NA
VILA
Mario Augusto
Machado Pinto
A mudança para a casa 117 da nossa vila foi
despercebida contrastando com a saída do pessoal da família Molina que teve
almoço de despedida, abraços, beijos – aproveitei pra tirar umas casquinhas com
a Neide – e até presentes.
Não vimos ninguém dos novos vizinhos chegar,
só tranqueira doméstica, móveis esquisitos, todos escuros com tecido preto nos
estofados. A Dona Zuleica diz que pelo que viu das coisas caseiras deve ser
pessoal de posses, não milionários, mas família muito bem posta e, pela
quantidade de vasos e plantas, deve gostar de flores; então deve ser gente boa.
No dia seguinte ao da mudança, as persianas
ficaram abaixadas e afastadas dos batentes, as vidraças fechadas, o que impedia
de ver qualquer coisa do lado de dentro. Ninguém viu ou ouviu: só a Dona Zuleica.
— Já falei que não vi ninguém e vamos parar com essas perguntas bobas. Gofredo,
o malandro do meu filho, xereta como ele só, está fuçando. Vamos esperar ele
contar.
O Fredão pode descobrir, ele é fuçador,
arma poucas e boas e, não sei como, descobre. Acho que é porque não tem
vergonha das bobagens que faz. Pra ele tudo vale e pode ser feito.
O tempo foi passando e da 117 a gente só
via duas empregadas muito simpáticas e risonhas carregando pacotes e latas. De
resto, nada. Um dia Fredão chegou pra mim sugerindo que já tinha um plano
pronto pra descobrir. Ele não disse “tentar descobrir”, disse “descobrir”. Dá para
entender a figura, não dá? Precisava de um ajudante, e me escolheu.
— Olha Fredão pode contar, vou escutar, mas
não vou me meter nas suas maluquices.
— Não julgue antes de saber. Vem comigo. Tá
de tênis? Tá bom. Vamos.
Entramos pela casa dele e fomos direto ao
sótão subindo por uma escada que ele já havia colocado antes. Fechou a tampa do sótão e aí eu vi o que lá
em cima parecia um calçadão com alguns obstáculos. Não há separação
correspondente a cada casa. Explico: a Vila Coentrão aqui da Rua Chile 117 é
composta de 14 casas, sete de cada lado da rua de entrada, geminadas parede a
parede, numeradas 117, 117 A, 117 B, etc. Cada uma tem na parte de cima dois
quartos e uma suíte grande. Fomos até o teto da 117. A 117 A é onde mora o Fredão. Sentamos na laje
e eu disse pra ele falar rápido que eu queria ir embora logo.
— Vou falar, mas quando acabar Você não vai
querer ir embora, não.
Lembra que a 117 ficou um tempão sem alugar?
Pois é. Um belo dia subi ao teto para prender a boia da caixa de água lá de
casa e vi esse avenidão aqui em cima. Vinha fumar um baseado e um dia me lembrei
de um filme em que um espião, do teto de uma casa, vigiava a sala de um general
usando uma micro câmera. Isso me martelou a cabeça durante um tempão. Sabe,
aquele negócio faço, não faço? Resolvi fazer. Eta capeta! E fiz. Instalei bem
escondidinha a micro e o gravador enquanto a casa ficou desalugada. Está tudo
pronto. É só gravar. OK?
-E eu o que faço?
-Lembra? Eu disse que Você não ia querer ir
embora. Grava. Nós nos alternamos: um de cada vez.
— E quando...
— Hoje. Tá bom?
— Tá, mas como Você sabe a hora pra ver?
— Ora seu Zé Migué, pra pescar você não
espera o peixe? Temos que esperar. Só olhei durante o dia, mas não gravei.
Agora à noite gravamos. Você faz a parceria, tá?
Lá pelas nove subimos e gravamos o que a
câmera transmitiu. As imagens eram muito escuras... Não tinha luz acesa!
Achamos que a iluminação era só a do luar que passava pelas telhas de vidro. Pô,
que méldia! Filmamos outras vezes e o
resultado foi sempre igual. Só uns vultos fazendo sinais para o teto do
corredor onde estava a câmera. Aí o Fredão resolveu falar com as duas
empregadas quando elas iam fazer compras. Falou várias vezes e sempre dizia que
era muito simpática, a família era muito boa, etc. E a gritaria de brigas,
barulho de coisas atiradas contra as paredes? Não era nada. As filhas gostavam
de atirar coisas, de gritar, imitar choradeiras, etc. Achamos estranho, mas
cada um faz o que quer dentro da sua casa. Hoje ele disse que ia fazer
perguntas sobre cada um da família. Falou novamente e vi que depois de um tempo
de conversa ele gesticulava, gritava com elas e saiu correndo da vila. Voltou á
noitinha, me telefonou e fomos ao sótão da casa dele.
— E aí, cara. Conta! O que aconteceu?
— Isso só podia acontecer comigo. Parece
que fui escolhido pra ser o bobão. Você não vai acreditar!
— O que aconteceu, cara? Deixa a choradeira
pra depois!
— Você não vai acreditar... Não vai
acreditar... É demais!
— Se você contar eu acredito.
— É coisa de louco de pedra! O pessoal é cego.
Só o pai enxerga!!! Já imaginou?
Não dava mesmo pra acreditar. Eu não sabia
o que dizer ou fazer. O Fredão dava murros na caixa d’água. A verdade é que não
me arrebentei de rir só por respeito ao Fredão. Ó meu! Que coisa mais surreal!! Não dava pra pensar em nada.
Ficamos ali, os dois bobocas encostados na caixa
d’água olhando as telhas de vidro. A lua agigantava-se no céu azul esmaecido,
ressaltada pelo brilho de tantas estrelas. Foi quando um riso alto e
contagiante pode ser ouvido vindo da residência do numero 117 da Rua Chile.
Parecia que finalmente a fantástica história daqueles simpáticos moradores
estava tomando um rumo harmonioso. Pela varanda podiam ser vistas sombras que
se formavam com o clarão da lua, sombras que caminhavam disformes. Brincavam,
de tão felizes.
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