O vesgo
Fernando Braga
Seu
nome era Primígio. Aos 9 anos, aproximou-se da mãe e perguntou o porquê deste
nome tão diferente. Ela disse que seu nome seria Aprígio, mas na hora do
registro no cartório o pai enganou-se, colocando-lhe um nome parecido.
Desde muito pequeno, os pais e parentes,
passaram a chamá-lo de Pri.
Na
escola, coleguinhas de grupo escolar, na realidade sempre maldosos, gozadores, procurando
defeitos nos coleguinhas, lhe deram o apelido de Migio.
Mas, era
Mijo pra cá, Mijo pra lá, o que ele detestava. Chegou a pedir e depois proibir
que assim o chamassem, mas quanto mais reagia, mais o apelido grudava.
Talvez
seja esta uma das razões para ele, desde pequeno ser bravo, brigão, desaforado,
respondão e até segundo alguns, um pouquinho louco. Desenvolveu facilidade para
brigas, que topava sempre, não tendo medo, nem de colegas maiores.
Dificilmente
perdia briga e quando a iniciava, não sabia parar. Eram chutes, socos, quedas, para
todos os lados. Facilmente tirava sangue do nariz de seus adversários. Naquele
tempo ninguém usava pau, pedra, canivete ou estilingue para enfrentar o
adversário. Pegar pau ou pedra era covardia. Tinha que ser no braço e na perna!
Adquiriu
a fama de valente, corajoso, machinho, mas o apelido se mantinha. Depois que
sua mãe lhe explicou o erro do pai, a quem tanto amava, passou a “não dar
bola”.
Ainda
moleque, fez amizade com uma turminha da vila, cujo chefinho deles era um tal
de Alaor, moleque ousado, metido, brigão, que tinha um olho torto, o que lhe
dava cara de mau. Um dia teve que enfrentar o Alaor e pela primeira vez levou a
pior, jorrando sangue de seu nariz. Não esmoreceu, até o dia em que a briga
empatou, ambos saíram machucados, mas... amigos.
Com a
turminha da vila, gostava de pular muro, entrar no quintal de vizinhos para
roubar garrafas, galinhas e as frutas da época. Medo só de cachorro. Fins de
semana saiam a vagar pelas estradas vicinais, campos e penetrar nas matas
próximas, armados com estilingue e caçarem passarinhos. Era uma turminha da pesada!
Em um
dia trágico, resolveram pegar a rabeira de um caminhão carregado, que vinha desviando
dos buracos da estradinha de terra. Quando o caminhão diminuiu a marcha,
correram atrás e se dependuraram na carroceria. Após uns 100 metros, o caminhão
acelerou e ao passar por uma depressão forte da estrada deu um grande baque, o
que fez soltar as mãos de Alaor, que após uma pirueta, caiu em cheio de cabeça,
em uma pedra da estrada. Todos se soltaram e foram socorrê-lo. Conseguiram parar
um carro que vinha passando, levando-o para um pronto socorro. O colega morreu 10
dias após, por ter quebrado a coluna do pescoço e lesado a medula. Aquilo foi
demais!
Primígio
nunca havia visto alguém morrer! Ainda mais um amigo! Nunca mais se esqueceu de Alaor e seu olho
torto.
Parou
de estudar após o término do ginásio, indo trabalhar com o pai na mercearia da
família. O tempo passou, casou-se e teve dois filhos. Manteve o gênio difícil, era
bravo, pouco comunicativo, introspectivo.
Talvez
relacionado à morte de Alaor, quando via uma pessoa vesga, sentia dentro do
peito uma compaixão inexplicável, ficando com dó, triste e até deprimido.
Certa
ocasião ao parar em um sinal de trânsito, viu se aproximando um pedinte, que
não tinha as pernas e que se deslocava sobre um pequeno carrinho usando as mãos
para deslocar-se protegidas, por um pano enrolado. Ao se aproximar do carro de
Migio, abriu um sorriso largo, mostrando dentes perfeitos, estendendo uma de
suas mãos, pedindo ajuda. Quando Migio olhou na cara do aleijado, viu que tinha
também os olhos tortos, era estrábico.
Aquilo
foi demais! Ver o aleijado não o impressionou tanto, quanto sua vesguice. Antes
que o sinal abrisse, tirou uma nota de 50, entregando-a ao infeliz! Quando viu a nota, o pedinte ficou olhando-a e
não acreditava, uma vez que todos lhe davam moedinhas pequenas e raramente uma
nota de 2 reais.
— Deus
te ajude! Deus te ajude! gritava
Este fato se repetiu algumas vezes e já havia
pensado em comprar uma cadeira de rodas para o infeliz, mas não mais o encontrava.
Tanto atropelamento nesta avenida, será?
Em
outra ocasião, em sua casa, ocorreu um vazamento da caixa d´água localizada no forro,
“chovendo” dentro da antessala do quarto. Foi demais!
Fechou
o registro geral da água e pela manhã, tendo que ir trabalhar, pediu à esposa
que procurasse o telefone de algum encanador próximo.
Ao voltar para o almoço, viu um carro parado
em frente da casa. Entrou e sua mulher disse ter acabado de pagar ao encanador,
que acabara de sair pelo portão ao lado. Perguntou à mulher se tudo estava bem,
quanto tempo gastara ele para efetuar o serviço e ainda, quanto havia pago.
Quando soube que ela pagara R$ 1.300.00, achou exorbitante, muito caro por um
serviço de hora e meia. Criticou a esposa de ter bancado boba e ter pago tal
quantia sem pestanejar. Saiu rapidamente pela porta da frente e muito bravo,
pisando em brasas, deu a volta pela frente do carro do encanador ainda
presente. Gritou:
— Espera
um pouco aí! Quero falar com você!
Quando se aproximou da janela, o encanador
olhou em sua direção e perguntou:
— O
que foi, patrão?
Quando
Migio o encarou, o homem era vesgo, bem vesgo.
Perdeu suas forças, tornou-se repentinamente
calmo e disse com voz melodiosa:
— Não!
Não! não queria que o senhor fosse embora, sem me despedir! Quero agradecer sua
atenção, presteza e serviço bem executado.
— De- me
seu cartão, para chamá-lo outras vezes. Muito obrigado, meu amigo!
Entrando,
sua mulher perguntou:
—
Conseguiu um desconto, seu bravinho?
— Não!
Lhe dei mais 100, né?
—
Tinha certeza de que você faria isto, o cara era vesgo! Eu te conheço!
Anos
após, Primígio em uma queda, bateu fortemente a parte lateral da cabeça e a órbita.
As pálpebras do olho esquerdo incharam, ficaram roxas, tapando toda a visão
deste lado. Quando a pálpebra desinchou,
sua mulher lhe disse que o seu olho esquerdo estava torto para dentro. Bem que
ele havia percebido que sua visão não estava normal, vendo tudo embaçado e
duplo.
Imediatamente
foi se olhar no espelho, mas, como via tudo duplo, não deu para ver o olho
torto. Ficou desesperado! Ficar vesgo? Tudo menos isto! Não suportaria!
Foi a
um oftalmologista que disse ter ele tido uma paralisia do nervo que mexe o olho
para fora, podia ser passageiro. Se não voltasse ao lugar, podia fazer uma
operação para corrigir. Muito aflito, agarrou o médico pelo avental, perguntando
se não podia fazer a cirurgia no dia seguinte. O médico indicou um tratamento
ortóptico.
Ficou
muito depressivo, angustiado, com o saudoso amigo Alaor não saindo da sua
cabeça. Após dois meses seu olho voltava à posição normal. Ainda bem!
Ajoelhada
a mulher rezava, preocupada em ir logo à Aparecida, cumprir promessa! Graças à
Deus!
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