Passagem - Sergio Dalla Vecchia

 

Passagem

Sergio Dalla Vecchia

 

De supetão, surgiu o cobrador! No seu uniforme azul marinho, os bordados na lapela e no quepe estampavam as letras da CMTC. Meu coração disparou naquele momento inusitado para um garoto de onze anos a caminho do Colégio. Esqueci o dinheiro da passagem!

O cobrador apontou a mão repleta de notas dobradas, dispostas entre os dedos, dinheiro por favor! O pavor tomou conta de mim, pois conhecia a fama da truculência deles. Pensei no pior, seria posto para fora do bonde diante de todos, completamente vexado! Respirei fundo, minhas palavras brotaram em conta-gotas até formarem a terrível frase, esqueci o dinheiro da passagem.

Aquele rosto com barba por fazer e bigodão, me fitou, imediatamente me senti como num paredão de fuzilamento! Pensou por instantes, não faça mais isso, oh menino! Subitamente, retirou uma nota de dois cruzeiros do feixe, é para a volta! Retirando-se em seguida para o outro banco, já cobrando, passagem por favor!

Fiquei pasmo diante daqueles dois cruzeiros em minha mão. O tenebroso tornara-se glorioso. Aliviado sorri para os passageiros e em recíproca recebi alguns afagos.

Assim, décadas se passaram e nunca esqueci o episódio.

Certo dia assistia a uma conferência no auditório de um grande Hotel, onde o palestrante discorreu sobre a cidade de São Paulo, nos tempos dos bondes elétricos. Lá pelas tantas começou a descrevê-los e seus típicos cobradores. Exatamente como eram, mas a entonação da oratória eu entendi como tendência ao deboche.

Não tive dúvidas, esperei o momento oportuno, pedi a palavra e contei o fato ocorrido no passado. Acredito que o senso de justiça me orientou a relatá-lo com muita clareza, à mais de cem pessoas.

Defendi espontaneamente, quem me ajudou da mesma forma no passado. O recado foi dado:

Acredito que todo homem, por mais tosco que seja, possui um lado bom latente. Basta pô-lo à prova! 

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