Vai levar um bom tempo! - Fernando Braga


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Vai levar um bom tempo!
Fernando Braga

Zé Osvaldo formando-se em medicina, optou para fazer uma especialidade das mais difíceis naquela ocasião, ou seja a neurocirurgia. Para tal procurou, na sua própria escola médica, um grupo muito bom, chefiado por um  professor experiente, de renome nacional e internacional nesta especialidade.

Certa ocasião, seu chefe convocou-o para ajudar em uma cirurgia em outro grande hospital da cidade, onde um paciente particular estava internado há já dois dias. Este paciente, um jovem, havia sofrido um acidente, no qual uma vértebra da região torácica havia sido lesada, deslocada posteriormente e comprimido fortemente a medula nesta região. O rapaz encontrava-se paraplégico, com uma síndrome de secção total da medula, sem movimentos da cintura para baixo, sem sensibilidade e outros sintomas próprios da chamada lesão completa ou total. A recuperação era extremamente difícil, mas devia ser feita através de uma cirurgia descompressiva, para que o paciente tivesse uma chance mínima de recuperação. Viu o pai do rapaz conversando com seu chefe e dizendo que tudo, mas tudo mesmo,  procurasse fazer para dar chance a uma recuperação de seu filho e que dinheiro não era seria problema.

Esta cirurgia, como era esperado, foi muito rápida e supunha-se que o professor fosse iniciar o fechamento, mas, resolveu fazer um novo procedimento. Dissecou um nervo intercostal  e por baixo da pele levou sua porção distal até a abertura da cirurgia e implantou, dentro da porção distal da medula gravemente lesionada. Zé Osvaldo, já experiente, nunca havia visto ou ouvira sobre este tipo de cirurgia, nem mesmo em publicações internacionais. Certamente era uma invenção do chefe.

Mais tarde acompanhando o professor dando explicações ao pai do garoto sobre a cirurgia efetuada, falou pausadamente, sobre o mau estado da medula esmagada e enfatizou sobre a nova técnica, ”única” que efetuou, com o argumento de que isto aumentaria em muito as chances de recuperação, mas  levaria um bom tempo!

Na ocasião Zé Osvaldo se lembrou de uma antiga fábula em que um rei ouviu falar, que em seu reino, havia um súdito que conseguia fazer um burro falar! Pediu que seus guardas trouxessem a pessoa em sua presença e confirmasse se, realmente,  seria capaz de fazer tal proeza. O homem confirmou que era capaz de fazer qualquer burro falar. O rei muito surpreso entregou-lhe um saquinho com moedas de ouro, trouxe um asno em sua presença e pediu que fizesse o milagre. O homem, quase um ancião, concentrou-se, fez uma série de passes, disse palavras ininteligíveis e finalizou dizendo:

— Pronto!

O rei então disse:

— Vamos ouvi-lo falar agora? Quero ver!

— Perdão sua majestade, ele vai falar, com certeza absoluta, mas para isto, teremos que esperar aproximadamente 10 anos!

— Tudo isto?

— Tudo isto!  Confirmou o mágico.

— Muito bem, nós vamos esperar, mas se dentro deste tempo ele não falar, vou te pendurar em uma cruz, até morrer!

Já fora do palácio, um amigo deste charlatão, que tudo ouvira, questionou:

— Meu querido, você tem certeza que em dez anos o asno vai falar? Viu a ameaça que o rei fez?


— Certeza não tenho, mas estou tranquilo, porque em dez anos, o burro, eu, ou o rei, um de nós, não estará mais neste mundo de Deus!

COMO VIVER AO LADO DA FELICIDADE - Sérgio Dalla Vecchia

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COMO VIVER AO LADO DA FELICIDADE
Sérgio Dalla Vecchia

Era uma vez uma tribo de índios localizada no coração da selva amazônica.
O local era totalmente isolado da civilização. A cidade mais próxima ficava a dois mil quilômetros de distância.

A mata era fechada. Havia um grande rio junto a aldeia. Lá os índios pescavam, banhavam-se e era o único caminho existente para se tentar chegar a algum lugar.

A cultura desse povo era rudimentar, andavam totalmente nus. Não tinham inimigos e por conta disso possuíam poucas armas de defesa. Os arcos e flechas, e as lanças eram só utilizados pelos guerreiros nas caçadas de animais.
Havia rituais para iniciação de jovens guerreiros, casamentos, funerais e outros acontecimentos.  

Usavam a pintura como forma de expressão, tanto em seus corpos como na pedra, buscando descrever alguma cena do cotidiano.

Eram felizes e gozavam de ótima saúde.

Tudo ia bem até que o destemido guerreiro Peri, cansado da monotonia da aldeia, resolveu aventurar-se rio abaixo em busca do desconhecido.

Rodou o caudaloso rio o dia inteiro. Cansado acampou em uma das margens e adormeceu.

Qual foi sua surpresa quando despertou. Havia em sua volta vários homens barbudos vestidos com estranhas roupas.

Peri ainda assustado, tentou esboçar alguma reação, mas de pronto foi contido por um índio que acompanhava os homens desconhecidos.

Depois de muita mímica, foram se entendendo e Peri foi presenteado com um espelho, que refletiu pela primeira vez a sua imagem. O espanto e o encantamento causados nele, foram suficientes para que se tornasse amigo dos desconhecidos.

Ganhou também um facão e depois um embornal de couro. E assim Peri se envolveu com os homens e acabou levando-os para conhecerem a sua aldeia.

Lá chegando foram recebidos com muito espanto, desconfiança e muita curiosidade. Ganharam espelhos, facões e outras tantas bugigangas. Tudo era novidade para os índios e acabaram se entrosando e assim permanecendo na aldeia. Durante o convívio os homens brancos foram aos poucos oferecendo cachaça, cigarros e até rapé.

A convivência foi aumentando, já ocorrendo estupros nas jovens índias, bebedeiras e doenças venéreas e a maldita gripe. Os pobres índios não eram imunes à influenza e foram adoecendo até a morte.

O cacique Raoni com a sua experiência percebeu logo o que estava acontecendo e ficou furioso. Indignado, reuniu os guerreiros em sua oca e evocando os espíritos da floresta, chegou ao seguinte veredicto.

— Meus guerreiros, esses homens só nos trouxeram a desgraça, oferecendo e mostrando coisas que nunca havíamos visto ou experimentado. Fomos vencidos pela vaidade e ganância.

— Ainda há tempo de nos regenerarmos cumprindo o que os espíritos me ordenaram.

— Durante essa noite, matem todos e joguem seus corpos ás piranhas, de modo que não sobre nenhum vestígio desses malditos.

—Quando amanhecer tragam à minha presença o Peri, causador dessa desgraça toda.

Assim foi feito e Peri, depois de ser execrado em público teve seu crânio partido com a borduna do cacique.

Assim a aldeia voltou a ter paz e todos viveram com a pureza dos seus costumes e a energia positiva da natureza.


Dessa história poderemos concluir que o filósofo Platão há muitos anos já havia vislumbrado algo parecido, com o título de O MITO DA CAVERNA, onde deduzimos que aceitar o desconhecido é muito difícil para quem é feliz, pois ficando com o que tem a paz é certa. Então para que arriscar!

A FORÇA DA ÁGUA - Sergio Dalla Vecchia

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A FORÇA DA ÁGUA
Sergio Dalla Vecchia


A terra nos seus primórdios era uma esfera de fogo, que liberava gases e vapor d’água para o espaço e que, com o tempo formaram a atmosfera.

Esse vapor ao encontrar temperaturas baixas, condensava e retornava à terra em forma de chuvas torrenciais.

Nesse processo a temperatura da terra foi baixando até que o vapor d’água não precisava mais alcançar grandes altitudes e condensava-se junto a crosta rochosa.

No início, a água acumulava-se nas depressões e escorria do alto das montanhas em forma de fios d’água, obedecendo a direção que a gravidade impunha.

Com o passar das eras, o caminhamento das águas foi desbastando a superfície dura e transportando grãos de pedra para locais de baixo relevo, dando origem as planícies sedimentares com meandros e lagoas.

Também o fio d’água, que descia das montanhas ia se avolumando e aumentando sua calha, até a formação de grandes rios, que logo formaram os mares e oceanos.

A alegoria que diz “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, é perfeitamente comprovada pela ação da água no seu percurso sobre a crosta pétrea, que aos poucos foi se entregando face sua persistência.

Com isso a sabia natureza nos ensinou que, com tempo e perseverança as conquistas serão certas.


Vales floridos e lagos piscosos surgirão, nos proporcionando sucesso com o prazer de viver.

Coisa de criança. - Maria Verônica Azevedo





Coisa de criança.

Maria Verônica Azevedo


A casa das palmeiras, como era conhecida, foi construída numa região nobre da cidade de Santos em 1889. Ficava numa esquina da Avenida Conselheiro Nébias, no bairro do Paquetá. As plantas arquitetônicas assim como os vitrais coloridos de suas janelas vieram de Paris. Logo que a casa ficou pronta, Georgina e sua mãe Isabel, se mudaram para o palacete construído por seu pai Pedro de Souza Aranha, ela tinha então apenas quatro anos de idade e lá morou até 1929.

            Um ano depois nasceu sua irmã Adélia.

            Georgina e Adélia cresceram ali em meio a muito conforto convivendo com pessoas proeminentes da cultura literária como seu tio o poeta Vicente de Carvalho, que ali morou por alguns anos, acompanhado de sua mãe Augusta, avó de Georgina e Adélia.

            Georgina tinha uma personalidade forte, um porte altivo e um belo rosto. Falava pouco, mas não se furtava a uma conversa sobre literatura ou política.
            Casou-se em 1905 com um rapaz escolhido por seu pai, como era comum na época. Ela gostava de outro em segredo, mas em nenhum momento isso foi considerado. O casamento foi um acontecimento na cidade de Santos devido à grande pompa. Era o que se podia esperar de uma filha de Pedro de Souza Aranha.

            Adélia não tinha beleza, mas era uma criatura doce, dedicada ao piano. Embora fosse muito tímida, era alegre e espirituosa. Adorava crianças e era correspondida. Nunca se casou. Era muito querida pelos sobrinhos e depois pelos filhos desses, que estavam sempre aos seus pés junto à cadeira de balanço para ouvirem as histórias que contava com extrema habilidade. Ela não precisava de livros. As lendas e contos de fadas saiam de seus lábios com muita facilidade.

            Na casa das palmeiras nasceram os sete filhos de Georgina e Leôncio.
            O segundo filho era muito peralta. Estava sempre recebendo reprimendas de seu pai. Um dia, depois de muito pedir, ganhou de presente uma bola de futebol com a instrução de só jogar com ela no gramado do quintal atrás da casa. O espaço era bem grande cabendo um campinho de futebol com redes de gol e tudo mais. Sozinho no meio de cinco irmãs e só um irmão ainda bebê, ele resolveu convidar os garotos da rua para jogar com ele. Assim encheu o quintal de meninos de todos os tipos. Ao perceber a algazarra, Georgina acabou com a festa. Era inconcebível aquela meninada desconhecida dentro de sua casa.

            Num dia de muita chuva, irrequieto, sem poder jogar bola no quintal, ele começou a chutar a bola dentro de casa, próximo ao canto onde a tia tocava seu piano. Foi repreendido por ela, mas não deu ouvido e continuou com a diversão até que a bola atingiu o rosto dela quebrando-lhe os óculos. A bola foi recolhida pela mãe e ele nunca mais a viu. Mas as peraltices continuavam. Quando era surpreendido num malfeito, corria, subia numa árvore alta e ameaçava não descer mais a não ser que o pai prometesse que não seria castigado. Georgina não sabia como lidar com esse menino incorrigível no meio de tantas meninas. Ele definitivamente não era calmo e razoável como seu irmão caçula. A solução encontrada pelo casal foi levá-lo para o internato dos Beneditinos em São Paulo. Assim foi feito.

            Maria José era a terceira. Uma menina linda, sempre risonha com seus cabelos cacheados e olhos espertos. Aos dois anos de idade foi acometida de uma febre diagnosticada como Poliomielite. Não podia mais andar.

            Em sua infância foi privada da alegria de correr pelos amplos gramados de sua casa. Ela permanecia horas ao lado das janelas de seu quarto observando seus irmãos no jardim e sonhando acordada.  Georgina não se deixava entregar à tristeza de ver sua filha daquele jeito. Buscou ajuda com vários profissionais de saúde e com muito exercício e a ajuda de aparelhos ortopédicos conseguiu colocar Maria José de pé andando. Com o tempo, ela se libertou dos aparelhos, mas conservou o uso da bota de couro que chegava até os joelhos. Tinha um andar claudicante, mas isso não a inibia. Dedicou-se a ler tudo que podia e para isso seu pai providenciou uma boa biblioteca. Era inevitável que se interasse em escrever e assim tornou-se uma poetiza respeitada.

            Sobre sua infância ela escreveu:
A mim numa idade em que
ainda não se sabe se a sorte é boa ou má,
o destino interrompeu meus passos vacilantes.
E uma criança que desconhece a felicidade de correr,
É como um pássaro que não voa.

Mas não fiquei amarga não...
O que me faltou em movimento,
Sobrou em sentimento.
O que perdi em ação,
Ganhei em imaginação.

É dela o poema que descreve a casa das palmeiras.

            A casa onde nasci       (publicada em livro em 1949)

A casa onde nasci se erguia numa esquina.
Majestosa, a se impor, primeira entre as primeiras!
Tinha em si o esplendor da força que domina,
Cercada de jardins, cercada de palmeiras...

Nela três gerações viveram e sonharam.
E o tempo, ao decorrer, não lhe alterou a graça;
Foi sempre a mesma casa em dias que brilharam
Como nas horas negras da desgraça.

Como um tronco cai na floresta bravia,
Altivo sem gemer, numa queda sombria,
Sem temer um só golpe, a resistir à morte,

Nossa casa ruiu... Sem vergar, altaneira.
Ela foi até o fim, serena e hospitaleira,
Tal como o dono seu nos embates da sorte!

            Em 1929, a família mudou-se para uma moradia menor no bairro do Embaré. A casa das palmeiras passou a abrigar o Centro de Saúde da cidade nos próximos 15 anos.

            Nesta nova casa Georgina, permaneceu até os anos 60. Ali recebia seus 19 netos e 20 bisnetos com muita discrição, mas com carinho e um sorriso alegre quando chegavam.

            Mas mantinha-se sempre serena não importava o que de mal pudesse vir. Nunca a ouviram lamentar a perda de sua bela casa. Nos últimos anos foi morar num apartamento, mas de frente para o mar que tanto amava. Quando já tinha 84 anos de idade, morreu seu segundo filho, ela permaneceu, no velório, muitas horas impassível, rezando ao lado dele. Ao se aproximar uma neta para beijá-la e perguntar como estava, ela falou com uma impressionante serenidade:

             - Eu perdi minha mãe e meu pai. Perdi minha única irmã e meu marido. Mas nada se compara à dor de perder um filho.

            Ali ficou até a hora da missa de corpo presente rezada na capela do hospital onde ele tinha sido um médico sábio e muito respeitado. Não foi ao enterro.

            No cotidiano, ela conversava com todos, sempre acomodada em sua cadeira de balanço austríaca, ainda remanescente da mobília que trouxera da casa das Palmeiras. Ninguém a ouvia falar do passado.  Preferia sempre conversar sobre as últimas notícias culturais ou sobre política.

            Às vezes saia para fazer visitas para amigos e parentes. Ia sempre de bonde elétrico. Nunca se esquecia dos aniversários. Era sempre a primeira a telefonar, logo de manhã. Gostava de se distrair com a televisão e seguia as novelas diárias, muitas vezes mais de uma ao mesmo tempo, trocando os canais nos intervalos. Tinha uma inteligência viva e memória prodigiosa.

            A chegada paulatina dos bisnetos coincidia com o branqueamento de seus cabelos sempre presos em um discreto coque junto à nuca. Não chegaram a ficar totalmente brancos. Ainda tinha alguns fios negros logo abaixo do coque.

            Uma das poucas vezes em que a viram dar uma risada, foi quando um de seus netos pequenos, na época com cinco anos de idade, olhando para ela, que estava lendo um livro de histórias, comentou:

            - Vovó! Você está ficando tão velhinha, tão velhinha, que o seu cabelo está começando a ficar preto de novo.

Dora - Maria Verônica Azevedo



Dora
Maria Verônica Azevedo
       
        O telefone tocou no meio do dia.

        Ana atendeu com o pensamento distraído devido ao ritmo estonteante do seu cotidiano lidando com cinco crianças de idades que variavam entre 14 e 7 anos. Estava afobada, pois já era hora de levar os maiores à escola.

        Do outro lado da linha ouviu a voz chorosa da sogra.

        - Ana, por favor, me ajude. Eu não consigo mais lidar com o Octávio.

        - O que houve?

        Como resposta só choro. Ana olhou para Carlos com o telefone nas mãos.
        - É sua mãe e está chorando.

        - O que posso fazer?

        - Diga a ela que você vai lá agora ajudá-la.

        Ele pegou o telefone e falou com a mãe. Quando desligou não sabia o que fazer. Não adiantaria nada ir lá.

        - Você vai lá, faz uma mala de roupas e trás os dois para cá.

        - Mas como? Onde vamos acomodá-los?

        - Pode deixar que a gente ajeita.

        Assim foi. Enquanto ele foi buscar os pais idosos, Ana, depois de levar os filhos para a escola, fez uma revolução no quarto do filho mais velho para ceder o espaço aos avós.

        A partir desse dia, os três meninos dividiriam o mesmo quarto. Aquele arranjo logo se tornou definitivo.

        Com isso, todo o serviço se ampliou na casa: mais lugares na mesa do almoço e do jantar e principalmente mais roupas para lavar e passar.

        Ana saiu em busca de ajuda. Conversando na vizinhança encontrou Dora. 

Uma senhora bastante simpática, mineira animada e muito ágil no cuidado com as roupas, logo se afeiçoou às crianças. O caçula, ao chegar da escola, entrava correndo e ia direto à lavanderia pular no colo dela.

        Um dia Dora contou que gostava muito de fazer bolos e quitandas. Ana propôs que ela fizesse um bolo de aniversário. Ficou delicioso: chocolate com recheio de coco e cobertura de brigadeiro.

        Ana se entusiasmou e abrindo uma gaveta na cozinha, tirou um caderno de receitas de sua mãe que também era mineira.

        — Este caderno está aqui guardado esperando alguém que o use. Foi de minha mãe. Você quer experimentar?

        — Dora parecia constrangida e não pegou o livro de receitas. Ficou por alguns segundos pensativa e depois disse:

        — Eu não sei ler.

        Ana, pega de surpresa, não sabia o que dizer. Apenas guardou o caderno do novo na gaveta e não falou mais nada.

        Na mesa do jantar, comentou com a família o fato de Dora não saber ler.
        O filho mais velho ponderou:

        — Mãe, A gente pode ensinar a Dora a ler. Eu vou falar com ela.

        Assim fez. Dora se recusou a receber as aulas. Dizia que não tinha mais idade para isso. Já tinha cinquenta anos e nunca tinha ido à escola e isso não lhe fazia falta.

        O rapaz argumentava:

        — Você pode descobrir muitas coisas interessantes nas revistas e nos livros. Eu posso emprestar meus livros para você.

        — Não, menino. Eu agradeço, mas não preciso disso não. O que eu conheço do mundo me basta... e tem muita coisa no mundo que eu não gosto não.

        Nem a interferência da Ana adiantou.


        Dora continuou por 23 anos cuidando de toda a roupa da casa até o final de sua vida sem leitura e sem mudanças.

APENAS ZEZINHA - Silvia Helena de Ávila


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APENAS ZEZINHA
Silvia Helena de Ávila

Vinha cozinhar todos os domingos.  Esta foi a maneira que a família encontrou de ajudar Zezinha nos últimos tempos, afinal, foram muitos anos de dedicação.  Vira os meninos crescer, se formar, casar, esteve presente em todos os eventos importantes ocorridos na residência dos Brito Ávila, onde passou trinta e dois anos de sua vida.
Antes dessa mudança,  trabalhava de segunda a sábado junto com outras empregadas domésticas, babás, copeiras, arrumadeiras, mas raramente se dava bem com elas, exceção feita ao  jardineiro Anselmo com  trinta anos mais ou menos de serviços prestados à família. Gozava da confiança absoluta da patroa. Dona Esther geralmente dava-lhe total razão quanto aos problemas surgidos com as outras funcionárias.

Certa vez a babá adormeceu na poltrona enquanto o bebê dormia no berço. Acordou assustada com Zezinha debruçada sobre ela, deu um grito abafado para não acordar a criança e se assustou mais ainda ao ver que ela segurava uma tesoura na mão.  Apesar de muitas explicações e desculpas, tudo ficou por isto mesmo, e a moça não demorou a se demitir.

Em outra ocasião, Zezinha se ofereceu para ajudar a copeira a prender os cabelos em forma de coque na hora de servir o jantar. Então pegou a tesoura e pediu para cortar um chumaço das pontas, dizendo que o achava lindo e  iria sugerir   para  a sobrinha pintar da mesma cor. A moça  virou-se  rapidamente e Zezinha deixou a tesoura cair no chão, as duas se desentenderam, falaram alto e d. Esther foi chamado ao quarto delas pois a copeira, nova de idade e no serviço , estava nervosa, chorando assustada. Ela já tinha sido avisada dos hábitos estranhos de Zezinha que, mais que depressa, inverteu os fatos para a patroa. O jantar não podia esperar, pouco sabiam desta nova funcionária, d. Esther não quis prolongar o assunto e mais uma vez, tudo se resolveu a favor de Zezinha.

Às vezes Anselmo via Zezinha fazer coisas estranhas. Trazia um líquido escuro, embebia nele o que parecia ser  algodão , fazia montinhos, uns ela queimava, outros guardava de novo, achava esquisito tudo aquilo,  mas nunca perguntou diretamente do que se tratava.  De poucas palavras, ele também não gostava dela, conviviam bem justamente porque pouco se falavam. Ficou tão indignado uma vez que resolveu falar. Contou à patroa sobre os montinhos queimados, disse ter visto Zezinha com livros de magia negra, que ela  comentava sobre  sessões de descarrego, que debochava do emprego,  etc  e como de hábito d. Esther ficou quieta, mas inquietara-se com os fatos e  embora parecesse não ter dado  grande importância, logo depois disso Zezinha passou a  trabalhar somente aos domingos.

Certa vez, depois do jantar, dona Esther reparou no açucareiro de prata escurecido, com certeza por descuido da copeira. Às vezes sentia falta de Zezinha nestas funções. Sozinha, já tarde da noite, resolveu ela mesma ir areá-lo e aproveitar para dar uma limpada geral na bandeja também. Pegou o silvo e o pote de algodão na despensa, preparou um chá de camomila  e sentou-se na mesa da copa. Destampou o pote, enfiou a mão no fundo e sentiu uma textura diferente e viu que nem era branquinho como algodão. Ao tirar a mão  tinha entre seus dedos tufos de cabelo embaraçados. Levou um susto que a fez derrubar a xícara de chá e o pote na mesa.

Correu depressa para o quarto para contar ao marido. Juntos se lembraram das inúmeras vezes em que encontraram cabelos pelo chão dos quartos das filhas, sempre pensando que fossem dos cachorros apesar de quase não entrarem na casa, das vezes em que o ralo do banheiro das funcionárias ficou entupido,  do amor de Zezinha pelos meninos enquanto eram nenês, daí a sempre pedir para guardar um cachinho de seus cabelos de lembrança. Ficaram arrepiados ao juntar todos os fatos, todas as queixas dos vários funcionários que passaram pela casa, todas as situações sinistras que só agora faziam sentido.

E pensar que foram mais de trinta anos!

Mito da caverna - Ana Maria Pinto


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Mito da caverna
Ana Maria Pinto

Se olharmos à nossa volta e pensarmos no mito da caverna, ele é muito mais extenso e denso do que nos parece à primeira vista. Tem muita gente que vive numa caverna e que nem se dá conta. Vivem no seu mundinho, sem querer olhar em volta nem participar de nada nem compartilhar nada com ninguém.

São pessoas que vivem deprimidas, de mal com a vida achando-se sempre credoras de algo. Nada fazem, mas querem ser recompensadas por tudo.

Quando tentamos chamar a atenção para isso nem entendem, nem querem entender, pois isso dá muito trabalho e , às vezes, pode não ser compensador

Ela nunca teve que lutar por nada, pois passou do respaldo do pai para o do marido; boa situação financeira e social a vida foi andando.

Entretanto os anos passaram, e eles passam rápido, as pessoas foram morrendo, o mundo mudou. E agora? Agora ela está idosa, já não tem mais status social, ninguém liga para isso,  sobretudo se for uma pessoa idosa e, a revolta é grande !!!! Já não há mais tempo para construir nada e o que resta é olhar para a televisão e ver as desgraças que vão pelo mundo.


É bem melhor correr o risco de sair da caverna ainda que o mundo cá fora nos pareça assustador.

A lenda da moça da grinalda do Cemitério do Araçá - Ises de Almeida Abrahamsohn




A lenda da moça da grinalda do Cemitério do Araçá
Ises de Almeida Abrahamsohn

Quem for passear no cemitério do Araçá vai se deparar com a escultura em mármore branco de uma graciosa jovem recostada sobre um túmulo antigo segurando uma grinalda.

Entre os rapazes da faculdade de medicina situada do lado oposto, na avenida Dr. Arnaldo, corria a lenda da moça da grinalda.

Conta-se que ao entardecer, naquela hora em que as sombras se alongam e esmaecem os contornos, a alva figura se desprende do seu nicho de pedra e enlaça o jovem que esteja à sua frente. Dá-lhe um apaixonado beijo e retorna após alguns minutos à sua condição de marmórea imobilidade. O agraciado acordaria após algum tempo em alguma  alameda próxima sem lembrança do acontecido. Porém a aparição lhe deixaria uma flor, uma rosa branca, retirada da grinalda.

Naquela época, a avenida era estreita e tranquila. Ao entardecer, no verão, era comum os alunos passearem entre as alamedas sombreadas. Aproveitavam a temperatura mais amena para caminhar após várias horas trancados na sala de aula.

Os amigos, Laerte e Turíbio, eram assíduos frequentadores do cemitério.  Nenhum acreditava em espíritos, e não se deixavam impressionar com relatos sobrenaturais. Ao passarem pela frente do túmulo da moça da grinalda, Laerte, brincando, lembrou ao amigo a lenda que cercava a estátua. Turíbio, rindo se ofereceu para colocar a lenda à prova. Estava sem namorada e um beijo apaixonado, ainda que efêmero, lhe alegraria o dia. Combinaram que fariam o teste no dia seguinte. Turíbio se postaria à frente do túmulo e Laerte se esconderia, espiando, atrás de um túmulo próximo.


Às seis horas o sino da capela da Irmandade de São Pedro soou e ouviu-se o rangido dos portões de ferro fechados para a noite. Restaria apenas o pequeno portão lateral próximo ao velório. As cores do crepúsculo rapidamente eram tragadas pela escuridão da noite. Turíbio se apoiou num plátano próximo ao jazigo e acendeu um cigarro, que logo apagou. Talvez a donzela não goste de boca de cigarro, pensou sorrindo. Laerte com uma lanterna na mão escondeu-se atrás de um tumulo alto, cuidando para que não se filtrasse nenhuma luz até Turíbio.  A donzela só apareceria em plena escuridão. Eram quase oito da noite e a escuridão era total naquela parte do cemitério. Nem lua havia e, de ruídos, só algum eco vindo dos jardins da faculdade e um ocasional pio de coruja. Os dois amigos já estavam com frio, impacientes e, embora não reconhecessem, sentiam-se oprimidos pela escuridão e pelo lugar soturno. Tinham combinado ficar até as oito e depois ir ao bar Riviera. Súbito, primeiro Turíbio, e depois Laerte sentiram um estranho e pungente perfume que os atordoou. Foram acordados na manhã seguinte pelos jardineiros que os encontraram dormindo e caídos, um em frente ao túmulo da moça da grinalda e o outro num desvão próximo. Sonolentos, sem atinar com o que lhes acontecera descobriram que as carteiras e relógios tinham sumido. Em troca o ladrão deixara para cada um, uma rosa branca.