Dito o Caçador
Dito já passava dos trinta anos, corpo avantajado
demonstrando ótima saúde, feição mulata de pele curtida de sol contrastando com
o sorriso aberto e carismático. Era filho único, morava sozinho desde que perdera
os pais e nunca se aventurou em um casamento, pois acostumado ao seu ritmo de
vida, acreditava que uma esposa o atrapalharia na manutenção do seu sossego. Vivia
num sítio na cidade de Pocinhos − Minas Gerais, herdado dos pais, em uma
casa simples, porém, bem construída de alvenaria, toda avarandada, no alto de um
morro com frondosas árvores e vista para o pasto de capim gordura com poucas,
mas bem tratadas vacas leiteiras, bois de corte, cabritos e cavalos que eram separados,
por uma vistosa cerca viva, do pomar e da horta onde cresciam vários tipos de frutas,
hortaliças e legumes.
Vivia financeiramente bem, sustentado pela
pequena produção agropecuária comercializada na cooperativa da cidade. Era um caçador
audacioso e quando se propunha à caçada, levava pelo menos dois dias embrenhado
na mata.
Naquele dia, Dito pulou da cama com os
primeiros pios das perdizes e codornas que atravessavam seu quintal em correria
para beber água no riacho que corta seu sitio vindo da nascente na Serra das Capivaras
e desaguando, seis quilômetros depois, no rio Pocinhos que dá nome à cidade.
Vez ou outra esse piar das aves é cortado pelos gritos agudos dos bugios, pelo cacarejar
dos galos e galinhas, pelos latidos dos cachorros e principalmente pelo
relinchar angustiante do velho burrinho “Brinquinho” presente do avô no seu
décimo aniversário.
Olhou ansioso pela janela e entusiasmou
com o sol insistindo em dar, pelas frestas, seu ar da graça. Apanhou a mochila,
preparada de véspera, e passou pela cozinha pra preparar o café que nessa manhã
seria reforçado, pois teria pela frente uma caminhada bem íngreme até atingir o
pico da Serra, local onde ele e seu pai, também exímio caçador, abriram a facão
e enxada uma clareira para montar acampamento que serve de base para os dias de
caça. No meio do desmate, ergue-se a torre de vigília que resiste ao tempo orgulhosa
das presas que ajudou a abater. Todo ano, quando a saudade do pai lhe aperta o
peito e o corpo pede emoções fora da rotina, ele prepara a mochila com duas
mudas de roupa, cobertas pra chuva e frio, utensílios básicos: lanterna, velas,
canivete, a corrente com a medalha sagrada da Virgem que pendura no pescoço – presente
da mãe que fazia questão que a portasse dado aos boatos que nos altos da Serra se escondem maus
espíritos; remédios contra picadas de mosquitos − malária,
cobra, aranha e outros bichos
peçonhentos e também pra dores de cabeça e barriga. Num bornal guarda os
alimentos, muitos preparado por ele mesmo, orgânicos do seu sitio e de maior
durabilidade. Presta atenção para não esquecer o pó de café forte, açúcar
mascavo, queijo de cura, pão de batata e, para os dias chuvosos e friorentos, aquela
pinga clarinha do alambique do vizinho Teodoro. A tiracolo a espingarda calibre
22 para aves (perdiz, codorna, macuco, jacu), e a calibre 12 para animais de médio
a grande porte (bugio, javali, cateto, jaguatirica, anta), o facão de lâmina
cumprida pra limpeza do mato e para defesa. Leva consigo também a esperança de
dar de cara com uma onça pintada, porém não para matar, mas sim para sentir a
glória de vencer a tremedeira nas pernas, e no gatilho e de ter papo pra contar
na roda de carteado do boteco do Zé. Todos os preparativos são planejados
minuciosamente e com a devida antecedência como manda a bom estilo mineiro.
Sem imprevistos na subida da Serra, Dito
capina o mato crescido na clareira, monta a barraca, descarrega a bagagem e
munido de café, aguardente e pão senta na pedra ajeitada de banco, aspira forte
o ar puro e úmido da mata e o expira nas recordações quando ele, pai e avô,
sentados no mesmo local, trocavam ideias sobre as estratégias da caçada. Depois
do cigarrinho de palha, sentindo-se restabelecido do esforço da subida da
Serra, subiu à torre de vigília para sentir a direção do vento afim de se
posicionar corretamente quando em ação e para vasculhar o céu a procura de alguma
ave de rapina atrás de uma presa.
Ao entrar numa das trilhas que partem do
acampamento, seu tino observador deu alerta de pegadas de catetos prensadas no
barro fresco. Hum! Pensou, as próximas refeições já estão garantidas... Pelo
sentido das pegadas os catetos estariam voltando do riacho em direção à toca, o
que significava que na manhã seguinte fariam o caminho inverso. E foi pensando:
Preciso pelo menos abater dois, um pra mim e outro para destrinchar e fazer de
isca para um bichão dos grandes (quem sabe uma jaguatirica ou uma pintada?).
Pro jantar de hoje me contento com churrasco de tatu que já faz tempo que não
como. Carne branca e macia temperada com sal grosso e limão, verdadeira iguaria
dessas bandas!
Na manhã seguinte repete a rotina do
café forte e doce com pão de queijo e pega a trilha com os sentidos atentos pra
qualquer ruído ou odor vindos da mata. Depois de um ziguezague de sobe e desce
ouve os primeiros grunhidos de catetos juntamente com o farfalhar da vegetação.
Se amoita atrás de um arbusto propício para o tiro com olhos fixos na mira da
espingarda, respiração silenciosa e dedo tenso no gatilho quando ouve atrás de
si um pisar leve em gravetos e folhas secas. Vira surpreso e dá de cara com um sujeito de
aspecto estranho vestindo terno, gravata e sapato social num contraste surreal com
o ambiente reinante. Na mão segura uma maleta preta lustrosa. Dito desarma a
espingarda com cuidado, saliva a boca seca pela expectativa do tiro e pela
surpresa do vulto estranho ao mesmo tempo aperta a medalha da mãe no peito para
proteção contra maus espíritos. Porém a aparência asseada e serena do sujeito, irradiando
ares de educação e de letras, transmite certa confiança o que faz Dito segurar
o temor e indagar:
− O
amigo está perdido, procurando algo? Talvez possa ajudar...
− Não, obrigado. Reponde o intruso. Acabo de chegar da minha terra
“República do Des” e estou me habituando com o ambiente totalmente diferente do
meu.
Dito franze o rosto, coça a orelha para certificar que está ouvindo
bem e continua:
− Não me leve a mal, tenho pouca escola, mas dessa terra nunca
ouvi falar. Deve ser bem longe daqui, lá pras bandas do Sul, pois seu traje, parecidos com os que vejo nas revistas
desfolhadas no boteco do Zé, de gente graúda dos negócios e da política − indicam
que dessas bandas de cá e das do Norte é que não é...
− Venho de Brasília, Capital da República, e estou sofrendo de
profunda depressão, mal consigo respirar, pela angústia que me dá ver e sentir os
poderes da República, ditos guardiões da Constituição, serem responsáveis por tanta
desordem, desconsideração, desprezo, desrespeito, desconfiança, desaforo,
desculpas descabidas que dariam para reescrever a faixa da Bandeira Nacional para
“Desordem e Retrocesso”. Então pedi ajuda ao meu padrinho e protetor que me
enviasse a um lugar sossegado, de natureza virgem, com ar puro e águas limpas, na
esperança de recuperar minha identidade, meu orgulho brasileiro. Só não
esperava que ele fosse exagerar e me largar no meio de uma mata virgem longe de
qualquer vestígio de civilização.
Dito ainda surpreso e agora também confuso, sem entender os
relatos para ele sem pé nem cabeça, resolve continuar o diálogo com coisas
plausíveis:
− Tudo isso que está procurando, aqui tem até demais, de cansar o
espírito, o corpo e a cuca. Por aqui o tempo passa mais devagar que em outros
lugares. Algumas vezes tenho vontade de me largar por esse mundão afora,
conhecer o que Deus colocou nos outros cantos. Sinto falta da comparação com
outros lugares e pessoas pra saber se realmente tenho uma vida boa aqui ou se estou
perdendo tempo precioso no lugar errado. Apesar da paisagem bonita com ar,
água, sossego de primeira, noto que o viajante se encanta, mas não fica.
− Neste sentido, interrompe
o desconhecido, peço sua licença para lhe propor uma ideia que me veio de
momento:
Por que não trocamos de endereço, de cidade? Eu ganho de volta minha
paz, meu ego, meu sossego e você tira sua dúvida se está vivendo no lugar
certo.
Tião, surpreendido pela proposta, coça a cabeça observando o
proponente com cautela, sem deixar de lado a desconfiança mineira, e responde:
− Sua proposta é de fundir a cabeça! Mas, como diz o velho ditado,
quem não arrisca não petisca! Por aqui minha caça se assustou e fugiu, tão logo
não volta. O tiro fatal vai ter de esperar. Além disso, o dia promete muita chuva
e frio de tinir os ossos da cabeça aos pés. Caçar é um sacrifício que só mesmo
os amantes do tiro, da aventura de decidir entre a vida e a morte, suportam. E
também não posso abandoná-lo nessa situação de perdição, pois corre risco de
morrer de frio ou de se perder na mata sem possibilidade de socorro. A trilha
de volta tem muitos desvios e só quem a conhece bem consegue atravessá-la. Então,
o melhor a fazer é levantar acampamento e convidá-lo a conhecer meu sítio humilde,
mas que tem o básico para sobreviver. Dá pra passar uns dias para sentir a vida
por aqui e se vai conseguir se adaptar no longo prazo. Enquanto isso matuto um
pouco mais sobre sua proposta maluca. Se aceitar, e estou quase lá, ponho uma
condição, pois de Brasília só conheço o nome:
“Se a experiência não der certo, ficam as portas das casas abertas
para retorno ou visita do outro sem data marcada nem período de permanência definido”.
−Ótimo! Creio que o amigo acaba de aceitar minha proposta com final
de ouro mineiro, exclama o “aparecido” com satisfação.
Passados três anos, vamos encontrar Dito de terno e gravata
sentado numa cadeira do Congresso Nacional rodeado de colegas do “Partido de
Reconstrução Nacional (PRN)” que o acabaram de eleger seu presidente. Ao
assinar o termo de posse, com caligrafia trêmula, sua mente, como um raio, traz
para si o dia da chegada à Brasília na carroceria de um pau de arara com tontura
pela loucura da cidade grande, o vaivém entrelaçado
de pessoas, carros, ônibus, metrô, todos numa pressa tal qual caminho de
formigueiro e, por cima, o sentimento despido de qualquer sentido de orientação
sem saber que rumo tomar para chegar no endereço que o “estranho” da Serra lhe
dera com o recado expresso de: “Cuidado, com cidade grande não se brinca!”, aperta
no peito a medalha da mãe e no bolso, embrulhado
num lenço, o dinheiro que recebera pela venda dos animais junto com o canivete que
sempre lhe transmite calma e segurança. O motorista do caminhão nota sua
indecisão, e experiente com tais situações, dado ao transporte de milhares de
candangos recém-chegados, lhe dá orientações sobre quais ônibus e onde tomá-los
pra chegar no destino desejado. A casa é ampla, confortável, de bom gosto,
indicando que seu proprietário possui posição social de bom nível.
Aos poucos Dito vai perdendo o cheiro do mato, recuperando a
confiança e perguntando menos as direções a seguir para as visitas aos pontos
turísticos da cidade que o amigo “surgido na Serra” recomendou como imperdível
e a outros como necessários para sua introdução ao cotidiano da cidade. E foi num
desses lugares na periferia – Vila Ceilândia − que Dito se sentiu bem à vontade,
perdeu a timidez e, entre um e outro bate-papo no boteco “Pinga Mineira”, regado
com torresmo e cachaça da terra, fez os primeiros amigos, entre eles um
conterrâneo de Pocinhos, colega de turma do Grupo Escolar Tiradentes − chamado
Pedro − com o qual a amizade se entrosou pois relembravam as professoras, as
folias na sala de aula, os amigos da turma e as brigas no recreio sem falar das
“peladas” no campinho de futebol ao lado. Esta amizade não só lhe cortou a raiz
da saudade que lhe estava crescendo na alma, como também lhe abriu a porta da
escalada vertiginosa na política. Pedro não só era bem relacionado na Vila Ceilândia,
como também nos bairros adjacentes e, por trabalhar na área da construção civil,
fazia parte do sindicado da construção civil, o qual, por sua vez, era paparicado
por vários partidos políticos. Não precisou de muitos “bate-papos” para que Pedro
percebesse que Dito tinha um “que”, um dom de empatia com terceiros pela sua
figura simpática, bem asseada, humilde, de modos educados e sobretudo um jeito
de se expressar claro num linguajar popular sem pedantismo, que convencia quem o
escutasse. Pensando também no seu futuro – uma eventual “ajuda” caso
Dito fizesse sucesso − Pedro arrumou para ele um emprego de terceiro secretário
do sindicato, posto com bastante contato com o público o qual saberia valorizar
os seus dotes de relações públicas. Esse foi o chute inicial, driblando com
maestria no campo adversário, para o gol da sua nomeação como presidente do “Partido
de Reconstrução Nacional” com chances, em coalizão com outros partidos da mesma
linha ideológica e com crescente apoio nas redes sociais, de vir a ser eleito
Presidente do Congresso Nacional, fortalecendo assim suas propostas de campanha
de reconstrução e saneamento do cenário político brasileiro.
No
lado oposto da medalha, encontramos o amigo “aparecido” deitado sonolento na
relva macia à margem do riacho meditando: “Desde que chequei aqui não canso de
admirar a beleza do lugar. É realmente para se deitar no chão e se acabar...
Pena que meu protetor e padrinho não me dá sossego, sempre me enviando para ajudar
alguém com potencial de contribuir para o bem da sociedade, a assumir tal
tarefa, mas que, para tanto, precisa de uma “ajudazinha” daquele que os humanos
gostam de mencionar em suas narrativas, livros, contos, poesias como o
responsável pelo desenrolar das coisas do seu nascer até seu final e o chamam,
sem muito refletir, de:
Destino”
...
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