Acontecimento fora de contexto. - Fernando Braga



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Acontecimento fora de contexto.
Fernando Braga


       Passo a chamá-lo de X9, por me sentir impossibilitado de dizer seu nome.

       Encontrei-me novamente com um grande, querido e inesquecível amigo. Convidou-me para jantar uma sexta feira, sem as respectivas esposas.

       Conheci X9 após termos brilhantemente passado no vestibular e entrado em escola de medicina. Houve uma aproximação normal, uma empatia mútua, logo após as primeiras trocas de ideias. Eu e ele, ao lado de mais três ou quatro colegas formamos um grupo coeso, uma certa panelinha, entre os 66 colegas, agora cursando a anatomia.  Logo, fazíamos parte do grupo de jogadores de futebol, nosso esporte preferido. Em pouco tempo, integrávamos o time principal. Sentávamos próximos nas salas de aula, almoçávamos juntos, estudávamos uns em casa dos outros por ocasião dos exames semestrais, enfim, éramos muito ligados. O amigo X9, era o líder do grupo, programava sempre as nossas saídas em fins de semana, e sem dúvida, entre nós, era o melhor jogador de futebol, também, o mais forte.

       Nossa amizade perdurou todo o tempo de escola. Íamos ao cinema juntos, saíamos nos finais de semana, de carro, a procurar as “minas”, festas, boates, viagens a Santos, etc.

       O tempo passou, cada um seguiu seu caminho após a formatura, mas a amizade manteve-se firme, mesmo após os nossos casamentos, nascimentos de filhos. Nossos encontros persistiram, embora menos frequentes.

       Agora, octogenários, ele um ano mais, ocasionalmente saímos com as esposas para jantarmos. Os outros colegas de nosso grupo, são falecidos e, sentimos prazer quando nós, os derradeiros, nos encontramos.

         Encontrei X9, conforme o combinado e ao vê-lo, após ausência de uns três meses, notei sua fisionomia triste, havia emagrecido, estava abatido, mas mantinha sua espirituosidade. Nos sentamos em um canto do restaurante, que ele escolhera. Cada um pediu o seu uísque favorito, brindamos como nos velhos tempos, pedimos aperitivo e iniciamos nossa conversa, que outrora continha muita recordação. Partindo para a segunda dose, on the rocks, sem que eu esperasse, disse:

      — Quis te encontrar, porque quero revelar-te confidencialmente, um segredo que guardo. Você é o único a quem posso confiá-lo, porque tenho certeza absoluta, que guardará este segredo, entre quatro paredes, não contando nem mesmo para sua esposa.  Ninguém mais sabe o seu conteúdo, nem mesmo minha querida mulher, comigo há 55 anos.

       Notei que titubeou, mas neste momento disse a ele:

       — Vá em frente, X9! Sou todo “ouvidos”! Pode se abrir, porque o que contar ficará apenas entre nós dois!

Muito bem, disse ele:

       — Há exatamente um ano fui ao shopping que sempre frequento. Estava superlotado, difícil de estacionar, procurei uma vaga para idosos e nada encontrei. Ia procurar vaga nos andares superiores, quando a uns 20 metros à minha frente vi um carro com os faróis traseiros acessos e logo imaginei que iria sair. Realmente, o carro manobrou, saiu e imediatamente, enfiei meu carro na vaga. Preparando-me para sair, ouvi um vozeirão gritando junto à traseira de meu carro:

      — Sai daí seu velho safado! Você não conhece as regras do estacionamento! Eu estava 30 metros na frente, esperado por esta vaga! Quer bancar o vivo! Espertinho, né? Pode tirar seu carro daí e rápido. Senão!... 

— Ao ver o cara junto à traseira de meu carro, alto, forte, disposto a me ofender, me agredir. Calmamente peguei um punhal bem pontiagudo, que sempre carrego comigo, coloquei-o na palma da mão direita, virada para trás, escondendo-o. Desci do carro e me aproximei do indivíduo. Ele tinha a cara brava e aproximando-se um pouco mais, disse com voz agressiva:

— Já te falei, não estou brincando, pode tirar seu carro daí! A vaga é minha!

       Interpelei-o, enchendo o peito, mostrando que não tinha medo, apesar de seu tamanho e mocidade e, enfaticamente disse que aquilo não era modo de se falar com alguém mais velho, e que, gritar, ameaçar, não levaria a nada!

      Neste momento, xingou-me de fdp e desferiu-me um soco na lateral da cabeça, que me jogou de lado, vindo em cima de mim.  Foi quando acertei o punhal na mão e sem que percebesse, desferi uma estocada no seu abdômen, que o fez curvar, sair cambaleante e após alguns passos para trás, cair ao solo. Devo ter acertado a sua aorta, para que imediatamente caísse.  Deixei-o caído no chão, entre dois carros estacionados na frente, tranquei meu carro e saí, carregando o punhal, agora escondido. Olhei para os lados, e por incrível que pareça, não vi ninguém. Olhei para ver se havia presença de alguma câmara, mas nada. Saí de fino. Caído, já havia poça de sangue visível a seu lado.

       Desci as escadas, procurei um lavatório onde lavei as mãos, o rosto, e passei água fria sobre o pequeno hematoma que se formara sob o couro cabeludo.  Lavei e enxuguei bem o punhal usando papel higiênico, colocando-o sobre a parede alta da privada.

       Fui à várias lojas, fiz compras para meus netos, minha mulher e para mim comprei um boné que cobrisse o inchaço no crâneo. Depois, tranquilamente fui almoçar e em seguida   fui ao cinema. Não prestei atenção ao filme, de tão nervoso. Voltei ao banheiro, peguei o punhal, colocando-o dentro de um dos pacotes de compra e voltei ao estacionamento por volta das 17,00 horas, carregando todas aquelas sacolas.

       Ao chegar no andar onde estava meu carro, havia movimento popular e um bloqueio por parte da polícia. Perguntei o que estava ocorrendo e me disseram que haviam matado um cara, cujo corpo havia sido levado ao IML. Falei com o guarda, que me acompanhou até meu carro após tomar nota de meu nome, endereço e  placa do carro. Caminhei mancando de uma perna, mostrando dificuldade na marcha.

        X9 continuou:

       — Nada contei para minha mulher, filhos ou outro qualquer. Somente a você.   

     — Nos dias seguintes fiquei muito preocupado que viessem me buscar. Dormia muito mal à noite, pensando no ocorrido, mas em nenhum momento fiquei com peso na consciência por ter matado aquele cara tão agressivo e covarde! Não me convocaram para qualquer testemunho. Li em vários jornais sobre o crime. O rapaz tinha 41 anos, era solteiro e tinha dois boletins de ocorrência, uma por ter agredido a namorada e outro por briga em restaurante.  Até hoje não fui descoberto.

       Precisava confidenciar com alguém, como se estivesse em um confessionário.  Não procurei nenhum padre, mas sim você, meu irmão!
       Continue escutando, disse ele:

       — Você não sabe, mas, há dois meses fui operado de um tumor no pâncreas, muito agressivo e já com metástases. Rejeitei tomar quimio e na última revisão, conversando abertamente com o colega que me operou, ficou evidente que teria eu, um ou dois meses de vida. Minha mulher e filhos tomaram conhecimento.

       — Assim sendo, quero entregar a você este pequeno pacote, que além do punhal assassino, contém uma carta explicando todo o acontecimento e, motivo do crime. Tem o meu nome e o endereço da delegacia do bairro, onde ela deve ser entregue. Basta colocá-la no correio.

       Faço isto para que nenhuma outra pessoa venha a ser incriminada em meu lugar, e há   suspeitos.  Pensam em queima de arquivo. Entregue na delegacia, após minha cremação!

       Ao sair, dei-lhe um forte abraço, um beijo em seu rosto e chorando disse:

       Adeus meu querido X9. Eu teria feito exatamente o que você fez e também, não teria qualquer peso em minha consciência!

       No mês seguinte, dias após sua morte, fui conversar pessoalmente com sua mulher e postei aquele pacote.



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