corporais e psicológicas com as drogas, a criação de uma rápida dependência e necessidade de adquiri-la a todo custo.  Experimentou não somente a cocaína, mas chegou a ter contato com a heroína, droga que lhe proporcionou a maior satisfação corporal e mental de sua vida. Usara ainda a metanfetamina e o crack. 

Ao chegar ao Brasil, já era um viciado, dependente por completo, sem qualquer vontade para iniciar sua especialidade. Assim mesmo, trabalhou em vários hospitais até que o mandassem embora por faltas no serviço. Tinha que recorrer do dinheiro que o pai deixara. Se não fosse isto, confessa que certamente roubaria, tal a necessidade de amainar o vício.

Em sequência, confessa ter se tornado homossexual, desde que dele abusaram na prisão.  Passou a ter necessidade de ter contatos sexuais e muitas vezes chegou a ter mais de um parceiro por dia. Decorrente disto, começou a frequentar barezinhos, boates, nosocômios apropriados para homossexuais, onde fez uma série de amigos, companheiros.

Sua vida, tornou-se vazia, solitária, sentindo o desprezo por parte de seus familiares e antigos colegas de faculdade. Ou se encontrava com estes colegas de vício ou era a desolação completa. A vida, a família e o trabalho perderam a graça. Era a fuga total!

Terminando, enfatiza que começou a apresentar alterações na pele e ao fazer um teste para HIV, era soropositivo. Desgraça total!!!

Sentiu sua vida encerrada! Resolveu dar um término a ela, fato em que muitas vezes já havia pensado.

Termina o diário pedindo perdão a todos amigos e familiares. Só gostaria que sua mãezinha nada soubesse destes fatos pregressos, pois iria magoá-la profundamente, poderia sucumbir. Pouco antes de ingerir o veneno escreve:
— É muito fácil alguém viver confortavelmente no alto de uma montanha, mas para outros, para mim, o difícil foi escalá-la, com suas escarpas traiçoeiras.

 Adeus, Zé Ricardo! Queimei seu diário!