Joaquim
e o objeto estranho.
Oswaldo U. Lopes
Joaquim era um jovem e promissor advogado. Conhecia
leis e suas aplicações como ninguém. Não era o primeiro da turma, era mais do
que isso. Era capaz de produzir textos brilhantes defendendo pontos de vista
diferentes dos corriqueiros, mas tinha hábitos no mínimo estranhos. Andava
sempre de terno com um coldre vazio debaixo do braço. Quem já viu um filme do
007 sabe do que estou falando. A Beretta 9mm, que cabia lá dentro, morava num cofre
de banco. Além de uma conta muito recheada, ele tinha sempre consigo a chave do
pequeno cofre onde a Beretta morava. Eu e todo mundo que sabia, achava
estranho, muito estranho. Poucos ousavam perguntar e no mais das vezes ouviam
um rugido de volta.
Cidade
violenta? De acordo, mas e daí? O coldre estava quase sempre vazio, o banco
tinha horário, abre e fecha. Os assaltos, a vida doida da cidade não tinha. Que
raios ia Joaquim fazer com a pistola que só via no máximo uma vez por mês?
E assim iam decorrendo os tempos, ele trabalhando
muito, tendo muito sucesso. Como é que a história conseguiu seu término ou pelo
menos que parte do mistério fosse desfeita? L’amore sempre ele, gostou da moça,
de nome Rosa Maria, ela gostou dele. Profissão a mesma. Prédio onde
trabalhavam, o mesmo. Pensaram o mesmo, uma boa hora para casar, mas havia o
mistério, pelo menos para ela ele ia ter que revelar o mistério da Beretta no
banco.
E foi o que ele fez, foram juntos ao banco,
cadastrou-a, entraram juntos na parte dos cofres. O cara que acompanhava pôs a
chave dele e saiu. Ela viu, além da famosa pistola, um papel amarelado nos
fundos da caixa. Ele pegou o papel e desdobrou-o para que ela lesse. Apesar de
alguma dificuldade, como todo paulistano, ela pode ler o notável escrito em
italiano culto ou quase.
É um fato
curioso. Em São Paulo, a população de classe média, quase toda, descende ou tem
relações com os italianos e acha que pode conversar ou se fazer entender na
língua de Dante. A vida para eles segue assim até que chega uma correspondência
do Consulado Italiano a respeito da próxima eleição. Já vi muita gente, de uma
bela ascendência peninsulare, tropeçar na corrida para o dicionário. Que bela
cosa... Não se vota na Itália cantando canções italianas.
Bem, ela pegou o papel que não era um papel comum,
mas mais lembrava um pergaminho desses antigos, e foi lendo numa escrita linda
feita à mão com tinta Nanquim, desde cima, onde se viam dois escudetos:
No canto esquerdo, um amarelo com cruz azul com os
dizeres “Avia Pervia” Província de Modena, lembrou da Ferrari, mas não notou
cavalinho.
O outro no canto direito, num azul mais leve,
bonito, coroa ducal onde se lia Comune de Montese e tem umas folhas
entrelaçadas embaixo. Se tivesse feito agronomia e não direito, talvez pudesse
identificar, achou bonito e só.
Aí vinha o texto, como já dito, muito bem escrito,
com caligrafia a tinta:
“A todos quantos este virem, saibam que no dia 15
de abril de 1945 a comuna de Montese foi libertada dos brutais invasori
tedeschi, pela Força Expedicionária Brasileira, que era comandada pelo major
Joaquim Santino Rodrigues. Ele contou com a ajuda dos Partigianni locais
comandados pelo capitão Enzo Salvatore. O major participou e comandou o assalto
final, levando consigo a pistola Beretta que o capitão Enzo lhe dera,
reforçando ainda mais a extraordinária amizade que se formou, entre os
expedicionários brasileiros e seus companheiros italianos. Montese, 8 de maio
de 1945.”
Seguiam-se
assinaturas que lhe pareceram de autoridades locais. Muita coisa ainda
precisava ser entendida, mas a maior parte já era visível. Porque Joaquim
chamava-se Joaquim Santino Rodrigues Neto, porque a Beretta era tão estimada.
Porque até hoje as crianças de Montese cantam no dia 15 de abril o Hino do
Expedicionário Brasileiro e agitam bandeiras brasileiras com a cobra fumando.
Um porquê mais lindo que o outro, apesar dos horrores e misérias da guerra.
Crônica singela e muito bela, pelo conteúdo dela, que honra mais a amizade do que funestas guerras.
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