O RETRATO
Mario Augusto Machado Pinto
— ...É como lhe disse: recebi pelo correio ontem à
tarde. Estava em meu nome e sem remetente. Veio bem protegida num tubo de
papelão. Mas o conteúdo não parece ser para mim. Trata-se de uma pintura estilo
renascentista contendo a figura de um jovem usando chapéu e um sobretudo com
pelagem na gola, o modelo olhando diretamente para quem está diante da tela.
— Pera
aí. Em primeiro lugar: como não consta o nome do remetente? Não passaria pelo
funcionário atendente do correio. Em segundo lugar: sei que é sua seara, mas tem
certeza que é renascentista? Como reconhece?
— Pelas pinceladas; parecem mistas, com toques da
arte flamenga.
— Detalhe
o tema. Talvez conheça o motivo e daí poderia chegar ao autor.
— Ele está segurando uma flauta e os dedos
posicionados para tocá-la. Há um livro aberto diante dele, e um papel fixado na
parede. O homem não sorri, é profundamente sério, mas parece querer dizer algo.
Não encontrei a assinatura do autor.
— Procurou
bem? Na roupa do retratado? Como é de pessoa vestida poderia estar numa dobra
da manga, por exemplo. Por falar nisso: você falou chapéu; não seria um tipo de
boina?
— Não está. Sim parece tipo boina. Há uma coisa que
me intriga: são sinais desenhados e palavras manuscritas no verso da tela.
Suponho tratar-se de algo em código. Talvez seja alguma informação
sobre a obra, ou sobre quem a enviou... Não sei. Precisaria um especialista
para decifrá-los?
— Gudrum:
não faça nada. Talvez eu possa. Vou praí e decidiremos o que fazer. Tudo bem?
— Tudo. Venha. Tô lhe esperando. Sirvo um licor de
tangerina. Té já.
Que coisa mais esquisita! Mais um probleminha pra resolver. Isso sempre
acontece com Gudrum.
Ainda bem
que não há muito trânsito devido às férias. Com o calor de hoje, nas filas do
trafego em dia comum seria suadouro ou batida no vidro da porta do carro e um
“passa o tútú aí, ô dotô”.
Gudrum
sempre dá atenção: tá na porta e deixou vaga disponível pra estacionar.
— Oi, que calor, hein? Entra, entra.
Após pegar minha maleta de trabalho, entro. Ar
condicionado ligado, ambiente acolhedor, estofados, algumas pequenas esculturas
pelos móveis da saleta, fotos antigas, peças de coleção de garrafas de cristal,
lindas e sem jaça!
— E
a tela, onde está?
— Ali no encosto do sofá. Deixa tirar o pano.
Pronto! Tá vendo bem?
Não. Não estava. Levantei-me e fui até o sofá.
Peguei a tela, senti seu peso e textura, a
pequeníssima aspereza das tintas nas pinceladas. Admirei o trabalho com olhos
críticos. Não me era estranha, desconhecida. Virei a tela e vi os tais sinais
manuscritos: uma série de pequenos traços feitos com trinta azul como lados de
um quadrado; sempre dois traços formando diferentes ângulos e um ponto entre
eles. Nenhum formava um quadrado completo. Abaixo deles algumas palavras.
— Gudrum,
me dá aquele seu espelho grande. Vamos ver se deciframos o que está escrito.
Não adiantou muito ter colocado o espelho à frente
da tela. Inverti a posição. Pedi o “fio da luz” e a lupa grande. Aí deu para
ver melhor ficando mais nítidos os tais traços e pontos; várias palavras
esmaecidas com escrita interrompida “sugerindo” nomes, algumas letras isoladas
e um rabisco. Seria assinatura?
Estava muito difícil decifrar mesmo aplicando as
mais diversas tentativas técnicas visuais; não conseguia resultado. Estava
limitado, sem aparelhos importantes. De repente, do nada, lembrei-me de Huang
Jiang, chinês de Hong Kong, negociante de arte que conheci quando estivemos em
Hong Kong no ano passado. Ele talvez pudesse ajudar.
— Gudrum,
entra na Internet e vê se consegue o número do fone do Huang Jiang , em Hong
Kong. Lembra-se dele? Quando fomos a Dafen,
perto de Shenzhen. Liga e me dá o celular que eu falo com ele. Lá, a estas
horas, ainda deve estar na galeria de arte.
Conseguido o número, feita e atendida a ligação –
maravilhosa Internet - disse meu nome várias vezes, expliquei que era do Brasil
e que tinha urgência em falar com Jiang. Alguns segundos e ele atende:
— Hai
Jiang, então, como vai? Fazendo muitos negócios?
—...
— Lembra-se
do nosso encontro quando comprei várias telas para enviar ao Brasil? Pois é.
Você nem podia imaginar suas telas por aqui.
—...
— Não.
Desta vez não é para comprar. Telefono sobre uma tela que representa um jovem
tendo nas mãos uma flauta. Numa das paredes tem.....
— ...
— Sim,
parece uma partitura.
— ...
— É lembra uma boina.
— ...
— O livro é de poesia? Ahn, letra para cantar com a
música. Sei, sei.
- ...
— Deixa
ver. É, bem na borda esquerda, no cantinho lá embaixo; tem sim...
— ...
— Então
está identificada? É certeza absoluta?
— ..........
— Não,
não duvido, claro. Foi muito fácil, só isso. Manda a conta pro Banco.
— ...
— Assim
fica barato. Muito agradecido. Nos vemos. Espero falarmos proximamente. Até
logo.
Foi mais fácil do que eu supunha. O cara é o
máximo. Sabe tudo. Matou na hora.
O tema não é da minha preferência, mas tem
seu charme. Apesar dos pesares é um belo presente; ninguém sabe quem é o
doador. E daí? Tem que ficar. Enfim, na minha avaliação valeu e ficou barato:
custou um telefonema internacional. Além do mais, os chineses
pedagogicamente adotam o pensamento de Confúcio, para quem copiar é um
exercício de humildade.
— Pois
é Gudrum, a tela é a terceira cópia da pintura RETRATO DE HOMEM COM FLAUTA, do
artista renascentista italiano Giovanni Girolamo Savoldo, de Brescia, onde
nasceu e viveu. Passou alguns anos em Veneza, Milano e casou-se com uma
Holandesa e andou por lá; daí aqueles traços e jogo de luzes que
você identificou tão bem. Lamento ser apenas cópia, não um polpudo cheque. Veio
e vai ficar de graça. Manda enquadrar. Na verdade, apesar da
incerteza imaginava que a tela seria cópia. Ninguém manda original para alguém
via correio e, mais ainda, incógnito. Só se for correio estrangeiro que entrega
aqui. Isso mesmo, duvido muito. Mistério! Quer saber? Escolha uma belíssima
moldura para enquadrar e coloca na parede acima do parapeito da sua lareira;
põe um arranjo de flores bem baixinho. Vai ficar supimpa. Vai dar assunto por
muito tempo.
— É. Afobei. Agora, pensando melhor... Se fosse original teria dúvida: ficar
com ela ou vender a algum museu. Claro que venderia, mas em leilão. Quer dizer,
então, que é copia feita numa daquelas dezenas de oficinas de arte de Dafen?
Vou tratar dela com o máximo carinho, como se fosse o original.
— Tudo
bem Gudrum, é assim que se fala. E o meu licor?
— De tangerina. Feito em casa.
— Fantástico!
Gudrum sabe o meu gosto e faz muito bem.
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