O ANTES E O DEPOIS
Suzana da Cunha Lima
Lúcia estava nas nuvens. Acabava de
se graduar como Engenheira de Projetos e sentia-se como se o mundo fosse seu. E
foi na USP! Gabava-se.
Seu projeto de vida caminhava
conforme planejado e logo ela conseguiu um bom emprego. Com muita dedicação ao
trabalho, alguns meses depois, até mesmo o amor havia surgido em sua vida, após
tantas cabeçadas que havia dado.
Apaixonou-se por Júlio, seu chefe direto,
totalmente encantado com aquela mineirinha esperta de olhos grandes e vivazes.
Fizeram antes um pacto. De só
encomendarem filhos quando ela estivesse com vida profissional já
firmada. Mas nem sempre as coisas acontecem como queremos. Lúcia ficou grávida
antes do planejado e tiveram seu bebê. Ainda estava em licença maternidade
quanto recebeu uma boa proposta de emprego. Ia até ganhar mais do que o marido!
Júlio não se conformou: não queria
que ela aceitasse, queria que ficasse em casa ou voltasse para seu antigo
lugar, onde era seu chefe, debaixo de seu olhar ciumento. Quando a ameaçou de
se separar e ficar com o filho, entornou de vez o caldo.
Lúcia ficou atarantada e sem saber
direito o que fazer. Mas ficar com Júlio não queria mais. Logo que
ele saiu, arrumou umas roupas numa sacola, pegou sua criança, foi ao banco,
retirou todo o dinheiro e fechou a conta.
Estava irritadíssima. Entrou no carro
disposta a tudo: ia para a casa da mãe e depois pensaria melhor. Com os olhos
marejados de raiva, acabou avançando num sinal e foi logo atingida por um
caminhão que nem sequer parou para verificar os estragos.
O acidente foi muito sério e
perigoso. Juntou gente querendo ajudar. Ligaram para a polícia e
ambulância e logo perceberam a dificuldade de se retirar quem estava lá dentro.
E ouviam o choro desesperado de uma criança, com certeza assustada e talvez
muito machucada, mas as portas emperradas dificultavam muito o resgate.
Previa-se um incêndio, pelo
combustível derramado no chão. Um senhor idoso que depois se identificou
como Gregório, tentava desesperadamente entrar no carro. Cenas de puro
desespero.
O jovem Bento, que por ali passava,
notou algo anormal naquela esquina. Parou seu carro perto do carro todo
retorcido e logo percebeu o perigo iminente que se aproximava. Combustível
quente no chão e portas emperradas. O idoso não estava dando conta de abri-las.
Bento pegou uma ferramenta no seu
carro e quebrou as janelas, porém as portas permaneciam fechadas. Viu a criança
chorando e, quase sem pensar, se esgueirou pela janela e conseguiu, com muito
custo, retirá-la de sua cadeirinha. Gregório queria também entrar, mas
Bento lhe entregou a criança e ordenou. Corre daqui, vai explodir!
Mas ao sair pela janela estilhaçada,
notou um leve movimento de mão na mulher que estava no banco dianteiro,
debruçada no volante e que nem mesmo percebera no afã de salvar a criança.
— Tem uma mulher aqui, gritou,
tentando puxá-la para fora pela janela por onde entrara. Ela está viva!
— Cai fora! Alertou Gregório,
ofegante, já longe do perigo, com o menino nos braços – Isso tudo vai explodir
agora.
E realmente explodiu.
E lembrando dessa cena
macabra anos depois, ao passar claudicante por aquela fatídica esquina,
Bento não conteve as lágrimas. Ainda não se acostumara com sua perna
mecânica, herança daquela tarde de heroísmo e lamentações. Seus projetos de
vida tinham virado pó. Futebol, esportes radicais, escaladas, dançar
tango, levar uma mulher nos braços. Nada disso seria possível para Bento.
Salvara uma vida, verdade, e uma
vida é uma vida. Mas saber depois da história toda, da crise de
histerismo de Lúcia e sua irresponsabilidade ao guiar desvairada pelo trânsito
de São Paulo, tinha o dom de ressuscitar o ódio que sentira ao olhar para o
lugar vazio no lençol quando lhe amputaram a perna.
A única satisfação que sentia era por
salvar a vida da criança, Daniel, agora um menino forte, de quatro anos.
Até mesmo Gregório tinha ido
embora. Seu coração não aguentara o pavor de ver o carro explodir, com
sua filha dentro. Não percebera que Bento a tinha salvo. E mais ainda,
que por conta de seu heroísmo, não livrara a perna a tempo daquele automóvel em
chamas. Até achou que ele também explodira junto.
Mas Gregório não tinha perdas a lamentar.
Sua filha e seu neto haviam se salvado.
Bento, no entanto, que nem conhecia a
família e tinha um futuro promissor, acabou pagando uma conta que não era sua e
não havia vida suficiente pela frente que lhe compensasse tamanha perda.
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