Conflito de gerações - Ises A. Abrahamsohn

 




Conflito de gerações 

Ises A. Abrahamsohn 

 

Neusa entrou no quarto e se atirou na cama. Ficou lá mesmo, largada, sem tirar os sapatos e olhando sem ver o teto. As mãos ainda tremiam depois da briga com a filha.  Não chegou a chorar, apenas os olhos úmidos das poucas lágrimas. Veio-lhe um grande cansaço. Chutou os sapatos para longe. Se pudesse chutaria também os pensamentos. Sentiu os braços e pernas amolecerem e continuou imóvel até que a escuridão invadisse o quarto. Olhou o relógio. Sete da noite. Irritou-se consigo mesma por essa lassidão. Acendeu o abajur e alcançou o copo no criado mudo. A água descendo fria na garganta a acalmou. Levantou-se sem procurar os chinelos. Devagar andou pelo corredor do pequeno apartamento até a cozinha. A porta do quarto da filha, fechada. A música escapava pela fresta da porta. Bastou para lhe amargar de novo a boca, enquanto a raiva tomava de novo conta do cérebro.

Vou ficar com dor de estômago, preciso de um antiácido. Cadê o frasco?

Achou um resto do líquido branco que misturou com água antes de tomar pelo gargalo mesmo. Sentou-se à mesa da cozinha, preparou um sanduiche de queijo e um copo de leite. Mastigava devagarinho cada bocado.

A doidivanas da filha a deixava fora de si.

Tanto esforço para dar uma boa educação e agora essa  idiota desperdiça tudo. Sim. Sou de outra geração, como ela fez questão de me dizer antes de me chamar de velha. Velha, eu ? Com quarenta e cinco anos ? Eu a criei , sozinha, sem o pai que se escafedeu quando ela tinha dois anos. Vai largar a faculdade para ir atrás do cara. Músico de talento, ela diz. Besteira. O cara só sabe é fazer essa coisa que chamam de funk. Não é música é barulho. E além disso as letras. Ela diz que são de gozação e de protesto. Eu , hein? O que ouvi só serve para abusar das mulheres. É horrível não sei como ela não percebe. O sujeito não tem onde cair morto. E não estuda música, nem nada, nem tem emprego. Ela diz que vai morar com ele. Vão viver do que ?

Neusa não percebeu quando a filha entrou na cozinha.

Já acalmou, mãe? Tem alguma coisa pra comer no jantar? Não vai fazer comida hoje? Tô vendo que tá no sanduíche. Faz mal. O Marcos é vegano, sabe. Sem leite, carne, ovos. É mais saudável. Eu vou amanhã para o ape dele. Só comida saudável. Viu. Vou fazer a mala e sair daqui. Dessa vidinha de merda. E você enchendo o saco. Ele diz que é bobagem continuar com a facul, ficar pagando sem gostar. Vou arrumar um emprego.

A garota postou-se à frente da mãe, desafiadora, encostada ao fogão. À espera. À espera da resposta que demorou a vir.

Neusa levantou-se devagar, a raiva de novo tomando conta do seu corpo. De novo as mãos tremiam e sentia uma friagem indefinida no corpo e na alma. Os olhos castanhos tomados por uma dureza que ela mesma desconhecia escrutinaram o rosto de Marlene. Sua filha . Única filha. Deu a volta à mesa até ficar frente à frente com a jovem que empalideceu. Nunca vira a mãe nesse estado.

Neusa ergueu o braço para dar a bofetada. Deu um suspiro enquanto baixava lentamente o braço e deu um passo para trás.

Vai minha filha. Vai viver a sua vida! Pode ir embora agora se quiser. Virou-se e voltou ao seu quarto.

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