O
QUARTO HOMEM
Suzana da Cunha Lima
Cheguei em casa
cansada e feliz. A festa tinha sido ótima, dançamos muito, bebemos champanhe à
vontade e ainda fui pedida em casamento.
Três anos juntos com Rubens e não tínhamos ainda oficializado nossa
união, porque brigávamos toda hora: eu por ciúmes e ele pelo vício do carteado.
Mas o amor falou mais alto, as promessas mútuas também e como o relógio
biológico não para, estava mais do que hora de juntarmos nossos trapinhos e
esperanças e irmos morar juntos de vez. Foi
mágica a hora em que ele se resolveu. “Se queremos construir uma família é
agora, Bia. Vamos encarar?” e me beijou com a velha paixão dos primeiros
tempos. Saímos do Clube enlevados um com o outro e não sei como ele não bateu
com o carro em algum poste, de tanto beijo que me dava, mesmo guiando.
Entrei flutuando em
casa e ao mesmo tempo louca para dormir. Danças e emoções fortes cansam muito,
pensei. Fui largando tudo pelo quarto, a bolsinha, sapatos, pulseiras e
brincos, mas quando passei pelo grande espelho da porta, estaquei: a imagem era
de uma mulher descalça com um vestidinho preto .
Faltava algo. A echarpe dourada! Ele tinha comprado para mim em Marrocos e
ela, sozinha, fazia de qualquer
vestidinho preto básico, um traje de coroação.
Aí lembrei-me que eu a tinha deixado numa cadeira, no baile. Não podia perdê-la, ia usá-la numa cerimônia
do dia seguinte, em Búzios, já estávamos com a viagem marcada e devíamos
acordar bem cedo. Fiquei pensando: bom, a festa deve ter acabado, mas sempre há
seguranças pelo Clube e eles recolhem tudo que o povo esquece e levam para a
Portaria. Coloquei umas sapatilhas e um
casaquinho e fui para lá. Era bem perto.
Parei na entrada, e mesmo sem sair do carro,
perguntei ao porteiro se haviam achado alguma echarpe. Ele olhou na prateleira e veio com minha
linda echarpe na mão, dizendo que a
haviam entregue há poucos minutos. Ah, que bom – disse – agora é voltar para
casa e dormir. Segui em frente para
depois pegar a Marginal, de lá era um pulo para casa. Foi quando meu olhar se
deteve num carro estacionado bem na esquina, embaixo de uma árvore. Era o carro do Rubens!
Será - pensei? Olhei a placa e era dele
mesmo. O que estaria fazendo ali naquela
hora? Dali mesmo, liguei para os telefones
fixo e celular dele. Nada! Um caiu na
secretária eletrônica e outro estava desligado.
O velho ciúme tomou
conta de mim. Será que ele tinha alguma amante nos arredores? Pareceu-me pouco
provável, só se ele fosse muito burro. Aí acendeu-se uma luzinha na minha
cabeça. Ou será que ele foi para o carteado do Clube?
Resolvi dar a volta
completa no quarteirão, para ver se havia luz da sala de jogos.
Esta sala dava para a Marginal, onde ficam o
refeitório dos empregados, a lavanderia e área de serviço. Bem
escondidinha. Fui devagar e pude
perceber uma luzinha, no segundo andar.
Então, tinha carteado mesmo!
Parei o carro sem
saber o que fazer, chorando em cima do volante,
atordoada com a ideia de Rubens ter sucumbido ao velho vício. Quando
levantei a cabeça reparei num vulto no portão e parecia estar carregando um
embrulho pesado. Alguma coisa ilegal, com certeza, para ser levada assim, no
meio da noite. Muito estranho, pensei e resolvi telefonar para a polícia,
contando tudo. O Distrito é ali perto,
duas quadras do clube, em minutos eles
chegaram, sem sirena e bem silenciosamente. Pararam o carro atrás do meu e bateram
no meu vidro. Fizeram sinal para eu
ficar quieta e dirigiram-se para lá.
Eu estava inquieta e
apreensiva. Observei que outro homem
surgiu pelo portão de serviço. Parece que o embrulho era pesado e veio ajudar o
companheiro.
Gostei de ver a
presteza dos policiais. Com as mãos no coldre, renderam os dois homens e os
fizeram abrir o embrulho. De onde eu
estava não dava para ver o que era. Logo que foi aberto, eles se entreolharam e
rapidamente algemaram os dois homens. Eu ainda os vi ao rádio. O jogo é sempre
com quatro pessoas. Nenhum daqueles homens era Rubens.
Nestas alturas, um
policial se acercou de mim e me pediu telefone e RG, informando que eu tinha
que ir à Delegacia prestar informações.
“Vai um policial com a senhora no seu carro e ele lhe leva depois em
casa” – informou ele.
Seguimos para
lá. Enquanto eu prestava depoimento, vi
pela janela o carro da polícia chegando com os dois homens algemados. Eu os
conhecia de vista, estavam no clube,
naquela festa. Agradeci por Rubens não ser um deles. Será que neste meio tempo ele já teria
voltado para casa? Não quis telefonar ali na delegacia, aliás, nem queria que a
polícia soubesse que meu noivo possivelmente estava com aqueles dois no carteado. Já bastava eu ainda estar acordada naquela hora, por ter
bancado a boa cidadã.
Comecei a ficar bem
apreensiva, cheia de dúvidas e sem
querer incriminar ninguém, falei o mínimo, mas o medo ia crescendo no meu
peito. Não disse para o delegado que eu estava procurando meu noivo. Ainda bem
que ele viu a echarpe e meu testemunho pareceu válido. Dei a entender que tinha
dado a volta no clube, para pegar a marginal e ir para casa, que era ali
perto. Foi quando eu vi aquele movimento
suspeito e resolvi acionar a polícia. O
delegado agradeceu e mandou alguém comigo para a volta à casa. Já eram três da
manhã.
Cheguei cada vez mais
aflita e antes de pegar o elevador, tentei ligar outra vez para meu noivo e
nenhum telefone tocou. Subi e entrei em
casa sem saber o que pensar. Joguei a bolsinha e a echarpe na poltrona da sala,
quando vi um vulto sentado no sofá. Meu coração disparou. “Psiu, sou eu, não
grite”. Era ele, parecendo mais assustado do que eu.
- Meu Deus, o que
houve, por que está aqui? Sentei perto dele, segurando suas mãos, que estavam
geladas e o abracei. Ele se abraçou comigo chorando, falando depressa e baixo,
não consegui entender quase nada.
Tinha me levado em
casa e resolveu voltar para pegar o carteado que ia começar naquela hora. Vício
é uma coisa danada mesmo... Estavam os quatro jogando quando começou uma
discussão entre os dois mais velhos, e tudo por causa de mulher. Que um tinha
paquerado a mulher do outro, e outras tantas baixarias que ele me poupou de
contar. Numa hora, a coisa saiu do
controle, um deles pegou o taco de bilhar e acertou na cabeça do outro. Foi uma
tacada certeira, ele caiu e lá ficou. Um deles que era médico, constatou a
morte. Eles eram figuras conhecidas na sociedade, com belas carreiras
consolidadas, não podiam ser expostos num julgamento. Afinal, ninguém teve
intenção de matar ninguém, mas o morto estava ali mesmo, na frente deles,
pedindo uma solução rápida. Então combinaram que, para todos os efeitos, eles
nunca estiveram ali, da festa tinham retornado às suas casas. Iam colocar o morto num saco de lixo, e desovar perto da marginal. Pronto!
Rubens ia
ficar para apagar vestígios e desligar a luz. Mais um crime sem solução!
Uma história
terrível, da qual, infelizmente, ele não
iria se salvar. Evidente que os dois que foram presos iam denunciá-lo, no
mínimo por cumplicidade. Rubens era advogado, sabia que a história ia ter
muitas outras implicações, nenhuma boa.
Nem podia dizer que estava na minha
casa na hora do incidente, seria minha palavra contra a deles e, afinal, o
carteado é com quatro jogadores. Fazendo as contas, Rubens era o quarto homem.
Que estava na hora errada num lugar errado, violando promessas e destruindo sua
vida pelo vício. Creio que aprendeu a
lição.
Está acabando de
cumprir sua pena e logo vamos casar.
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