NOSSA SENHORA, A DA PIEDADE - Oswaldo U. Lopes

 

NOSSA SENHORA, A DA PIEDADE

Oswaldo U. Lopes

 

        Embora Marcos relate no seu Evangelho a presença de mulheres no episódio da paixão de Cristo, Maria, a mãe, só é citada especificamente no Evangelho de João. Cultura, machismo, hábitos de época, tudo junto, fica claro um contorno que afasta as mulheres da história.

        Essa passagem resultou no reconhecimento explícito da presença de Maria na crucificação e no surgimento de uma extraordinária devoção a Nossa Senhora da Piedade. Serviu inclusive para o surgimento de uma maneira de representação de Jesus, morto, no colo de Maria. É a famosa Pieta de Michelangelo. A escultura ganhou tal expressão que a palavra Pieta se incorporou, praticamente em todas as línguas e é escrita e pronunciada com a forma italiana.

        Se ela estava perto do Calvário, qual terá sido sua reação quando, já tendo o crucificado pregado nela, a cruz, foi elevada e jogada dentro de um buraco, causando incrível dor e laceração dos membros. Que horror terá passado pelos olhos da Virgem esta visão intensa do sofrimento de seu filho.

        Pelos redemoinhos da cabeça que pensaria a Virgem vendo tudo aquilo:

— Olha o que as más companhias podem fazer na vida de um jovem.

— De que vale salvar a humanidade a custa de tanto sofrimento.— Melhor teria sido casar e ser um honesto carpinteiro.

        Nunca saberemos, Maria seria uma mãe humana e sofrida ou teria um vislumbre do que aquilo tudo queria dizer. As representações que os artistas fizeram do momento mostram uma mulher tomada de intensa dor e sofrimento. Não é a imagem de alguém que pensa;

— Eu sei que ressuscitarás e serás alvo de muito amor e culto.

        De certa maneira ignorada nos Evangelhos e mesmo nas Epístolas, Maria é objeto de intensa devoção. Padroeira do parto, dos escravos, dos padeiros, dos floristas, da boa morte, Ela acompanha seus fiéis. Até os que não simpatizam com Deus como Ariano Suassuna, se voltam para ela chamando-a carinhosamente de Compadecida.

        A que se compadece, a que tem piedade, a que vale nos apertos, Ela está sempre presente. Rogai por nós, mesmo os que não cremos. Amém.



NOTA FINAL: Não sei se todos sabem, mas Nossa Senhora da Piedade é a padroeira de Minas Gerais e por isso existe, em Caetés, a menor Basílica do mundo, dedicada a ela, linda, com uma Pieta atribuída ao Aleijadinho. Nela devem caber no máximo dez pessoas. Na foto aparece o Umbráculo ( guarda-chuva - umbrella em italiano) que é símbolo das Basílicas, mesmo sendo muito pequena lá está o Umbráculo amarelo e vermelho no canto direito da imagem.

 

Vivo após 36 dias na mata amazônica. - Ises de Almeida Abrahamsohn

 

Vivo após 36 dias na mata amazônica.

                                      Ises de Almeida Abrahamsohn



Crédito: o próprio piloto Antônio Sena, que está ao centro de camisa preta ao lado de D. Maria Tavares, seus filhos e outros catadores de castanhas.

Este texto foi produzido a partir da notícia e texto publicados no NYtimes em 28 de março de 2021, escrito por Manuela Andreoni e produzido em parceria com Pulitzer Center’s Rainforest Investigations Network

 

Antônio Sena tinha aceitado fazer aquele voo naquele velho Cessna 210L porque estava desesperado. Com a pandemia seu pequeno bar não dava para sobreviver e os turistas tinham sumido do Pará. O destino era um  garimpo ilegal em algum lugar no meio na selva amazônica. Era seu voo de estreia sobre a mata. Estava a 1000 m de altitude quando o motor deu pane. Pesou as chances. Poucas. Trazia 160 galões de diesel consigo. Ao perder altura só via a densa copa verde abaixo. Conseguiu enviar um comunicado curto no rádio aberto, que estava a meio caminho da mina Califórnia. Até que, aos 100 m, viu um vale estreito ladeado de palmeiras. Deveria haver rio próximo... E foi lá onde ele miraculosamente conseguiu aterrissar. Ainda tonto com o baque, agarrou um canivete, lanterna, alguns isqueiros, o celular e se esgueirou para fora. Minutos depois, já a distância segura, viu o avião explodir.

Decidiu acampar ao lado dos destroços. O rio que havia imaginado não existia, apenas água acumulada em poças. Pensou que os voos de resgate o achariam mais facilmente. Porém após alguns dias percebeu que os voos de reconhecimento passavam acima, mas não o viam, nem a fogueirinha, nem os sinais que colocou no chão com folhas de plantas e restos carbonizados do avião.

Antes da bateria do celular morrer de vez, acionou o aplicativo de geolocalização e com o mapa localizou um rio, o Paru, a cerca de 90 km na direção oeste, onde ele sabia haver habitantes. E começou a caminhar. Caminhava pela manhã e no começo da tarde montava um abrigo com folhas para se abrigar da chuva e passar a noite. Tentava acampar nas áreas mais altas. Os predadores em geral caçam próximo aos igarapés. À noite tinha que se livrar dos macacos prego que queriam destruir o seu abrigo de folhas. Mas com eles aprendeu que podia comer umas frutinhas vermelhas, breu ou guapuicí de gosto resinoso, mas nutritivas. Conseguiu também três ovos de inhambu e algumas folhas que conhecia. Depois de 4 semanas caminhando, ao acampar à tarde ouviu o zumbido de uma serra elétrica. Não comia há três dias. Apurou o ouvido e ouviu de novo. Mas já escurecia e ele ficou com medo de perder a direção na escuridão. No dia seguinte ouviu de novo a serra que logo parou. Continuou a caminhar na direção oeste como sempre e à tarde viu uma tenda de lona azul e um homem quebrando castanhas. Era um acampamento de coletores de castanhas liderado por Maria Jorge Tavares de 67 anos. Tinham vindo coletar em áreas mais remotas e nesta, que não visitavam há 3 anos. No acampamento o piloto foi alimentado e abrigado. Tinha perdido vinte quilos nesse período. D. Maria se comunicou pelo rádio com a filha, Miriam, que por sua vez se comunicou com a família de Antônio em Santarém. O pessoal a princípio não acreditou, achou que era golpe, já o tinham dado por morto. Finalmente Antônio foi resgatado e jurou nunca mais fazer voos para garimpos ilegais. São criminosos que destroem a mata e poluem os rios.

 

 



NOMENCLATURA E SIGNIFICADO: GUAPUICÍ vem do tupi e significa: “Fruta com resina refrescante”. Também é chamado de Amescla, Almacega, almacegueira, Breu branco, Manguinha brava e Pau de incenso.

 

Origem: É natural da floresta semidecidua (que perdem as folhas numa época do ano) da mata atlântica, do cerrado e da Amazônia, ocorrendo na maioria dos estados do Brasil. Mais informações no link: 

O VELHO E A DAMA - Oswaldo U. Lopes

 



O VELHO E A DAMA

Oswaldo U. Lopes

 

        Jurema não é uma mulher comum. É pobre, não miserável, justa, honesta, trabalhadora; bem até aí está mais comum que goiabada com queijo.

        Não é de levar desaforo para casa. Ah! Começou a diferença. No infeliz mundo em que vivemos, as mulheres levam para casa mais desaforos que deviam levar. Deviam?

        Por que ficar calada quando ofendida ou molestada? Por ser fisicamente mais fraca? Francamente, isso é argumento que se apresente em pleno século XXI.

        O Dr. Alex é muito inteligente, resiliente, fisicamente forte, astuto e não é jovem. Você pode ser moço e inteligente, pode ter porte físico, mas resiliência e perspicácia só se conseguem com a idade.

        É o drama da medicina de hoje. Você deve ter um conhecimento atualizado e recente, mas precisa de experiência e vivência na arte médica. O êxito depende da combinação desses dois fatores, não é para muitos.

        O Dr. Alex se apresentava como ginecologista e punha muita ênfase nisso. Muitos se dizem Obstetras e Ginecologistas, ele não. Não gostava de obstetrícia, muita confusão e ainda por cima, brincava, a maior operação deles era a cesárea, pura via de acesso.

        Como cruzaram suas vidas fica para esclarecer, foi uma mistura da generosidade dele com a necessidade dela.

        Ouviu, espantado, mas sem demonstrar, a incrível história da Jurema. Ela usava a palavra rape, tipicamente americana, muito frequente em filmes e TV, parecia para os falantes mais suave que o violento estupro do português castiço.

        Por fora, parecia jogador de pôquer, ouvia sem pestanejar ou dar mostras de incredulidade. Jurema fora vítima de rape aos nove anos de idade. O autor, um tio, irmão de sua mãe. Perdida, sua mãe fazia de conta que nada acontecera, escondera do marido temendo pela vida do irmão e achava que a menina poderia viver com aquilo. Não podia, tivera rotura de períneo e escoriações na vagina. Nunca tivera uma vida sexual que de longe pudesse ter esse nome.

        Examinou-a com cuidado, tendo a enfermeira presente, nesses casos essa presença dava segurança à vítima.

        Sentou-se na sua cadeira e fitando carinhosamente Jurema falou-lhe:

          Os danos causados na sua genitália eu posso consertar, não são de difíceis reparos. Não posso devolver-lhe a virgindade, nem seria o caso, mas posso reconstruir seu períneo e a vagina.

        Em relação a outros danos, psicológicos, tentarei ajudar, mas você precisará de auxílio especializado que posso conseguir. Prometo que estarei sempre a seu lado, vou ajudá-la no limite das minhas forças.

        Foi só aí, que a cara de jogador de pôquer desapareceu, comovido com tanto sofrimento, esboçou um sorriso, misturado com uma lágrima que teimosa escorria de seu olho.

O ASSALTO - Antonia Marchesin Gonçalves

 


O ASSALTO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

                O banco da USP na Cidade Universitária estava lotado. Sarah com seu jeito de menininha mascando chiclete ao passar pela porta rotatória a bola estoura, o barulho assusta a todos inclusive o guarda do banco. Ela tira o chiclete da boca e mostra com a mão levantada. Liberada entra sob olhares de reprovação. Todos a conhecem, pois, todos os meses ela vai ao banco retirar a mesada que recebe dos pais moradores em Bauru, interior de São Paulo. Por ser de estatura pequena e magra aproveita usa roupas descontraídas e coloridas, estilo desleixada chique. A fila do caixa estava cumprida, tentou o caixa eletrônico, mas fila também estava  grande. Não teve jeito a não ser esperar. Estudante de jornalismo anda sempre com pequeno gravador na bolsa e a caderneta de anotações.

                Na fila ela não percebe um movimento dentro do banco, até ver as pessoas se deitarem no chão com as mãos na cabeça, era um assalto. Um bando de cinco integrantes mascarados e fortemente armados assustando a todos. Após se acalmar no chão, ela começou a analisar a situação, primeiro os clientes, vários senhores com muitas notas na mão, algumas mulheres e um cliente em especial moço todo de branco, com certeza era médico, aparentemente tranqüilo. Os cinco assaltantes estavam vestidos iguais, macacão cinza e boné e máscaras de macacos. Reparou que os tênis eram diferentes, mas todos de marca top. Estando deitada no chão percebeu que o médico estava ao seu lado, aproximou-se para se proteger e  ligou o gravador, ele percebeu sua intenção e ajudou a encobri-la.

                Os assaltantes nervosos falavam alto, apesar das máscaras distorcerem as vozes, chamaram o gerente pelo nome e exigiram que todos se levantassem e foram trancados na sala da gerência, exigindo que ficassem todos sentados juntos. Depois de uns dez minutos Sarah se arrastou até a divisória com janela de vidro e viu que o gerente falava com eles aparentemente sem medo. O médico avisou para que ela tomasse cuidado pondo em risco a vida de todos. Sarah ao invés disso pega o celular da bolsa e filma. Realmente o gerente colaborava com eles, pois nem as mãos ele tinha levantadas. Viu que dois entraram no cofre e outros três de vigia. Ao saírem do cofre não transportavam grandes malotes de dinheiro, mas sim uma caixa de metal e só.

                De imediato se uniram e combinaram que o gerente se virasse para levar uma coronhada na cabeça, caído e machucado esperasse dez minutos para libertar os reféns e chamar a policia. Assim foi ela guardou o celular e gravador sentou ao lado do médico que estava admirado pela coragem e audácia da jovem. Humberto se apresentou e liberados ele atendeu o gerente que sangrava na cabeça em seguida chegou a policia. Após todos darem os depoimentos, os mais nervosos sendo atendidos pelos paramédicos e liberados. Humberto foi conversar com Sarah sobre o material que ela tinha e o que iria fazer. Vai ser o meu furo jornalístico, vou vender a matéria para o jornal e mídia. Humberto admirado elogiou a coragem de Sarah e convidou-a para jantaram naquela noite se estivesse livre e comentou que tomasse cuidado com o gerente, com certeza era um deles, trocaram telefones. Há noite no restaurante Humberto perguntou se ela já havia mandado o material para o jornal, ao que ela tranqüila respondeu que estava organizando para editar, porque o que mais a intrigava era saber o que continha naquela caixa para motivar o assalto.

                Ele concordou também havia notado só a caixa e que não havia saído nenhuma noticia nem nos jornais da TV. Nos dias seguintes resolveu investigar por conta própria o gerente, que voltara a trabalhar aparentemente sem traumas. Soube que trabalhava nesse banco há cinco anos, era divorciado e sem antecedentes policiais. Nesse meio tempo Humberto ligava todos os dias querendo vê-la e aproveitava para fazer perguntas sobre as investigações. Nada boba Sarah começou estranhar o interesse de Humberto sobre o caso e resolveu checar sobre ele e descobre que o próprio tinha sim antecedentes criminais e já tinha sido preso por estelionato.

                Resolveu convidar-lo para jantar em seu apartamento, combinando com um investigador amigo que lá ficasse de tocaia para armar um esquema de confissão sobre o assalto. Jantaram e a conversa foi sobre vários assuntos. Ele cuidadoso, até que começou a demonstrar impaciência quando tira uma arma e exige dela que lhe entregue o material. Calma se propõe a dar, só queria saber o que continha na caixa de tão importante a ponto de um assalto daqueles. Achando que estavam sozinhos, ele conta que era traficante e descobrira que o líder do bando seu sócio, havia desviado uma quantidade grande de diamantes para a sua conta pessoal, após acerto de contas não conseguindo dele o código não teve outro recurso a não ser o assalto.

                Ao ouvir a confissão o investigador armado aparece e desarma Humberto e já havia contatado a policia. Dias depois Sarah consegue seu furo jornalístico revelando toda história. Prenderam o gerente, cúmplice do roubo. E, Sarah teve então a certeza de que carreira de jornalista investigativa seria promissora.

 

EM TEMPOS DE VÍRUS, ALEIRBAG-A - Maria Luiza Malina

 


EM TEMPOS DE VÍRUS, ALEIRBAG-A            

 ESCREVIVER-Memorialista/Crônica

Maria Luiza Malina

 

Ah! Covid. Enquanto as vacas pastavam, Gabriela soltava a voz entre os timbres agudos e graves, estremecendo a praga mais tenra entre as plantações.

Com isto, também não ficávamos à vontade. Logo, nada podíamos falar. O falar interromperia sua magistral voz entoante ou desentoante na desinformada deseducação do cacarejar das galinhas. Fiquei sem fôlego!

As vacas. Ah, sim as vacas! Mugiam e desmugiam no desenfrear que azedava o leite. E nós, acorbertávamos as orelhas com algodão, disfarçando com o uso de faixas de tecido, na testa com a desculpa de segurar os longos cabelos. Que castigo!

Acredito que nem o arado, em tempos de plantação  superava a cantoria da Gabi, Biela, Gabizinha ou Gabriela. Aff!

Anos se passaram. Tempos esses, dos grandes bailes de formatura. Cada uma seguiu seu destino. Raras eram as notícias.

Uma nota no semanário do único e maior Jornal da Região, como era chamado, convocava a população para o evento: “Grande Baile Beneficente – O Rei das Mil e Umas Noites apresentará à nossa sociedade, a futura Rainha Aleirbag-A, nossa conterrânea. Traje social completo”.

A curiosidade explodiu na pequena cidade. Os cochichos e diz-que-diz-que sobre as jovens que foram tentar a vida na grande cidade, perambulavam de boca em boca. Lembraram até de duas irmãs e duas primas que nunca mais retornaram ao vilarejo,  minha nossa! Ninguém escapava. Os telefones não paravam. As fofocas caiam com injúrias e falatórios sobre as então ausentes.

Foi aí que a cobra comeu o rabo. Descobrimos entre as linhas cruzadas, digo, linhas costuradas, o lado avesso da vida de cada habitante e o pior, de suas amantes. A pequena localidade,  passados o tempos,  transformou-me em Distrito,  lotado de costureiras e cabeleireiras. Foi um reboliço só na cidade, atrás do único advogado e do xerife, para impedir possíveis matanças.

O baile. Ah! Quase esqueço do baile, como todos quase esqueçeram.

O quase! Ah! Este sim foi ótimo. Salão lotado. Cada qual exibindo em seu glamour, a roupa mais bonita do que da outra. Não se preocupem, par de vasos, hmm por sorte nenhum. Não adiantava. Queriam se destacar para seu homem que era o homem da outra.

 

 

O momento. Ah sim, o momento foi indescritível. O tal rei à postos. Alierbag-A surge. Estupefatos, os homens a reverenciaram. Olhares. Rumores... imagine um galinheiro com galinhas famintas e... chega o saco de 50 kg de milho... Foi paulera da mulherada em cima deles e tudo quanto era lado.

Acabou o baile. A chegada da Covid-19 nos aproximou.

Não posso dizer que ao sair sobrou um pouco de milho para mim. Só se ouviu um som ecoando: - “EUUUU...”

Memórias da infância - Ises Abrahmsohn

 


Memórias da infância

Ises Abrahmsohn

 

Outro dia ao reler a Relíquia do velho Eça encontrei uma personagem que tinha cheiro de sacristia. Fiquei matutando o que seria tal cheiro. Lembrei de uma cena de quando eu era criança. Minha madrinha tinha um vira-lata simpático de nome Veludo. Veludo se entendia bem com todos os visitantes da casa e nós adorávamos brincar com o cão. Porém havia uma pessoa que o Veludo não tolerava. Era a dona Guiomar. Senhora de uns sessenta e poucos anos era para nós, crianças, uma velhinha decrépita. Era amiga da mãe de minha madrinha e nós a víamos nos aniversários da madrinha. Foi numa dessas ocasiões que acreditei de fato que cheiro de sacristia podia existir. Dona Guiomar era baixinha, gordinha e vestia mesmo no alto verão saia comprida, camisa abotoada até o pescoço, tudo preto do pescoço aos pés. O cabelo grisalho trançado era enrodilhado na nuca. Tinha olhinhos miúdos e míopes no rosto redondo de pele muito branca e bochechas rosadas. Falava em voz murmurante, a cada duas frases invocando algum santo de sua devoção. Exalava um vago cheiro a naftalina. Era muito beata e trazia sempre um terço preso à bolsinha. Era inofensiva, coitada, e ao chegar logo ia se sentar com sua velha amiga num canto afastado da sala. Eis que a campainha tocou. Era a velha senhora. Minha madrinha avisou a empregada. Deve ser a D. Guiomar, prenda o Veludo. O cão a contragosto foi despachado para a cozinha. Quando a recém chegada estava cumprimentando os demais convidados, de repente, à toda velocidade vem o Veludo que, num descuido, escapara do cativeiro. O cão não hesitou e meteu os dentes na perna da D. Guiomar, por sorte coberta por grossa meia de lã. Com um grito e agilidade que ninguém desconfiaria possuir, a vítima saltou para cima de uma cadeira enquanto os adultos se precipitavam para agarrar o agressor.

Foi quando o tio Benedito com sua verve habitual comentou:
É o cheiro de sacristia. O Veludo sente de longe!


Passagem - Sergio Dalla Vecchia

 

Passagem

Sergio Dalla Vecchia

 

De supetão, surgiu o cobrador! No seu uniforme azul marinho, os bordados na lapela e no quepe estampavam as letras da CMTC. Meu coração disparou naquele momento inusitado para um garoto de onze anos a caminho do Colégio. Esqueci o dinheiro da passagem!

O cobrador apontou a mão repleta de notas dobradas, dispostas entre os dedos, dinheiro por favor! O pavor tomou conta de mim, pois conhecia a fama da truculência deles. Pensei no pior, seria posto para fora do bonde diante de todos, completamente vexado! Respirei fundo, minhas palavras brotaram em conta-gotas até formarem a terrível frase, esqueci o dinheiro da passagem.

Aquele rosto com barba por fazer e bigodão, me fitou, imediatamente me senti como num paredão de fuzilamento! Pensou por instantes, não faça mais isso, oh menino! Subitamente, retirou uma nota de dois cruzeiros do feixe, é para a volta! Retirando-se em seguida para o outro banco, já cobrando, passagem por favor!

Fiquei pasmo diante daqueles dois cruzeiros em minha mão. O tenebroso tornara-se glorioso. Aliviado sorri para os passageiros e em recíproca recebi alguns afagos.

Assim, décadas se passaram e nunca esqueci o episódio.

Certo dia assistia a uma conferência no auditório de um grande Hotel, onde o palestrante discorreu sobre a cidade de São Paulo, nos tempos dos bondes elétricos. Lá pelas tantas começou a descrevê-los e seus típicos cobradores. Exatamente como eram, mas a entonação da oratória eu entendi como tendência ao deboche.

Não tive dúvidas, esperei o momento oportuno, pedi a palavra e contei o fato ocorrido no passado. Acredito que o senso de justiça me orientou a relatá-lo com muita clareza, à mais de cem pessoas.

Defendi espontaneamente, quem me ajudou da mesma forma no passado. O recado foi dado:

Acredito que todo homem, por mais tosco que seja, possui um lado bom latente. Basta pô-lo à prova! 

SONHO ADIADO - Antonia Marchesin

 


 SONHO ADIADO

Antonia Marchesin


                Minha amiga Angela falando comigo ao telefone, feliz da vida, tinha conseguido se aposentar. Como funcionária pública de carreira disse que conseguiria viver confortável, que pretendia viajar bastante. Era seu sonho depois de cuidar dos pais até morrerem, agora seria a sua vez. Não sendo casada e nem tendo filhos, com certeza o sonho se concretiza.

                Há mais ou menos um ano, antes dessa loucura pandêmica, eu feliz por ela, fomos comemorar com amigas num barzinho na Vila. Conversamos muito lembrando quando éramos vizinhas de porta no prédio em que morávamos. Eu já casada nos tornamos amigas por afinidade, cúmplices e confidentes. Angela já era sozinha, os parentes mais próximos moravam em Mato Grosso e eu há pouco tempo casada, me adaptando nessa nova vida, tendo sempre trabalhado fora, me tornar do lar seria um desafio.

                Voltando à felicidade de Angela aposentada, já fazendo planos escolhendo qual seria a sua primeira viagem. Como sua origem é de ingleses, resolveu que seria lá que iria primeiro. Compradas as passagens viajou feliz, ficaria um mês e não se limitaria só à capital Londres, mas também pelo interior visitar aqueles castelos medievais e suas histórias. Quando estava para voltar, foi pega de surpresa com o pico da pandemia e teve muita dificuldade para confirmar voos de volta. Ligava todos os dias assustada em perder o voo, sem amigos ou parentes e rezando para não ser contaminada, não tinha seguro saúde de viagem, e isso a preocupava muito.

                Acabou ficando mais um mês confinada no hotel. O que a salvava eram as nossas conversas. Quando conseguiu voltar, ela sentiu dentro do avião o medo do contágio, o ambiente tenso em todos os lugares.

Agora está em São Paulo, frustrada com a nova cepa do vírus e à espera da vacina, adiando novamente o seu projeto de viagens da tão esperada aposentadoria.       

 

PASSAGEM DE PLANTÃO - Oswaldo U. Lopes

 


PASSAGEM DE PLANTÃO

Oswaldo U. Lopes

 

        Essa história parece começar no Gênesis. Ninguém mais lembra como começou, mas é assim até hoje. Há os residentes fixos no Pronto Socorro que lá ficam por dois meses como parte do rodizio entre as várias clínicas e há os que entram à noite e ficam até a manhã seguinte, revezando-se a cada seis dias.

        Tudo bem explicado, manda a boa tradição que ao entrarem os da noite, façam uma visita discutindo cada leito junto com os assistentes que também dão plantão, estes com escala fixa que é para poderem organizar a vida lá fora.

        Por mais que fiquem apenas aquela noite, não é raro alterarem medicação, conduta etc. De manhã a coisa muda de figurino. É uma passagem rápida e tranquila, cada um precisa seguir o seu rumo.  Se não está no Gênesis, deve estar no Êxodo.

        Mesmo em tempos de COVID, a coisa não muda muito. Há um PS especial só para os doentes do vírus, uma equipe especializada e uma porta autônoma. De resto, como costumam dizer: só porque é pandemia, os tiros não cessam, os desastres também não, e as doenças agudas continuam a precisar de tratamento.

        Tudo isso pensava Ricardo enquanto ia passando os casos que entraram a noite, esbarrando sempre naquele.

— Quem vai contar o caso do seu Joaquim, câncer avançado de pulmão, falta de ar e falta de lugar onde ficar até morrer.

        Pensou e calou, eles descobririam por si mesmos, o que iriam fazer, era uma outra história. Percebeu que não ia fazer parte dela, calou-se e foi-se. Será que era isso que chamavam de endurecer a carapaça para poder aguentar o PS?

A ESCULTURA - Antonia Marchesin Gonçalves

 


A ESCULTURA

Antonia Marchesin Gonçalves

                Moises jamais esqueceu a viagem que fez para a Grécia. Sempre se lembra da escultura que viu com seu amigo Rafael.

Rafael seu amigo junto com ele programaram uma viagem de férias para a Grécia. Moises convenceu seu companheiro a se hospedar na casa de amigos, assim economizariam os gastos com hotel. Tudo resolvido partiram confiantes para aventura. Rafael se mostrava receoso em se hospedar em casa de estranhos, confiou no amigo que dizia serem pessoas bacanas. Realmente quando chegaram já no saguão estavam a esperá-los. Após as apresentações foram direto para casa. Rafael admirou-se pelo tamanho da casa, típica, toda branca, no alto do morro com uma vista única do mar azul turquesa.

                Mas o maior espanto, estava por vir, foi à escultura imensa na entrada da casa. Toda feita de bronze brilhante como o sol, uma Fênix. Pássaro da mitologia do antigo Egito esplendorosa. Era grande feita de bronze reluzente, detalhada como se tivesse penas, imponente de asas abertas, a cabeça empinada com uma coroa de penas no alto da cabeça deixando mais altiva. Os olhos de cristal marrom transparente como se estivessem vivos, pronta para levantar vôo, a base feita com cinzas de vulcão de onde ela ressurgia. A atração foi tanta que ele parou boquiaberto e não conseguia tirar os olhos. O dono da casa, com um sorriso no rosto pegou no seu braço e disse, ela faz esse efeito em todos que a vêem, com calma contarei a historia dessa escultura.

                Foram acomodados em seus quartos e após um banho e roupas mais leves, desceram para o jantar. Outra surpresa, o jantar servido fora em volta da piscina com o inicio do pôr do sol, indescritível. Durante o jantar Daniel se sua esposa Ingrid, os anfitriões, serviram um laudo jantar,  azeite saboroso e vinho que não devia nada para o francês ou italiano. Moises lembra que chegou a pensar, o paraíso deve ser assim. Daniel então com a taça de vinho contou sua história. Brasileiro formado pela USP em historia e mitologia antiga conquistou a bolsa de estudos para o Egito, onde poderia fazer seu doutorado. Seus pais temerosos, acabaram cedendo, assim foi. Ficou hospedado na faculdade, lá teve oportunidade de conhecer historiadores do mundo todo.

                Iam todos de caravana para as Pirâmides, Museus, muitas vezes ficavam dias ajudando nas escavações em pleno sol escaldante, mas faziam com satisfação. Em quase todos os sarcófagos os desenhos sempre tinham uma Fênix dourada, impressionado estudou sobre ela. Soube então que representa o Deus Sol, chamada Rá, o mais importante é que ela representava os ciclos da vida, o recomeço e a esperança num futuro melhor, o ressurgimento após dificuldades, o renascer a cada ciclo.

                Esse mito estava presente em várias culturas da época, grega, romana, árabe e chinesa. Daniel continuou contando que conheceu sua esposa Ingrid nesse período, os dois apaixonados pela historia e mitologia, logo tiveram total afinidade, e numas dessas expedições o grupo, dois professores e três alunos, foram seqüestrados, eles dois incluídos. Foram dias terríveis, eram terroristas árabes e queriam muito ouro em troca. Conta que passaram fome, medo, os cinco num único cômodo. As autoridades locais tentaram negociar e eles sabiam que estava complicado. No dia que foram libertos, Daniel havia sonhado com a Fênix, havia muito fogo, conta ele, e ela apareceu toda em chamas voando. Naquela manhã houve verdadeiro tiroteio, bombas, muita fumaça e outros cômodos incendiaram, tinham a certeza de que morreriam queimados.

                Daniel com os professores conseguiram no desespero arrombar a porta e os cinco fugiram aproveitando a confusão ali instalada. Apesar de terem que voltar para os seus países, seis meses depois se casaram na Inglaterra com as duas famílias, com a decisão que morariam na Grécia. Mas, Daniel não esquecia o seu sonho com a Fênix que tivera durante o sequestro e logo que pode foi atrás de um bom escultor que trabalhasse com metais, tinha na mente cada detalhe e conseguiu encontrar a pessoa certa que fez a obra prima, o mito que ressurgiu das cinzas.

                Depois de quinze dias acabaram as férias, Rafael com a foto da escultura, a transformou em quadro para nunca esquecer tamanha grandiosidade e beleza. Os mitos existem como exemplo, para não nos deixar derrotar, sempre ressurgir, como os ciclos da vida.

               

O baú do meu avô - Maria Veronica Azevedo

 


O baú do meu avô

 Maria Veronica Azevedo

 

Meu avo era um comerciante de antiguidades. Ele percorria o interior de Minas Gerais em  busca de objetos antigos e quadros para restaurar e depois vender para colecionadores.

A casa dele era uma espécie  de museu repleto de obras de arte de todo tipo: móveis antigos, objetos de uso variados, esculturas e muitos quadros.

Nós, os netos, crescemos rodeados por histórias contadas desses objetos e também imaginadas pela fantasia que esse ambiente alimentava.

Na sala de visitas havia uma pequena arca de madeira toda trabalhada com apliques esculpidos e uma fechadura de bronze trancada com um cadeado tão antigo quanto a arca.

Desde muito pequena, eu admirava aquela arca. Imaginava estórias mirabolantes de mistério ou até de piratas envolvendo a velha arca.

 

                        ***

A medida que o tempo passava, eu crescia em conhecimento e a imaginação foi se modificando.

A minha curiosidade passou a ser mais objetiva. Assim descobri que a arca de madeira era uma relíquia antiga que fora usada por meu bisavô como mala de viagem.

Na época, as viagens eram feitas a cavalo acompanhado por um jumento que carregava duas arcas de madeira no lombo. Eram sempre duas para o peso ficar equilibrado, tendo-se o cuidado de dividir a bagagem em duas partes de mesmo peso.

Quando me casei, meu avô me deu uma das arcas  de presente. A outra ficou com minha prima que é diretora do museu mineiro. 

Hoje a arca esta na sala da minha casa guardando os álbuns de fotos da família.

Esta semana, fui surpreendida pala pergunta de minha neta Fernanda.

— Vovó! Por que você tem uma arca do tesouro na sua sala? Você conheceu algum pirata?

Fiquei surpresa e não respondi de pronto... Pensei um pouco e falei:  

— Esta arca tão antiga... será que foi de algum pirata? O que você acha que aconteceu com ela? Que tal você criar uma história sobre ela ?

— Legal! Vovó. Vou fazer isto. 

 

A vingança de Laura - Ises de A. Abrahmsohn

 


A vingança de Laura

Ises de A. Abrahmsohn

 

A jovem advogada de 24 anos só agora iria ouvir a verdadeira história do desparecimento de seu pai. Tio Joaquim, que a criara e a quem ela amava como pai, tinha escolhido aquela noite para revelar o que de fato aconteceu há mais de vinte anos. Sentaram-se após o jantar em lados opostos da mesa de madeira escura da sala. A luz fraca de um lustre de vidro antigo pintado com flores agora esmaecidas iluminava os dois rostos. Tudo era silêncio no modesto apartamento do prédio cinzento localizado no bairro da Barra Funda.

O tio examinava atentamente o rosto de Laura como que para transmitir a emoção que o assunto exigia. A moça sentia a perturbação do velho e o fitou carinhosamente. Sabia os sacrifícios que o tio fizera para ela poder estudar e se formar. Afinal tinha suprido a ausência do pai e da mãe que morreu quando ela tinha apenas 3 anos. Laura esticou o braço para apertar a mão do ancião.

No navio de imigrantes viajavam seu pai Leo, o irmão mais velho Joaquim e um primo. Era 1937 e os três a custo tinham conseguido em Marselha o visto para emigrar para o Brasil. O restante da família aguardava em Gênova os preciosos vistos para o novo mundo. Leo trazia consigo na cintura uma bolsinha com quatro diamantes. Era toda a sua fortuna para junto com o irmão começar a vida no novo país. Com dificuldade tinha conseguido vender a casa e a loja que possuíam nos arredores de Berlim. Pagaram-lhe metade do que valia, mas naquela época ainda ficou feliz por conseguir vender.

Laura ficou surpresa. Nunca ouvira falar nesses diamantes. O tio não queria interrupções e pediu que escutasse até o fim. Encurtaria a história e depois podia responder às perguntas.

Aconteceu que o tal primo Benjamin, verdammte Kerl (maldito cara), resmungou o velho, ficou sabendo dos diamantes. Uma noite, antes de chegarem ao porto de Santos, o primo e Leo iniciaram uma violenta discussão no convés após o jantar. O rapaz, que tinha apenas 18 anos, exigia que Leo lhe desse um dos diamantes da bolsinha. Entraram em luta e o jovem mais atlético e forte arrancou a bolsa da cintura do pai de Laura.

Foi nessa altura que eu cheguei ao convés e vi Leo ser derrubado com um soco certeiro do sujeito. Saí correndo para procurar ajuda.

Quando subi de novo ao convés, junto com o imediato, a área estava vazia. Começamos a procurar e não encontramos nem seu pai, nem o maldito. Não estavam nas cabinas e nem em outro lugar do navio. Fui comunicar ao comandante o desaparecimento e o temor que meu irmão tivesse sido empurrado para o mar pela amurada. Porém o homem me aconselhou a calar. Do contrário seria detido pela polícia para averiguação e provavelmente repatriado para a Alemanha.

No dia seguinte desembarquei com minha bagagem sem ver nem a sombra do tal Benjamin. Nem pude retirar a bagagem de seu pai porque não achei os comprovantes.

Quando sua mãe, após dois meses, conseguiu chegar ao Brasil contei-lhe do desparecimento do Leo e do sumiço do primo assassino. Você tinha um ano. Trabalhei de início dois anos na zona cerealista e morávamos os três, sua mãe, eu e você em dois quartos de uma pensão nos arredores. Mudamos depois para uma casinha alugada aqui no bairro, mas sua mãe pegou pneumonia, naquela época não havia penicilina, e ela faleceu. Isso você já sabia, e também que nos mudamos para esse apartamento que comprei quando você já tinha uns dez anos.

Agora vou lhe contar algo que descobri só há pouco tempo. Você conhece o Michel, meu grande amigo ainda dos tempos da Alemanha. Fui visitá-lo em seu belo apartamento em Higienópolis. Era sexta feira e nós estávamos no terraço conversando e tomando cerveja. Ele mora no primeiro andar e dá para ver a calçada do outro lado. Eu não estava olhando para nada em especial mas observei dois homens conversando parados na calçada. Um deles com cerca de uns quarenta e poucos anos e o outro devia ter cerca de sessenta. Os dois estavam com Käpchen (solidéu) e deviam estar  a caminho da sinagoga para o Shabat. Algo na figura do mais novo me fez apertar o olhar. E, coincidência, ele virou a cabeça e eu pude ver o rosto de frente. Não havia dúvida. Era o Benjamin. Os mesmos cabelos de um louro avermelhado apenas meio careca, os cabelos ralos no alto da testa. Fiquei muito nervoso e pedi ao Michel que, rápido, trouxesse o binóculo.

Com o binóculo pude confirmar, era mesmo o danado, com a cicatriz na têmpora esquerda que já tinha quando jovem. Perguntei ao Michel se ele conhecia o sujeito. De fato, ele o conhecia como Artur Lewitz, dono da cadeia ALL de lojas de eletrodomésticos, muito rico e uma pessoa importante e influente na Congregação. Alguns minutos depois os homens se afastaram. Michel, curioso, quis saber porque eu ficara tão nervoso e o meu interesse. Não lhe contei nada sobre a nossa história. Disse apenas que era uma pessoa conhecida ainda dos tempos da Europa.

Então, minha querida, o assassino de seu pai vive agora aqui mesmo em São Paulo sob outro nome e juntou uma fortuna. Muito ajudado pelos diamantes que roubou de seu pai, enquanto nós, eu, sua mãe e você tivemos tempos muito difíceis. Talvez ela não tivesse ficado doente se a gente tivesse uma vida menos sacrificada nos primeiros anos.

O que você vai fazer com esse conhecimento, eu não sei. Talvez o melhor seja esquecer e tocar a vida. Você é jovem, agora tem uma profissão e terá uma vida melhor.

Laura muito emocionada levantou-se e abraçou Joaquim. Não fez outras perguntas.

Essa criatura criminosa que tanto sofrimento causou tem que receber alguma punição, acrescentou, ao olhar o pai adotivo.

Durante as semanas seguintes Laura investigou Artur Lewitz, aliás Benjamin Stuhlen. Era mesmo um homem muito rico. Tinha se divorciado duas vezes.  Algumas fofocas indicavam casos com várias mulheres bem mais jovens que ele.

Dizia-se que tinha várias residências. O homem era sempre acompanhado de seguranças e tinha poucos amigos. Fazia consideráveis doações à sua Congregação e à Sinagoga em Higienópolis e gozava de grande prestígio. Porém ninguém da comunidade se reconhecia como amigo do sujeito ou frequentava sua casa. Os eventuais amigos ou conhecidos vinham de relações comerciais.

Laura em suas horas de folga dedicava-se a investigar o primo e a pensar como poderia atingi-lo. Era bastante racional. Por maior que fosse a sua vontade de vingar a morte do pai, não queria estragar a própria vida. A segurança que cercava o sujeito dificultava chegar a ele. Tinha que achar um meio de destruir o cara.

Após cerca de dois meses de investigações meio infrutíferas, teve sorte. Uma amiga da faculdade tinha sido contratada na área financeira do conglomerado ALL. Foi dela que ouviu um rumor que circulava nas lojas. Algumas funcionárias eram contratadas por um sistema de seleção especial que visava mulheres bem jovens, muito atraentes e solteiras. Segundo se dizia, as moças, após algumas semanas como vendedoras, eram convidadas para  uma festa de fim de semana em um sítio com todas as despesas pagas. As funcionárias regulares tinham observado que  as moças não reapareciam para trabalhar após participarem nos tais fins de semana. E também nada contavam às ex-colegas se por acaso as encontrassem. Apenas diziam que tinham arrumado um emprego melhor.

Laura indiretamente confirmou alguns dos rumores. Imaginava o que devia estar acontecendo. Era certamente aliciamento das jovens para fins sexuais, mas ela não tinha como provar. Se conseguisse provas, arruinaria a reputação do sujeito. Seria uma vingança perfeita. A única maneira de conseguir provas seria entrar numa dessas festas e conseguir filmar.

Laura se olhou no espelho criticamente. Não tinha nada que chamasse muito a atenção. Seios pequenos demais, corpo bem proporcionado, derrière firme, mas certamente não era  do tipo sexy. Quase não usava maquilagem e os cabelos castanhos compridos usava presos num rabo de cavalo. Tenho que me transformar, suspirou.

Procurou um antigo colega, agora ator de teatro, que lhe indicou uma especialista. Tingiu os cabelos de loiro, aprendeu a se maquilar para realçar os lábios e olhos  e também a usar os saltos altíssimos que odiava. Saias e calças justíssimas e blusas decotadas de modo a expor os seios empinados completavam o visual.

Tio Joaquim estranhou demais quando se deparou com a sobrinha assim produzida. Ela estava vestindo uma capa de chuva pronta para sair, mas o velho senhor se assustou.

Que é isso menina, parece uma vadia! Não vai sair assim.

Laura teve que convencer o tio de que isso era parte do plano para acabar com o primo.

A nova Laura arrastou uma onda de famintos olhares masculinos e várias propostas assanhadas ao caminhar até o escritório central da ALL. Com o coração acelerado, esperou ser chamada  para a entrevista. Três homens atrás de uma escrivaninha a examinaram com olhar lúbrico. Após poucas perguntas sobre estado civil e disponibilidade para trabalhar no fim de semana, Laura estava contratada.

Devia começar no dia seguinte, uma terça feira. E lá estava ela, pontualmente se apresentando à gerente da loja. Esta não a recebeu de modo amigável

Mais uma das selecionadas pelos malandros lá de cima! E pode tirar esses saltos. Não dá para trabalhar assim.

Laura acalmou-a dizendo que já tinha trazido um par extra e que não se preocupasse. Trabalhou normalmente até sexta de manhã. Foi quando apareceu na loja um dos entrevistadores e lhe entregou um envelope fechado.

Laura foi ao banheiro e exultante abriu a mensagem. Lá estava o convite. Deveria aparecer num lugar determinado trazendo roupa de festa e de banho para passar um fim de semana num sítio próximo. Uma van a levaria e traria de volta no domingo à tarde. Seria bem recompensada. Não devia trazer o celular.

Isso seria um problema. Laura tinha pensado em filmar com o celular. Sabia que existiam mini filmadoras bem pequenas – aquelas de espião- mas como conseguir?  Não dava tempo para comprar na internet. Talvez algum colega advogado tivesse uma. Muitos advogados usam para se precaver contra eventuais extorsões ou processos.

Logo depois do almoço alegou estar doente e foi atrás das filmadoras. Finalmente achou um colega disposto a emprestar uma e a ensinar como usar.

Na noite de sexta-feira Laura dormiu pouco. Sábado pontualmente às quatro da tarde embarcou na van. Dentro já estavam três garotas, bem jovens entre 18 e 20 anos, e vestidas de acordo, shortinho ou calça justíssima, blusa decotada e super-maquiladas. Após cerca de uma hora de estrada chegaram ao portão do sítio. Na verdade, uma mansão atrás de muros altos com guarita e câmaras de vigilância. Foi conduzida ao longo de um corredor até uma porta que o funcionário informou ser a suíte azul. Tudo azul. Colcha de cetim azul na cama king size, cortinas azuis e toalhas idem no banheiro. Espelhos dourados na parede e no teto. Luxuoso estilo kitsch-motel, pensou Laura.  Vamos ver o que acontece.

Como instruída, trocou a roupa pelo biquíni, vestiu o roupão macio pendurado no guarda-roupa e desceu a escada estreita que dava acesso ao jardim e à piscina. Seu olhar abarcou o cenário. Seis garotas bem jovens, a maioria de fio dental, estavam nas espreguiçadeiras tomando sol ou conversando. Havia um bar e Laura observou o funcionário com a bandeja trazendo alguma bebida. O seu alvo não estava presente. Tenho que me enturmar com as meninas. Decidiu abordar uma moça loira meio afastada do grupo. Ao se aproximar viu que essa não era assim tão jovem. Devia, como ela, ter cerca de 25 anos. Apresentou-se como Laís e perguntou o nome.

Milena, respondeu. E sorriu. Este é o meu nome aqui. Prazer em conhecer você, Laís. Nós duas estamos meio de tias aqui, não é ? As outras são carne mais jovem.

Laura surpreendeu-se com a moça. Dei sorte. Milena se expressava bem, era razoavelmente culta e, o melhor de tudo, estava lá pela terceira vez.

Será a minha última, informou. Já consegui o que queria, mexendo os dedos para indicar dinheiro. Essa Milena vai desaparecer ...  Eu acho que você também não está aqui como você, se é que me entende...

Laura estava curiosa para saber o que aconteceria à noite e no dia seguinte. Até começar a escurecer não tinha visto o dono da casa. Apenas os empregados circulavam por ali. Milena tinha feito uma breve descrição de como seria a noite e foi tal e qual o que aconteceu.

O Artur apareceu sozinho (Milena contou que às vezes ele trazia um ou dois amigos) e sentou-se no enorme sofá no centro da vasta sala.

Laura via o assassino de seu pai pela primeira vez. O homem aparentava uns cinquenta anos. Estatura média, compacto, musculoso com uma barriga incipiente. Movimentava-se agilmente e gesticulava. O cabelo loiro-arruivado era ralo na fronte, comprido atrás e assentado com gel. Tinha a pele muito branca e avermelhada no rosto como é frequente nas pessoas ruivas. Mas o que chamou a atenção de Laura foram os braços. Incrivelmente peludos, cobertos por pelos ruivos crespos que cobriam até o dorso das mãos. Os mesmos pelos abundantes apareciam na abertura da camisa esporte. Um cordão com medalhão de ouro aparecia sobre a camisa.

A moça teve um arrepio de repulsa com a ideia de ter aquelas mãos peludas de urso passando por sua pele. Ou pior, pensou... Se fosse “escolhida”, como tinha ouvido de Milena. Iria tentar passar desapercebida. O máximo de tempo fora das vistas do sátiro.

Laura examinou a área. Um painel espelhado tomava uma parede inteira e refletia o sofá central da sala.  Nos cantos poltronas estofadas de veludo verde rodeavam mesinhas de pés dourados. O mesmo estilo bordel do quarto. Salvava-se um belíssimo piano de cauda a um canto da sala. Gostaria de ter esse piano, mas custam uma fortuna. Será que alguém toca? Uma parede envidraçada dava para a área iluminada da piscina. Vasos de folhagens gigantes completavam a decoração. As folhagens vêm a calhar como esconderijo.

Um garçom passou oferecendo drinks não alcoólicos. Seu olhar se fixou no sofá do meio da sala. Artur tinha agora duas moças sentadas ao seu lado e todos riam de alguma piada. Ouviu o homem ordenar  às outras moças próximas para desfilarem devagar à sua frente enquanto ele acariciava as duas coladas a ele. Despachou essas e chamou outras, levantou-se para dançar agarrado às duas ao som da música ambiente. Ria e pedia às duas para mostrarem os seios.

Laura morrendo de medo filmava o que podia meio oculta pelas folhagens. Rezava para não ser percebida. Foi ao banheiro algumas vezes e enveredou pelo corredor que dava acesso ao jardim. Porém deu de cara com um dos capangas que, com um riso malicioso, a escoltou de volta para ir “trabalhar”.

Para sorte de Laura quatro das mulheres se revezavam em volta do nojento. Milena tinha contado que as escolhidas para subir com ele ao quarto recebiam um bom dinheiro a mais. Ficou disfarçando entre o buffet servido, o banheiro  e se escondendo entre as plantas por umas duas horas. Quando saiu pela quinta vez do banheiro olhou  para o centro da sala e o desgraçado tinha sumido, junto com as quatro moças. Laura subiu rapidamente as escadas até seu quarto e passou a chave. Milena tinha dito que aconteciam visitas aos quartos durante a noite. Laura não conseguia adormecer com medo de ouvir baterem na porta. Mas nada aconteceu. Ela não tinha despertado atenção especial. Porém, ainda teria que escapar das situações da piscina na manhã seguinte.

Segundo Milena, nas manhãs de domingo Artur só aparecia na piscina lá pelas onze e nadava totalmente nu chamando as convidadas para a água. Depois sumia de novo com alguma moça. Por volta das três da tarde as moças eram chamadas para serem trazidas de volta à cidade.

Na manhã de domingo, ao acordar, Laura ouviu a chuva batendo na vidraça. Eram ainda seis horas. Não conseguiu mais dormir, nervosa andava pelo quarto imaginando planos para escapar de algum assédio do nojento. Chovia  e, portanto, a parte da piscina seria cancelada. Mas, na certa, iam substituir por alguma pegação no salão maior. Tomou banho e se vestiu com a calça jeans e blusa inocente que usara na viagem. O café seria servido a partir das oito no salão.

Só encontrou Milena que lhe deu bom dia: Olá, pelo visto, você não foi uma das escolhidas. Aliás percebi que você sumiu várias vezes durante a festa ontem. Não está precisando de dinheiro? Ou aconteceu algo? Eu também não estava a fim de aguentar o cara. Como te falei, a grana básica desta vez já me resolve a vida e depois desapareço.

Laura disfarçou e inventou que estava mal da barriga e tinha vomitado. Perguntou sobre como seria a manhã já que estava chovendo. A outra moça não sabia porque o Artur em geral só aparecia mais tarde. Laura a custo engoliu uma torrada e um café com leite. Não tinha vontade de ficar conversando e inventando histórias para a garota e subiu logo ao quarto. Lá pelas nove tocou o telefone. Laura, sentindo um aperto no estômago, atendeu. Um empregado comunicava que não haveria mais atividade, o patrão tinha que voltar mais cedo  e todas as moças deveriam se arrumar para sair em uma hora. Que alívio!  Deitou-se na cama e relaxou pela primeira vez nos últimos dois dias. Tinha material suficiente filmado do dia anterior para acabar com a vida do cara.

Onze e meia da manhã Laura, após receber um envelope fechado, foi deixada na frente do shopping Paulista como combinado. Felizmente durante o trajeto as outras moças ficaram caladas, algumas cochilaram e ela não precisou conversar.

Ao chegar no apartamento tio Joaquim a esperava ansioso e desconfiado.

Você está com um aspecto horrível, com olheiras e esse cabelo tingido de loiro e essa pintura. Por onde andou?

Laura resolveu se abrir com o tio e disse-lhe que mais tarde contaria o plano e o que tinha conseguido para expor o primo criminoso. Tinha pensado bastante durante a viagem. Originalmente queria fazer tudo sozinha sem envolver o tio. Porém o tio e aquele amigo dele, Michel, tinham como chegar ao rabino da Congregação e mostrar o filme. Ela teria muita dificuldade de explicar tudo e que acreditassem nela. Mas estava tudo ali, filmado e documentado.

Laura passou as imagens para o computador. Tio Joaquim ficou rodeando a moça com olhares desconfiados enquanto ela preparava  o lanche da noite.

Calma tio, vou contar tudo após o jantar e você tem um papel importante no meu plano.

E de novo, como há mais de dois meses estavam os dois sentados à mesa escura de mogno da sala. Porém, desta vez era Laura que tinha o que contar.

O tio boquiaberto ouviu todo o relato, e murmurou que era uma loucura ter ido até o sítio do farbrekher (criminoso em ídiche) Benjamin. Ao final perguntou qual seria sua participação, que ela tinha aludido. A moça explicou que contava com a ajuda dele e do amigo Michel para divulgar as atividades do tarado. O tio relutou um pouco em chamar o amigo, mas ao assistir às cenas filmadas mudou de ideia.

Já no dia seguinte, Michel apareceu à noite no apartamento. Escutou toda a história e ficou ainda mais estarrecido ao ver as cenas. Era da opinião de que não bastava levar o filme ao conhecimento do rabino e eventualmente da congregação. Era preciso que se divulgasse na mídia. Ele próprio se encarregaria disso, tinha sido jornalista e ainda conhecia gente nas redações dos jornais.

Daí para frente, tudo se desenrolou rapidamente. Uma semana depois começaram a aparecer as notícias nos noticiários das TVs e nos jornais.

Laura, o tio Joaquim e Michel viam e liam as manchetes: “Empresário do ramo de lojas de eletrodomésticos aliciava jovens para festas em sítio”; “Funcionárias eram contratadas para proporcionar prazer ao rico empresário em festas íntimas”; “A polícia investiga aliciamento de moças menores de idade”. Fotos do prédio onde o criminoso morava e do sítio em Embu onde aconteciam as festas de fim de semana eram mostradas com as notícias.

O sujeito estava acabado. Na semana seguinte, Michel informou que ele tinha desaparecido do bairro e provavelmente de São Paulo.

O sucesso foi comemorado com um jantar. Tio Joaquim até comprou champanhe, era uma ocasião muito especial, e junto com Michel brindaram à coragem de Laura, agora de volta à sua identidade original. Jovem advogada, cabelos e olhos castanhos, amável e discreta no vestir e nas maneiras.

Laura abraçou os dois velhos: Valeu! Acabou! Foi uma vingança e tanto!