A ERA DA ALEGRIA
Deonísio da Silva *
Uma coisa era uma coisa.
O povo do livro se recolhia para ler e estudar, ouvir outros tipos de
música. Havia livros, revistas, jornais, bibliotecas, livrarias e enfim parecem
mais vívidas em minha memória as coisas escritas e os silêncios.
Todavia é preciso dar o devido desconto porque o barulho e os ágrafos
nunca foram tão poderosos quanto o são hoje, pois os bárbaros voltaram e querem
subjugar a todos, restando-nos o refúgio até que passe a tempestade.
Nas galerias e museus, havia quadros, pinturas e esculturas que falavam
ou até soluçavam, dependendo do repertório da vida interior de cada pessoa.
Sim, vocês podem não acreditar, mas a vida interior das pessoas não era
assim tão escassa e seu fogo era atiçado pelo que viam, ouviam, liam e
contemplavam, recolhidas, sós ou agrupadas em teatros, cinemas, salas de
música, igrejas, templos etc. Ou por outros ventos, como passeios, excursões,
viagens, férias, fins de semana. E sobretudo na vida escolar ou universitária.
Outra coisa era outra coisa.
Na hora de outras alegrias, como a da dança acompanhada de canções,
talvez aparecessem pernas e calcinhas, mas este não era o propósito.
Imperava o gosto por outras músicas, que eram ouvidas enquanto o corpo
falava de outros modos e sem o controle ou orientação de nenhum "personal
music" ou "personal dance". Você não estava treinando para
depois se exibir e, sim, para divertir-se. Suar, você suava, como no trabalho
para ganhar e manter a vida.
Cada pessoa se mexia ou se sacudia como melhor lhe aprouvesse, com
naturalidade.
Seios e bumbuns estavam guardados em lugares que lhes garantiam que a
porta somente seria aberta a quem as mulheres escolhessem ou acolhessem, caso
escolhidas.
Aves, tais como pintos ou pintainhos, rolas ou outros pássaros, que não
fossem do galinheiro ou da campina, estavam guardados e protegidos em cuecas
onde poderiam crescer e viver viçosos, sem o escândalo e sem o exagero de
calças muito apertadas.
Não era de bom tom designar a mulher ou partes destacadas de seu corpo
por palavras semelhantes às dirigidas aos bichos de terreiros e pastos
(galinha, vaca) ou dos banhados (perereca). Não! As comparações vinham com
certas flores do jardim ou frutas do pomar.
Afinal, no arquétipo dos mitos, Adão, mesmo tentado por cobra, mas não
por perereca, comera uma fruta: a maçã oferecida, não tomada das mãos e posse
de Eva, que a recebera por doação indevida da serpente, que a roubara de um
pomar que não era dos três. O dono era Deus.
Ainda assim, Adão e Eva tinham buscado outros sabores, cores e odores do
saber, sem excluir o sexo, naturalmente, que, embora, incluído, não é eterno
como o saber.
A aproximação podia ser visual, olfativa, tátil ou por outra química. E
talvez por outros propósitos naturais, alguns inconscientes, mas nenhum
ofensivo à mulher, que, claro, sempre teve atrações em seu parquinho, com
entrada grátis a quem ELA escolhia, pois a entrada deveria ser concedida por
amor ou algum sentimento assemelhado, tudo mediado por outras afinidades mais
abrangentes, como as nossas inevitáveis transcendências.
O homem, feito do pó da terra, ao pó voltará, mas o Espírito sempre vai
soprar sobre ele neste breve intervalo entre o berço e o túmulo. O mistério é
se haverá vida depois da morte, mas já há bilhões de provas de morte depois da
vida, sobejamente documentadas.
Nesses tempos dos verdes anos de nossa idade, nossa força e nosso vigor,
tomava-se cuidado para evitar a vulgaridade. E o mimeógrafo ficava na
secretaria das escolas, não no meio das pernas.
As orientações sexuais escolhidas não eram proclamadas. Diziam respeito
à vida privada de cada qual, outro território sagrado, não proibido à
bisbilhotagem, mas era recomendado respeitar a vida alheia.
Era imperdoável apenas o oitavo pecado capital, que, aliás, nem tinha
sido previsto, de tão abominável por prejudicar o próximo, não o pecador. Os
outros pecados capitais prejudicam apenas a quem os comete, de que são exemplos
sobretudo a inveja, a avareza e a gula. O invejoso perde muito tempo no afã
inútil de impedir o êxito do próximo. O avarento comporta-se como se fosse
néscio e desconhecesse que, se "time is money", "money is not
time": mesmo de posse de muito dinheiro, este lhe permitirá viver sem
trabalhar, mas não lhe vai acrescentar nenhum minuto de vida.
Quem lê não o faz apenas por prazer. Com quem escreve dá-se algo
semelhante. Todos lemos ou escrevemos por outros motivos, alguns dos quais
permanecem ocultos para uns e outros.
Resta-nos proclamar que, se ouvir é essencial para falar, ler é
igualmente indispensável a escrever.
Neste dia de Pentecostes e do Defensor Público, lembro por fim que
escritores têm também este papel iluminador: defender o recolhimento e o
convívio social, que, diferentemente do que podem pensar os vulgos, não se
opõem.
A boca fala do que é abundante no coração. Em latim, "ex abundantia
cordis os loquitur". E o Espírito sopra onde e sobre quem quer, sem se
preocupar com aqueles que o ouvem ou leem, que estes são livres para escolher.
Lalá, a calopsita, sempre cantou até partir. Foi meu modelo para muitas
coisas, incluindo a alegria de viver. Sabia também a hora de recolher-se a seus
penates.
* DEONÍSIO DA SILVA é professor e
escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo
Editorial Almedina.
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