CONTO DE FÉRIAS - A SURPRESA - SERGIO DALLA VECCHIA

A Surpresa
Sergio Dalla Vecchia

Há certos dias em que o nosso corpo capta ondas cósmicas e nos leva a um estado de alerta. A natureza aquieta-se, não há ventos, os pássaros silenciam e o calor predomina. São os sintomas de que alguma coisa esta por vir!

Era isso o que Cássio sentia naquele exato momento.

Ele era um motorista da Uber e era a sua primeira corrida do dia. Cássio acabara de deixar o passageiro em um edifício na Faria Lima, situada em um bairro que abriga escritórios, consultórios e um dos Shoppings Centers mais elegante da cidade de São Paulo.

O celular marcava 09h00min AM e já o avisava da próxima corrida.

Acelerou o carro e logo sentiu um arrepio pelo corpo. Imediatamente veio à mente a lembrança do mal presságio ocorrido nas primeiras horas.  

Ouviu vários estrondos seguidos, olhou para o céu e avistou um imenso clarão!

Os pedestres na calçada pararam, e boquiabertos também assistiam.

Os veículos de transporte foram parando um a um e seus ocupantes descendo aos tropeços para se inteirarem do que acontecia.

Apavorados todos olhavam para o céu e buscavam a explicação para tal fenômeno.

Seria uma explosão acidental ou uma bomba?

A dúvida permanecia no ar!

Cássio com conhecimento da planta da Grande São Paulo desceu do carro, fixou o olhar para cima:  - Meu Deus! Tenho a impressão de que isso vem lá dos lados de Mauá e talvez de Cubatão. Será que bombardearam a Refinaria de Capuava ou o polo Petroquímico de Cubatão?

Ele pensava apenas nos efeitos das explosões!

O vento soprava de sul para noroeste, exatamente na direção da cidade de São Paulo.

O caos já havia se instalado.

A avenida estava totalmente travada. As pessoas corriam de um lado para outro sem rumo. Todos digitavam os seus celulares na ânsia de noticias dos parentes.

Agora o clarão se transformou em uma nuvem espessa de cor acinzentada e se aproximava ao sabor dos ventos no rumo de São Paulo. Eram os gases tóxicos gerados pelas reações químicas ocorridas pela combustão de cloro, enxofre e outros produtos químicos.

Ele lembrou logo dos ácidos sulfúrico e clorídrico, qualquer descuido resulta em fortes queimaduras e quando aspirados no estado gasoso, a intoxicação e corrosão dos pulmões seriam imediatos. Abandonou o carro e saiu em disparada em busca de uma máscara de proteção contra gases.

Corria, seguia apenas seu instinto de sobrevivência!

Quando percebeu, estava na Marginal Pinheiros junto à ponte Euzébio Matoso.

Nesse momento a sua mente clareou! Lembrou-se da CETESB (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) que ficava próxima dali. Pensou também num posto de bombeiros, um pouco mais distante, mas preferiu a primeira opção.  

Enquanto Cássio corria ao longo da Marginal presenciava o mesmo cenário caótico por onde passava.

Ofegante chegou aos portões da Companhia. Deparou-se com uma confusão geral, pessoas entrando e saindo, a portaria estava absolutamente sem controle!

Aproveitando-se da situação, despercebido passou pelos portões e adentrou no prédio.

— Onde haverá uma máscara? Indagava a si próprio.

Pensou logo no laboratório de análises químicas e para lá se dirigiu.

Seguiu as indicações nos corredores e chegou. Olhou pela janela de vidro da porta e avistou um armário com a seguinte indicação; EPIs   (Equipamentos de Proteção Individual).

Bingo! Exclamou Cássio com os olhos brilhando de felicidade.

Mexeu na maçaneta e percebeu que a porta estava trancada.

Não hesitou, meteu o pé e arrombou-a. Voou para o armário dos EPIs e com o mesmo ímpeto arrombou-o também!

Pronto, lá estava a máscara que tanto necessitava.

Nesse momento a adrenalina baixou. Sentou-se, colocou as duas mãos sobre o rosto e deixou que a emoção acumulada transbordasse em forma de um choro contido. Permaneceu nessa posição por um minuto e logo planejou o próximo passo.

Optou pela Estação Pinheiros do metrô, pois era a mais próxima e para lá se deslocou velozmente.

Lá chegando, desceu as escadas em meio à multidão ainda duvidosa do ocorrido. Algumas pessoas lhe perguntavam:

— Moço, que esta acontecendo, por que esta com essa máscara?

Cássio pondo a sua consciência a prova respondia:

— Não sei, sou apenas um funcionário incumbido de vistoriar o túnel e essa máscara  de segurança é de uso obrigatório.

Ele continuou descendo até chegar ao nível mais profundo da Estação e lá deparou com trens imóveis e vazios!

Mais uma vez o seu raciocínio frio o orientou a penetrar no túnel que transpassava o Rio Pinheiros em direção a Estação Butantã.

Andou por uns cinquenta metros túnel adentro até que encontrou um nicho de serviço em uma das paredes.

Abriu a porta e deparou com um pequeno cômodo onde havia diversos materiais de manutenção.

Num dos cantos havia uma pilha de mantas, provavelmente para a contenção de vazamento de um liquido não inerte e em outro canto alguns garrafões de água potável. Era tudo que ele precisava naquele momento!

Assim Cássio havia encontrado a seu abrigo de sobrevivência!

Aninhou-se sobre a pilha de mantas enquanto o seu corpo exausto clamava por repouso, mas seu cérebro em vigília não o permitia. O filme da sua vida passava pela mente,  as lembranças da sua infância sofrida, a dificuldade financeira da família, a luta para conseguir se graduar em Administração de Empresas e a alegria do seu primeiro emprego. Também o bullying que sofrera por todo esse tempo, apenas por ser negro,  e o grande amor perdido, que o destino separou!

Estou só! Lágrimas brotavam em seus olhos.

Sua mente ainda continuava a importuná-lo com conjecturas:  Quantos sobreviverão? Como nos adaptaremos à esse meio tóxico? Como nos reuniremos? Quando...? Onde...?...


Assim após esse exercício mental e no aconchego do abrigo, seu cérebro foi se aquietando e permitiu que o sono adviesse, e Cássio adormecido, preparava-se para ter o privilegio de renascer na pele de um sobrevivente da hecatombe que assolou a metrópole de São Paulo!

CONTO DE FÉRIAS - O MENSAGEIRO - ISES DE ALMEIDA ABRAHAMSOHN


O mensageiro  
Ises de Almeida Abrahamsohn

Kikunio acordou sobressaltado. Ao seu lado os dois filhos ainda dormiam encolhidos junto à fogueira quase apagada. Agarrou a lança e aguçou os ouvidos. Coaxar de  sapos e o delicado adejar das asas dos insetos. Os pássaros noturnos haviam silenciado. Apenas uma claridade tênue de lua crescente filtrava-se até a clareira. Na mata em volta mergulhada na escuridão mesmo os olhos treinados  do índio sequer conseguiam distinguir os troncos das castanheiras. Levantou as narinas e aspirou os miasmas úmidos da selva. Não sentiu o bodum de onça, mas sentiu o humano. Ficou absolutamente imóvel enquanto girava a cabeça para captar a direção do cheiro. Vinha apenas de uma direção. Se fossem  cinta-largas teriam se disposto em círculo para depois atacar. Nenhum ruído se ouvia daquela direção; poderia ser apenas um homem ou vários agrupados. O índio agarrou a borduna e continuou  armado nas duas mãos, imóvel, com os músculos retesados  pronto o salto felino na antecipação do ataque. Pensou em acordar os rapazes e desistiu. O movimento indicaria a localização ao inimigo. Não havia nada fazer senão esperar. Mais duas horas até começar a cacofonia do alvorecer.

Acordados pelos ruídos  dos macacos caiararas os jovens imitaram o pai e, silenciosos, esperaram a luz se espalhar pela clareira. Kikunio apontou a direção na mata e os três avançaram ocultados pelas árvores.  Tikunio, o filho mais velho avistou primeiro o estranho ser encostado a um tronco  de um açaizeiro. Era gente e estava coberto por um grande pano marrom com listas negras de onde emergia a cabeça. O pano cobria parcialmente os braços. Ao lado tinha um comprido cesto de palha  trançada. Os três espiaram e não lhe viram nenhuma arma. Reconheceram na pele acastanhada e nos cabelos pretos lisos um da mesma espécie.

Kikunio poderia tê-lo abatido com só golpe de borduna,  mas ficou fascinado  pela  roupa do intruso. O estranho  tinha aberto os braços e repetia algo incompreensível ao apontar o pé direito, torcido para o lado e inchado de tal modo que impedia o caminhar. Os filhos queriam abatê-lo e se apoderar dos pertences. O estrangeiro tirou do cesto uma faixa tecida em cores que ofertou ao pai. Decidiram poupar o acidentado. Fixaram-lhe o pé com bandagem de folhas e cipó e, apoiado em um galho, ele conseguiu andar. Chegaram à aldeia ao entardecer.

            A chegada do estrangeiro causou curiosidade e  tumulto.  Os homens, agitados, rodeavam o  forasteiro  e não paravam de mexer no pano da vestimenta. O  cacique se apoderou do embornal onde achou alguma comida e duas faixas coloridas . O pajé reclamou a sua e ambos amarraram as faixas na cintura. Os dois queriam a morte do  intruso mas Kikunio argumentou que mais valia mantê-lo vivo para que lhes ensinasse o segredo das faixas coloridas. Resolveram que o estranho ficaria na aldeia sob vigilância. A contragosto dos demais índios, preservaram-lhe a cobiçada vestimenta. O pajé, após algumas invocações,  apontou o prisioneiro como impuro. Apenas ele, o cacique e a família de Kikunio poderiam ter contato com o forasteiro. Deram-lhe o nome de Apopetu, aquele  que chegou.

Após uma semana o cativo já conseguia andar até o rio com a ajuda de tosca bengala, e em duas semanas já conseguia se fazer entender na língua local. Ao seu protetor transmitiu que era do povo Ashaninka das terras altas onde fazia frio. O captor  estranhou ao ver que Apopetu trazia pendurado ao pescoço um pequeno saco de fibra que jamais deixava molhar e do qual nunca se separava. Kikunio apontou o saco e fez sinal de que queria ver o conteúdo. Apopetu recusou e deu a entender que quando a lua estivesse alta no céu mostraria a Kikunio. Este não se atreveu a usar a força para arrancar o objeto; não iria desafiar os espíritos da selva.

Mais duas semanas se passaram até a lua cheia. Os dois foram até um  roçado de mandioca  afastado das ocas. O estrangeiro abriu o saco pendente do pescoço. Kikunio não escondeu a decepção e a raiva. Apenas dois punhados de sementes. Apanhou uma pedra para atingi-lo, mas Apopetu desviou  o corpo, se afastou e gritou que aquelas sementes eram  o que tinha de mais valor. Fez sinal de que esperasse e começou a espalhar as sementes em covas que abria com as duas mãos. Parecia não se importar mais com a presença do captor que o seguia, curioso parecendo ter  desistido completamente da agressão.  

De volta à aldeia, Kikunio, desconfiado, prendeu o cativo por dois laços de lianas até a manhã seguinte. Exigiu de novo que lhe mostrasse o segredo da faixa tecida. Foram os dois para a mata à procura de material. Apopetu escolheu cipós finos e galhos lisos de embaúba. Dos buritizeiros pegou as folhas  e  frutas e sementes de plantas diversas para o tingimento. Kikunio levou o estrangeiro para uma oca longe da aldeia, conhecida apenas dele e dos filhos. Lá Apopetu montou o tear. Muito mais rústico do que os da sua tribo, mas teve que se haver com o material disponível. Usando  fibras de buriti tingidas mostrou a Kikunio como operar o tear quadrado e obter listas coloridas.  

Ficaram na oca por dez noites seguidas sob o pretexto de uma expedição de caça. Ambos, captor e cativo sabiam que ao voltar à aldeia Apopetu seria morto.  O pajé era o que mais incitava o extermínio do intruso. Kikunio já o havia defendido junto ao cacique da sanha do feiticeiro.

Esta noite seria de lua nova. No dia anterior enquanto Kikunio se embrenhara na selva para caçar, Apopetu foi caçar tartaruga e peixe para se alimentarem. Achou o caminho até o igarapé onde deixara escondida a canoa. Ainda estava lá e em bom estado. No fundo da canoa,  protegido da chuva, encontrou o extrato de cipó mariri. Não queria matar Kikunio, apenas adormecê-lo.  Preparou o peixe com ervas e açaí socado que misturou ao extrato. Encontrou raízes de uariá para cozer na fogueira. Ao anoitecer Kikunio chegou com a caça para levar à aldeia. Estava contente, tinha conseguido dois macacos e dois mutuns e estava com fome. Comeu o peixe assado deixando o uariá  para o cativo. Esticou-se ao lado do fogo e caiu no sono agitado por visões. Acordou ao alvorecer com o barulho dos guerreiros da tribo batendo as bordunas. Vinham com o cacique e com o pajé em busca do Ashaninka. Seguiram-lhe o rastro até a margem do igarapé onde apenas alguns galhos quebrados e uns cipós de amarração denunciaram a rota de fuga. Atordoado, Kikunio contou-lhes as visões terríveis noturnas que tivera e que atribuía aos sortilégios de Apopetu. O pajé decretou-lhe confinamento por duas luas para que se purificasse dos maus espíritos.

Ao terminar o confinamento, Kikunio lembrou-se das sementes no roçado de mandioca. Dois tipos de plantas tinham germinado. Depois de quatro luas cheias era possível ver as hastes com flores e os frutos se formando. Kikunio e os filhos nunca haviam visto aquelas plantas antes. Uma era alta de folhas  longas e pontudas tinha  brotos grossos e alongados com um penacho escuro saindo da ponta. Ao arrancarem as folhas externas viram os frutos pequenos macios e suculentos em fileiras simétricas. Eram comestíveis e de gosto agradável. Observaram ainda que, quando secos, ficavam amarelos e podiam ser socados e estocados. A outra planta que germinara e crescera formara um arbusto baixo. Tinha lindas flores brancas e um fruto meio redondo e esverdeado que não conseguiram comer. Porém passadas algumas semanas no lugar dos frutos apareceram chumaços brancos como os das paineiras da floresta. Perceberam que era possível emendar e enrolar os fios dessa estranha planta. Kikunio percebeu que este deveria ser o material do manto de Apopetu.


A tribo se maravilhou com as plantas trazidas pelo estrangeiro.  Kikunio e o  cacique e mesmo o desconfiado pajé passaram a considerar Apopetu como um mensageiro do deus da floresta.

CONTO DE FÉRIAS - O DIA DA LUZ - JEREMIAS MOREIRA


O DIA DA LUZ
Conto de férias de Jeremias Moreira

Faminto, cansado, ciente de que me arriscava, mesmo assim caminhava a descoberto, sem prudência, a passos firmes como se quisesse mesmo me expor. Nesses tempos confusos eu deveria ser mais cauteloso, pois em rio que tem piranha jacaré nada de costas. Pensava nisso quando dei com o supermercado. Ou melhor, do que restara do supermercado porque, como tudo, estava completamente aniquilado, embora conservasse seu cafona pórtico pós-moderno, por onde passara diversas vezes. Andei até lá e o atravessei mais uma vez. O curioso é que me senti pelo lado de dentro da loja. Sabia que esse tipo de local era propenso a fuçadores, por isso era melhor não dar bobeira. Olhei para os lados e só vi destruição. De algum lugar mais a frente, fora da vista, me chegaram rosnados que me puseram alerta. Eram raivosos!“Rosnar de cachorro! São vários! Cão briga por comida!” Cauteloso caminhei alguns passos na direção da possível refrega. Na passagem me armei de um pedaço de viga e levei como porrete. Assim que ultrapassei a gôndola os avistei. Eram três! Disputavam algo dentro de um fardo de aniagem. O maior deles queria ficar com tudo só para si e não deixava os outros se aproximar. Concluí que precisava agir rápido e resoluto, sem vacilo! Dei um baita berro, bem gutural, avancei como um louco e desfechei uma porretada nesse maior. Pegou na anca, o bicho sentiu a investida, deu um forte grunhido de dor. E, ganindo, meio cambaleante se mandou sem entender o que o atingira. Assustados, os outros dois o seguiram. O butim ficou! Examinei e descobri surpreso uma resma de bacalhau. Achei graça, até sorri! Não sabia como dessalgar, mas havia suficiente para matar a fome do grupo por alguns dias.

Isso aconteceu comigo porque hoje foi minha vez de sair da gruta pra tentar encontrar comida. Há três dias que o grupo só come raiz de árvore, cenoura e beterraba, que foram as únicas sementes que consegui que germinasse.

Eu sou Hitiro Nakagima e tinha uma horta de verduras bem ali, onde fica a gruta onde estamos acantonados. Fica na região leste da cidade.

Tudo começou há dois anos, no dia em que aconteceu um clarão, de deixar qualquer um cego, seguido de forte explosão e de intensa nuvem de poeira. Ficou conhecido como o Dia da Luz. Eu estava cavando um poço, e na hora H, hora do acontecido, eu estava lá no fundo. Mas, ouvi a explosão e depois, quando saí, vi a poeira que se formou. Por vários dias não se enxergava nada e era difícil respirar. Batia um forte ardume nas vistas. Minha casa e minha família foram varridas do mapa. Toda a horta também. Não sobrou nada! Nem tive tempo de pensar em nada. Por espírito de sobrevivência, passei a viver na gruta, que é um lugar fresco e úmido, e onde costumava guardar as sementes. Ali fiquei não sei quantos dias, antes de me aventurar e ver o que resultou daquilo. No primeiro dia que saí encontrei a menina. Andava pela rua como morta viva, dias depois encontrei o Marcos e a mulher louca, que diz que vê o futuro. Se a Miranda vê o futuro de verdade devia ter previsto o que sucederia. Hoje, quando partia ela disse para eu tomar cuidado porque haveria embate. Depois que topei com os cachorros achei que fosse a esse embate a que ela se referia.

Alguns dias depois apareceram a Madá e o Fred, arrastando a Margô em uma maca improvisada. A Margot era bailarina do Municipal e durante a explosão caiu uma viga sobre ela, que esmagou sua perna.  Acho que ela não vai dançar mais, nem teria onde!

Devem ter sobrado pouquíssimas pessoas. De tempos em tempos a gente vê alguns, apenas de longe. Com o passar dos dias aprendemos que nem todo mundo é amistoso. Pelo contrário, alguns são verdadeiras feras, acham que o privilégio da sobrevivência é só deles.


Hoje mesmo, depois que fiquei com a resma de bacalhau, vi apontar distantes dois sujeitos carecas. Os carecas são da Turma Delta. Eles me avistaram e vieram babando em minha direção. Sorte que nesse instante surgiram o Marcos e o Fred. Bem, agora éramos três contra dois. Sentindo-se em desvantagem os deltianos se mandaram. Foi a vidente Miranda que previu que eu estava em perigo e mandou-os em meu socorro. Depois dessa acho que não vou mais duvidar dos poderes paranormais dela!

CONTO DE FÉRIAS - LEOPARDO PARDO - SUZANA DA CUNHA LIMA


LEOPARDO PARDO
Conto de férias de Suzana da Cunha Lima


Madalena resolveu descer ao que ela chamava de bunker.  Um conjunto de laboratórios, escritórios e aposentos a doze metros de profundidade, com grossas paredes e portas de aço. Podia abrigar, com conforto, em tempo integral, umas doze pessoas, por quase um mês. Era totalmente autossuficiente em relação a qualquer fonte de energia. Ali o Governo alojava seus cientistas que trabalhavam em projetos altamente secretos.

Embora aposentada, ela estava fazendo pesquisas sobre as consequências da radiação nos seres humanos e na biodiversidade, matéria de sua tese de doutorado. Porém, o objetivo mesmo era a busca da cura do câncer, principalmente o câncer de pele.

 Era um pedido especial das Forças Armadas, patrocinado por importante indústria farmacêutica.  O Governo queria manter este estudo em segredo e as fórmulas ou resultados positivos obtidos, em seu poder, evitando o monopólio de medicamentos que, em mãos mercenárias, teria um custo proibitivo para a maioria da população pobre do país e do mundo.

 Madalena amava a pesquisa aplicada.  Depois que o marido morrera, e sem filhos, concentrou sua energia e conhecimentos na área que conhecia bem, e sempre lhe causava muita alegria uma nova descoberta ou um novo desafio. Junto a ela trabalhava também Fred, um bioquímico excepcional. Eles dois possuíam uma excelente sinergia e o trabalho de ambos produzia resultados importantes na área.

— A turma toda se mandou para a praia, com quatro dias de folga, Fred. – comentou Madalena enquanto enchia duas xícaras de café. Ofereceu-lhe uma e ia começar a tomar o seu, quando lhe pareceu que o mundo havia desabado. Não sabe quanto tempo ficou desacordada.  Quando finalmente abriu os olhos, notou a desordem. Mesmo a 12 metros abaixo do nível do chão, os móveis e implementos, computadores e seu material de trabalho estavam jogados no chão, desordenadamente, como se tivessem sido sacudidos violentamente. Madalena arrumou-os em seus lugares outra vez, e verificou que todos os dispositivos de energia tinham sido acionados automaticamente.

Viu que Fred estava também acordando e resolveu checar os instrumentos para avaliar o que poderia ter acontecido. Todos os índices de temperatura, pressão, umidade e radiação estavam descontrolados, sendo este último, de certa forma, aterrador.  Mostrava claramente que tinha havido a explosão de um artefato atômico ali bem próximo.

Olhou pelo periscópio que possuía um alcance bem grande, dava para ver até a lapa, uns quinze quilômetros adiante.  E o que viu foi de apavorar. Só escombros, o céu escuro, anunciando uma chuva negra, a chuva ácida, pensou ela.

Fred também olhou e ficou apavorado:

— Está parecendo que jogaram uma bomba atômica aqui em São Paulo,  Madalena.

— Também estou achando, Fred. E os índices estão altíssimos, os marcadores parecem que endoidaram. 

— É como aquela que os americanos jogaram em Hiroshima?

— Não sei a potência desta bomba, Fred, outros cientistas devem estar calculando isso agora. A de Hiroshima possuía cerca de 15 quilotons, mais ou menos 15 mil toneladas de dinamite e fez aquele estrago todo.  Quando meu marido e eu nos formamos, tivemos ocasião de ver muitas fotos, e acesso a muitas informações e ficamos tão horrorizados que resolvemos nos dedicar a estudar a radiação. Fomos até Chernobyl e olhe, mesmo com roupas especiais, nós acusamos radioatividade no corpo durante anos. Vai ver que é por isso que não conseguimos ter filhos, sei lá. E ele acabou morrendo justamente de câncer de pele. – ela suspirou,  os olhos passeando pelo escuro das memórias.

— Mas as bombas hoje têm muito mais poder, não é? Interrompeu Fred as recordações de Madalena, ao perceber lágrimas em seus olhos.

— Ah, sim, - Madalena suspirou, afastando seus pensamentos. – Mesmo porque as bombas são de hidrogênio, como a que lançaram em Nagasaki e sua potência aumentou consideravelmente, chegando aos 50 megatons – 50 milhões de toneladas de dinamite. Creio que acabaria com nosso planeta, por isso não jogaram mais nenhuma.

Madalena olhou firme para Fred: - Antes era apenas um objeto de estudo, agora é um fato real. Sofremos realmente uma explosão nuclear em nosso país.

— Isto significa guerra, Madalena? Quem iria fazer uma coisa dessas? Perguntou Fred quase histérico. - Mas por que jogariam uma bomba nuclear aqui no Brasil, em São Paulo?  

— Gostaria de saber, Fred.  Mas somos apenas cientistas. Acalme-se, estamos bem protegidos aqui – ficou pensativa, matutando o que devia fazer. — Vamos nos comunicar com a sede, primeiro, e buscar orientação. Mas está me parecendo um ato exacerbado de persuasão.  Estamos trabalhando em algo secreto que interessa muito à indústria farmacêutica.  Se descobrirmos um medicamento para o câncer, elas vão deixar de ganhar os rios de dinheiro que ganham hoje somente em remédios paliativos. Querem pressionar o Governo para se apossarem da pesquisa, sabe-se lá para quê.

Tentou todos os números conhecidos e não conseguiu nada.  O que teria acontecido? Seu equipamento estava perfeito. Sem saber o que fazer, resolveu tentar agências de controle de radiação, no exterior. Conseguiu contato com um amigo seu, Tomás, nos Estados Unidos  -  É muito bom cultivar os amigos, Fred. Ninguém conhece estes números, mas graças a Deus somos bem próximos e trocamos figurinhas, como se diz.

— Nós detectamos esta explosão aí, faz uns quarenta minutos, Madalena. Cidade de São Paulo, zona oeste, cercanias do Pico do Jaraguá. Potência fraca, menor do que a que lançaram em Hiroshima. Talvez 10 quilotons, não mais – informou ele.

— Pois assim mesmo faz um estrago danado.  Foi somente aqui em São Paulo? Com que propósito?  Estamos, como nação, sendo bombardeados? Quem nos declarou guerra? Perguntou Madalena, começando a ficar aflita.

— Isso não sabemos, talvez você deva contatar imediatamente seu Governo. Há um protocolo especial, acho que você conhece, para tal procedimento.  Você disse que não conseguiu contato com seus superiores? Muito estranho isso. Nossos comandos todos foram informados e provavelmente seu Governo já sabe também e logo você será informada das providências a tomar. Agora, Madalena, como somos amigos, este ataque está me parecendo um aviso, sabe? 

— Aviso de quê, Tomas?

— Você não está fazendo uma pesquisa em parceria com laboratórios? Sei que está buscando um medicamento ou um procedimento qualquer contra o câncer. Todos aqui sabem disso.

— Tomás, andei pensando nisso também. É muito dinheiro envolvido. E tudo mantido em segredo. Estamos num bunker, nada nos pode atingir.  Mas não conseguimos contato com nossa chefia.  É uma maneira bem eficaz de persuasão, não é?  Perguntou Madalena.

— Os outros laboratórios não querem ficar de fora, seja para usar sua fórmula ou para destruí-la, o que causar menos dano aos seus lucros. E devem estar pressionando seu governo para entrarem nesta parceria também. - concordou Tomás.

— Mas, jogar uma bomba que mata tanta gente de maneira tão cruel, impiedosa, comprometendo gerações futuras de humanos e animais, só para obter uma fórmula, parece-me demais – objetou Madalena, indignada. – É muito vil, muito abjeto. 

— Você não sabe de que este pessoal é capaz, Madalena. A pergunta agora não é o porquê, - orientou ele -  mas que providências tomar para salvar as pessoas atingidas. Encontre no mapa um ponto de encontro e marque as coordenadas. Vamos acionar daqui, os seus serviços de salvamento. Que devem se dirigir a este ponto.  Mas não se afaste muito do abrigo. Você é uma pessoa valiosa, Madalena. Sabe disso e não quer perder todo seu trabalho, não é?  - Madalena concordou e marcou um ponto de encontro no mapa não muito longe do bunker.

— Em quanto tempo vocês acham que o socorro virá?

— Creio que no máximo, duas horas.  Depende de como estarão as estradas, aeroportos ou o terreno, de modo geral. Não detectamos nenhuma outra explosão a não ser aí, na cidade de São Paulo.  Não lhe aconselho a sair de seu abrigo, mas caso insista, vá preparada. Use a roupa especial e um bom estoque de água. Os sobreviventes sentem muita sede. E em nenhuma hipótese informe a localização do abrigo.    Se você tem víveres e água para uma semana, provavelmente antes disso o socorro chegará.  Não se arrisque inutilmente. Nada podemos fazer pelos mais atingidos, você sabe disso melhor do que ninguém.  Ah, não se esqueça de levar o rádio para podermos nos comunicar.

Madalena agradeceu, e estremeceu ao olhar para Fred, olhar esbugalhado, não querendo acreditar no sucedido.  Ele ainda era um rapaz  muito novo, embora um expert em bioquímica, um gênio mesmo, porém no terreno das hipóteses. Agora era a dura realidade que teriam que enfrentar. Ela ainda cogitou em deixá-lo no bunker, mas nunca se sabe o que uma pessoa aterrorizada é capaz de fazer. Ele vai comigo – decidiu, e tratou de tranquilizá-lo como podia. 

Vestiram as roupas especiais contra radiação que pareciam roupas de astronauta e colocaram muitas garrafas de água nas mochilas.  Antes de sair Madalena ainda tentou comunicação com sua sede e nada conseguiu. Ainda bem que ela havia feito comunicação com o serviço americano.  Eles iam acionar salvamento logo.

Subiram cautelosamente as escadas, Madalena não quis arriscar o elevador. Havia uma pesada porta seguida de pequeno espaço (que chamavam de gaiola) e logo depois a porta de saída, bem grossa.   Para tudo foi necessário usar cartões magnéticos especiais.   Fecharam a porta cuidadosamente e disfarçaram a entrada com galhos secos e o que tivesse ali por perto. E o que viram foi de estarrecer.

 Não havia muitos edifícios naquele lugar, mas tudo que estava de pé caiu no chão. Muitos escombros.  Não viram nenhum corpo, pelo menos aparentemente, o que ela achou preocupante.

Lembrou-se de seus estudos, após a explosão em Hiroshima.  Num raio de 960 metros da explosão, a bola de fogo com temperaturas semelhantes às do sol,  faria com que pessoas e objetos próximos simplesmente se evaporassem.  Parece que é o que tinha acontecido.

Depois viria a onda de pressão, os fortes ventos carregados de destroços que, somados às elevadas temperaturas certamente  matariam quase 98% dos seres vivos.

Quanto mais se afastassem do epicentro, maiores chances teriam de sobreviver, porém a que preço? A radiação causa morte celular  e, mesmo que as pessoas não morram nos primeiros seis meses, elas poderão vir a morrer de câncer, de problemas genéticos, ficarem estéreis ou deixarem uma herança maldita como  bebês mal formados, com deficiências em todas as áreas. 

É a mais próxima concepção de inferno que temos. Madalena pensava nisso tudo enquanto caminhava cuidadosamente pelos escombros, tentando localizar algum sobrevivente. Ia em direção do ponto de encontro de qualquer equipe de socorro que houvesse atendido aos seus pedidos de ajuda, para não ficar muito distante  do bunker. 

Não havia nem mortos por onde caminhou.  Só depois de um quilômetro, começou a perceber corpos deformados, horrivelmente, queimados, a pele saindo de seus corpos. Também animais mortos, cavalos  e jumentos, cães e gatos.

Quanto mais caminhavam para fora do que supunha ser o epicentro da explosão, que, em tese seria a Praça da Sé,  mais corpos iam vendo e aí começaram a  surgir  os  mortos-vivos; queimados, cambaleando pelos destroços, rostos derretidos, suplicando desesperados por água e socorro, o rio cheio de cadáveres.

 Mas, Madalena não queria desperdiçar seu valioso  estoque de água com pessoas que em breve,  estariam mortas.  Vou procurar os vivos que ainda tenham chances, pensou. Foi quando notou um grupo de pessoas sentadas perto de um toco de árvore, num morrinho, à primeira vista, parecendo bem. Sua aparição e a de Fred, vestidos com aquelas roupas, foi uma estupefação geral e um alívio também..

Observou que predominavam as mulheres, mas todos estavam machucados, alguns com queimaduras feias, um e outro com hematomas, possivelmente dos destroços que haviam caído com o vento nuclear. Todos com aparência de extrema estafa, roupas em frangalhos. Um senhor se aproximou de Madalena, pedindo notícias.

Madalena pediu a Fred para distribuir a água e informou:

— Fomos vítimas de uma explosão nuclear de baixo impacto – informou – Já acionamos os serviços de salvamento.  Temos que esperar o socorro aqui mesmo, visto que alguns de vocês não conseguirem mais andar.  Vou recalcular as coordenadas para a equipe de salvamento. Quantos vocês são?

— Somos dez, senhora. Ninguém aqui aguenta dar mais um passo. – pediu o mais velho daquele grupo, muito combalido.

— É só terem calma agora, o socorro está a caminho. Não se dispersem, há muita devastação por aí. Nossa missão era localizar sobreviventes e  pedir ao serviço de resgate para vir buscá-los. - Viu que havia alguém querendo falar pelo seu rádio e resolveu atender:

— Pois não,  com quem falo?

— Comandante Silva. Leopardo Pardo.  É a Dra. Lyra?

— Quem quer saber? – Madalena estava já preocupada em fornecer posição e nome.

— Já falei meu nome e senha, Madalena, pelo amor de Deus, estamos lhe caçando a tarde toda. Aqui é o Roberto.

— Ah, Roberto... Sou eu mesma, Madalena.  Vocês são da equipe de socorro? Tenho dez pessoas precisando de ajuda aqui.   A situação é catastrófica, um inferno, eu diria.  Mortos por toda parte. Nada funciona.  Conheço os efeitos da radiação e não há nada a fazer, a não ser retirar daqui quem ainda tem chance de sobrevivência. Como podemos fazer isso?

— Madalena, você não está no bunker? Céus!  O que está fazendo aí fora, doutora? Vou pedir para a senhora voltar o mais depressa possível ao seu abrigo e lá ficar. A situação está ficando muito perigosa. Eles a querem viva, mas não hesitarão em matar quem quer que seja para isso.

— Eles quem, Roberto? Eu sou apenas uma médica como outra qualquer e estou tentando resgatar sobreviventes, como é minha obrigação.

— A senhora é modesta demais. Não está descobrindo uma medicação ou uma droga que interrompe ou anula os efeitos da radiação que provoca câncer?  Eles estão atrás disso, doutora. E apenas para seus ouvidos, os “eles” a quem me refiro, são os velhos inimigos de sempre, os russos.  É o Sr. Putin querendo ressuscitar a “velha Rússia”.

— Vá para seu abrigo e fique atenta aos códigos de segurança, caso eles cheguem  antes de nós. A nossa senha é leopardo pardo, como eu disse no início. Já sei as coordenadas onde se encontra agora e estou mandando um helicóptero para resgatar este grupo de sobreviventes, porque, certamente, eles devem estar combalidos e fracos para caminharem.  Talvez em meia hora cheguem ai. Peça que eles se acalmem. Mas a senhora e o Fred vão imediatamente para o bunker, não podemos confiar em ninguém.

 Madalena levou um susto horrível.  E agora? Teria que voltar para o bunker e esperar socorro.  E como saberia se seriam amigos ou inimigos?

Chamou Fred e informou ao grupo que teria que seguir, que estariam logo bem. E iniciou o caminho de volta.  Fred ia monitorando o grau de radioatividade e ela verificou que era um pouco menor do que a observada em Hiroshima.  Quem sabe aquele grupo sobreviveria, afinal das contas?  Após quarenta minutos longuíssimos e terrificantes chegaram de volta ao bunker.  Parou antes para observar se não havia visitantes indesejados. Levou um susto quando viu uma viatura parada na entrada.  Seriam amigos  ou inimigos?

Foi quando Fred ofereceu ajuda. – Deixe que eu vou lá, doutora.  Digo que sou seu assistente e que a senhora foi fazer pesquisa de campo.

— Fred, eles podem lhe fazer de refém.  Não posso me arriscar.

— Doutora, não tem risco algum, sou peixe pequeno. Eu vou avisando logo que não tenho o cartão para abrir o bunker e esperamos. Ah, vou pedir a senha, assim sabemos logo se são amigos ou inimigos. Está bom? Enquanto isso, a senhora confirma com seu chefe sobre esta viatura, se são deles ou nossa. Estou levando meu receptor. É só a senhora me avisar. Dê dois bipes se a senha estiver correta e nenhum, se a senha for a errada.

E Madalena assim fez e ficou observando. Mal Fred chegou lá, foi cercado por seis soldados. Ele informou que era assistente da doutora e em dado momento, Madalena ouviu no seu rádio a voz dele: Sua senha é Lagarto verde, senhor? Tudo bem, logo que a doutora chegar, ela abre. Não tenho acesso ao cartão de entrada.

Não era a senha correta. E agora?  Nesse momento um helicóptero começou a sobrevoar a área, ostensivamente. Os soldados começaram a atirar e Fred aproveitou para correr dali.  E depois veio outro helicóptero, que acabou liquidando com todos os soldados da viatura. O piloto fez um sinal com o braço e prosseguiu viagem.

Do outro helicóptero, que pousou suavemente, saiu um comandante, acenando alegremente para ela...  Nossa senha é leopardo pardo, doutora. Está correta? Informou ele -  Meu sargento está levando aquele grupo para lugar seguro, estão montando barracas de atendimento fora da área de radiação. Não vamos deixar ninguém para trás, não se preocupe. Nossa preocupação primeira é com a senhora e o Fred.   Enquanto isso, vamos entrar no bunker e a senhora recolhe tudo da pesquisa, você também Fred.  Depois saímos logo daqui. Aqui não é  mais seguro, vamos ter que detoná-lo. Vamos ver o que o Comando Central quer com a senhora.  Com certeza, vai terminar esta pesquisa noutro lugar.  Esse já é conhecido.

Piscou o olho, tentando sorrir, querendo aparentar calma, numa situação de tanto perigo.  Sabia que viriam outras viaturas ou helicópteros, eles jamais desistiam.  Porém olhando para aquela cientista ainda moça e tão dedicada, desconhecendo o valor de seu trabalho e pensando apenas em resgatar sobreviventes, seu coração, endurecido por tantos embates, até amoleceu, ele se comoveu como não fazia há muito tempo.  Enquanto tiver gente assim, - pensou, -  o mundo vai se transformar num lugar melhor para se viver.

CONTO DE FÉRIAS - AS GENTES - MARIO AUGUSTO MACHADO PINTO



AS GENTES
Conto de férias criado por Mario Augusto Machado Pinto

— Será que ela vai aguentar esse mal estar que só lhe permite cochilar, que lhe provoca reações perto da violência, choro lamentoso e chamar seus amigos de infância, aqueles  que na mocidade passaram juntos por dificuldades, atribulações, contrariedades e sacrifícios? Será que suas lembranças estão intactas ou já sofreram o desgaste e as mudanças ocasionadas pelo tempo?

— Não sei, mas posso dizer que esta mulher fez tudo que podia para amenizar a vida do seu próximo, jamais molestando quem lhe dirigia chacotas e, no mais das vezes, ofensas e agressões cujos sinais estão impressos até hoje em sua pele qual manuscrito.

Desde a mais tenra idade, Miranda sonhava com coisas que aconteciam posteriormente. Vivia angustiada temente do pior, da desgraça dos outros e dos seus. Perdeu a mãe ao nascer e só havia seu pai agora na guerra (onde está?) para falar sobre essas manifestações. Nenhum parente. Amigos? Uma vez ao comentar com um deles a respeito do sonho que tivera recebeu ralha e foi chamada de mentirosa. Suas invencionices eram motivo de gozação entre os colegas da escola e dos amiguinhos da redondeza da sua casa. Não comentou mais, mas ganhou apelido: Miranda Jones - a terrena cega, psicóloga, da série de TV Star Trek, que salvou a vida do Commander Spok a bordo da nave espacial USS Enterprise comandada pelo Capitão Kirk. Falou com o Capitão?,  e o Spok, como vai? Puxou as orelhas dele? Isso era o mínimo. Recusava-se a escutar. Tapava os ouvidos, corria fugindo da gozação.

Cresceu ouvindo os clássicos tocados pelo pai num pequeno órgão e, depois, num piano.  Aprendeu nele e dele ganhava seu sustento. Admirava Bach sobremaneira. Os fatos mais importantes da sua ainda curta vida eram sempre antecipados em sonhos pelas composições de Bach, principalmente as Sonatas e o coral da 32ª Cantata e Fuga. Agora era tempo de guerra, não de concertos.

Acordou com ele, o som surdo dos bombardeios cada vez mais alto e mais próximo, chegando perto demais qual zumbido de milhões de abelhas atacando, seus ferrões atingindo vitimas quaisquer. Termina o sonho repetido há meses, mas o corpo continua na posição fetal, tremendo, suando, atento, tenso e à mente voltava a questão: era sonho, mas havia um mensageiro que sempre  repetia: reúna as pessoas, fale com elas sobre o perigo que se aproxima, leve-as para traz do morro buscando proteção; afaste-as dos dois rios e da ponte em “T”; salve-as! Como? Porque eu? Pai, ai pai, volta pai, me ajuda! Nessas horas, sem saber bem porque recorria a Jesus pedindo ajuda, proteção e as recebia.

Sentia a constante opressão para fazer algo a favor das gentes. Lembrou-se do aviso e resolveu chamar a atenção da população para a necessidade de estocar água, comida enlatada e açúcar, arrumar agasalhos e remédios. Saiu à rua, andou por toda parte, percorreu os mais imundos becos do seu bairro e avisava: dizia que avisaria a tempo de todos fugirem dos bombardeios antes deles chegarem. Riam-se da sua pregação. Jones vai lavar, vai cozinhar. Maluca de uma figa: toca o piano!

Acordou nas primeiras horas da noite ouvindo novamente o som da orquestra e das vozes do coral estourando seus ouvidos. É chegada a Hora, é a certeza que lhe dá o som nunca antes ouvido tão intensamente. É o sinal, o aviso. Arrepiada, levantou-se rapidamente, tonteou, enjoou. Banhou-se. Vestiu-se qual cebola, comeu sem saber o quê, pegou sua maleta e saiu correndo para avisar. Corria e gritava pelas ruas clamando às gentes para que fossem para trás do morro Sibu, que levassem suas coisas e tomassem conta de seus filhos e se ajudassem, mas que fossem rapidamente. Haveria bombardeio logo pela manhã, seria longo, intenso e devastador.

As gentes olhavam e riam-se do que fazia a tresloucada Miranda Jones, mas após notarem os pequenos aviões sobrevoando a cidade, com receio do pior começaram a sair de suas casas seguindo em direção ao Sibu.  Aos poucos já se formava fila de caminhantes idosos, mães e filhos. O difícil era convencê-los a deixar para trás suas camas e móveis colocados que estavam sobre carroças, menos as aves e animais que tinham tirado dos seus galinheiros.

Ela sabia que seria mesmo no começo da manhã. Tudo confirmava: o céu ainda  acinzentado, não havia vento  nem a revoada dos pombos, os pássaros não piavam, rabos entre as pernas os cães  uivavam conversando entre si  e a poeira como que se escondia agarrada ao solo e à relva do caminho. E continuava a música insistente tocando intensamente nos seus ouvidos sem parar por um momento sequer.

A quantidade das gentes era bem grande e não parava de aumentar junto com suas tralhas e comida; mais, sempre mais.

Amanhecendo passaram alguns aviões sem lançar bombas. No horizonte já se viam alguns clarões no céu, estrondos amortecidos pela distância.   

As pessoas se juntavam como ovelhas no redil. De Inicio, falantes; depois, murmurantes; por fim, caladas, silentes. As crianças indiferentes e alegres correm, jogam bola, cantam e dançam como aprenderam em casa ou nas escolas. Adultos, olhos apavorados, procuram, procuram o grande zangão. Apesar da certeza, não sabem quando será, mas até ao horizonte buscam um sinal, aguardando, aguardando... aí chegou. O voador enorme zumbe, busca presas. Estrondo! Corpos amontoados a se proteger. Choro. Gritaria. Correria buscando o melhor abrigo. Corpos jogados à distancia pelo ar deslocado pela explosão empilhados formando cones de  pernas, braços qual formigas passando umas sobre as outras. Gritos lancinantes de dor e obras do medo de morrer juntam-se ao latido dos cães, ao miado dos gatos, ao grasnar dos abutres, ao guinchar dos gaviões, ao chilrear das corujas formando a cacofonia de uma sinfônica tocando desafinada por músicos perversos gargalhando ensandecidos pelo som dos bumbos, tímpanos, trompas, tubas, fagotes...Loucura!

Miranda pensa que sua cabeça vai explodir com o som interior ensurdecedor, tapa os ouvidos com as mãos. Tratando das crianças somente agora procurou abrigo. Olha ao seu redor e vê alguns dos pequenos apontando ao céu, rindo-se. Acabou, pensa ela. Não, não acabou.  É a figura no ar, parece um cogumelo revirando sua forma como a esticar massa para fazer as balas de mel e cerejas. Sente a música querida diminuir e chegar outra, suave e embaladora. É como se mil harpas e violinos tocassem acompanhando o enterro de entes queridos jogados ao léu, pelo chão. Olha ao seu redor: não há mais prédios, casas. A cidade, terra arrasada, sumiu devorada pelas labaredas monstruosas da BOMBA! Foi uma só! Lúcifer regeu sua sinfonia, agradeceu o choro, os gritos e os impropérios. Retirou-se. Iria reger em outro lugar.

Durante dias, desorientadas, confusas, as gentes buscam solução para problemas os mais diversos. Deixar Situ era vontade quase geral. Algumas saíram e voltaram para ali morrerem após alguns dias, corpos desfigurados, inanes, descarnados sofrendo dores incríveis. Sem saber o que ocasionava essas desfigurações, Miranda, a muito custo, conseguia mantê-las ali protegidas pela encosta da montanha. Apontava os que voltavam como exemplo do perigo. Conseguiu manter a ordem e a disciplina entre todos. Era respeitada e admirada. Muitas vezes, abraçada aos desesperados, chorava por elas e pela falta do pai. Onde estaria?  

Com amigos e conhecidos formou grupos de atividades diferentes. Assim, Nakajima e sua família de agricultores tinham o encargo da alimentação do grupo.  Kassi, com seu caminhão e alguns ajudantes, buscava alimentos no lado protegido do Sibu. Frei Humberto, visitante do mosteiro de sua ordem religiosa, sem saber uma palavra sequer do idioma local confortava e distribuía bênçãos. Os jovens e as crianças acompanhavam e participavam das atividades de uma trupe formada pelo cômico Pi Olho e a bailarina Margot.

Ainda era atormentada pelas visões em seus sonhos. Sabia que Nakajima iria para hum pais longínquo; em breves dias Kassi iria para a capital e o Frei, por consequência de seu contato com as gentes morreria sem conhecer seus pares. Havia outros, mas se forçava a esquecê-los. Tinha, porém um consolo: não mais ouvia Bach substituído que fora por músicas suaves de autores que não conhecia. 

Não se perguntava até quando duraria essa situação, se e como sobreviveria, qual seu futuro, se é que existiria algum, onde estaria. Preocupava-se em fazer os outros gozarem a vida, serem felizes nessa enorme desgraça que a todos atingiu, em fazer o BEM enquanto durasse. Queria SER.