Paixonite
Ises
de Almeida Abrahamsohn
Aconteceu
no treino matinal dos sábados. Naquela nevoenta manhã o buraco no asfalto e a
garoa fina conspiraram para que a bicicleta de Mariana derrapasse na
curva. A quarenta km por hora a moça
voou por cima da guia e aterrissou no mato rasteiro que ladeava a pista. A
queda a fez perder os sentidos. Abriu os olhos devagar ouvindo o chamamento
urgente para que acordasse. Atordoada demorou um pouco a voltar a enxergar e se
deparou com o rapaz que a encarava preocupado agachado a seu lado. Percebeu
então o que acontecera e começou por mexer as pernas. Até aí tudo parecia em
ordem, salvo a dor forte no tornozelo, coxa e braço esquerdos. Felipe a apoiava para se levantar, mas ela logo
percebeu que andar era impossível. Ainda assim tivera muita sorte. O tornozelo
doía demais e sentia-se tonta. Sentaram-se à beira da estradinha enquanto
Mariana ligava para o irmão vir buscá-la. Teria que esperar pelo menos quarenta
minutos até ele chegar. O rapaz se prontificou a ficar ao seu lado. Conversaram
um pouco sobre ciclismo e descobriram que ambos trabalhavam na mesma região da
cidade. Mariana, apesar da dor, notou logo a musculatura de atleta, os
simpáticos olhos castanhos e o sorriso franco e interessado. Ao se despedirem,
Felipe pediu o número do celular. A moça hesitou. Afinal, embora se sentisse
atraída, o rapaz era um completo desconhecido. Dois dias depois, já recuperada
e após três ligações de Felipe, Mariana aceitou o convite para ir ao cinema. O
filme sugerido não era exatamente do tipo que gostava, mas tinha recebido pelo
menos três estrelinhas pelos efeitos especiais na avaliação de seu crítico
favorito. Depois do cinema foram a um barzinho japonês. Mariana gostou da
companhia, o rapaz era muito cortês. Falaram de ciclismo e de videogames, uma
paixão dele. Felipe por sua vez
encantou-se com a conversa da moça sobre as viagens e notou o seu entusiasmo
pelo trabalho de advogada. Ao ser perguntado sobre profissão disse apenas
trabalhar com restaurantes. Lá pelo terceiro encontro, Mariana percebeu que
estava muito afim de Felipe. Um incontrolável turbilhão de desejo tomou conta
dela quando ele finalmente a beijou. Entre amassos e beijos, incapazes de
esperar, apelaram para o motel mais próximo. A moça nem reparou na colcha encardida
e no espelho trincado. Quando saíram
saciados após várias horas, Mariana se deu conta de como aquele rapaz era
especial. Tinha tido outros namorados, com nenhum sentira as mesmas emoções. De
volta ao apartamento ainda se sentia flutuar. No dia seguinte esperou ansiosa
pela mensagem do rapaz. No seu elegante escritório, a bem sucedida advogada
especializada em direito comercial não conseguia se concentrar no complicado
processo de fusão que estava preparando há uma semana. Toda hora via Felipe e
relembrava a noite anterior. Ficou irritada consigo mesma. Decidiu caminhar
antes do almoço para recuperar a concentração. Caminhar sempre lhe fazia bem.
Era a melhor terapia quando tinha algum problema a analisar ou quando queria
simplesmente pensar. Colocou os tênis e calça de agasalho que guardava no
armário, avisou a secretária que voltaria após o almoço e mergulhou na calçada
ensolarada. O habitual formigueiro humano se deslocava ignorando os apelos de
eventuais camelôs. Atravessou a avenida e enveredou pelo parque em frente ao
prédio. Ainda bem seguro a essa hora, apenas alguns idosos caminhando e babás
com crianças. Mariana acelerou o passo. Não lhe saía da cabeça a noite
anterior. Percorreu o corpo do rapaz. Lembrou os músculos definidos no peito,
nos braços e na barriga. De repente passou a ver as tatuagens que ele trazia
nos braços e no peito. Espantou-se consigo mesma por ontem nem ter percebido.
Sempre detestara tatuagens. Causavam-lhe repugnância. Ninguém na sua família ou
conhecidos se tatuava. Crescera com a noção de que era costume das classes
sociais mais baixas. Agora isso também não é mais assim, pensava. Entretanto
ainda não era bem visto entre os profissionais mais graduados e podia pesar
desfavoravelmente numa entrevista de emprego. Lembrou-se de um colega que
sofreu ao ter o desenho no braço removido pelo dermatologista. Para complicar,
quando a pessoa envelhece o pigmento se espalha, fora a pele que fica flácida,
já imaginou, refletia Mariana. De novo voltou-lhe à mente as tatuagens de Felipe.
De novo se espantou por não ter sentido repulsa quando o viu nu. Estava de tal
forma tomada pela paixão que nem percebeu. E agora, perguntava-se Mariana. O
que me acontecerá num próximo encontro? Quero muito repetir a noitada, mas o
que sei dele? Nada, nada, apenas que é esportista e que não gostamos das mesmas
coisas. Eu não gosto de videogames e nem de blockbuster ou rock. Ele nunca foi
a um concerto e só lê autoajuda. Nunca vai dar certo.
Mariana
continuou a caminhar dividida entre o desejo de um novo encontro e o seu lado
racional que lhe dizia para não se deixar levar pela paixão. Depois de algumas
voltas pelo parque enveredou por uma das ruas laterais. Não costumava passar
por ali e se espantou com o número de restaurantes. Já era quinze para meio dia,
poderia comer por ali mesmo antes de voltar ao escritório. Checou o celular e
viu a mensagem de Felipe. Uma onda de calor subiu-lhe pelo corpo com a
lembrança da noite. Responderia mais tarde. No outro lado da calçada viu um
restaurante simpático. Atrás das amplas portas de vidro viu o empregado
colocando pratos e talheres nas mesas. Ainda não estava aberto. Mariana
sentou-se à sombra na mureta de um casarão antigo observando o movimento do
lado oposto. O garçom agora arrumava as mesas mais próximas da entrada. Olhou
mais atentamente e percebeu o corpo compacto e musculoso que se movia ágil
entre as mesas. Não podia ser... Levantou-se, andou até o meio fio e olhou de
novo... Era ele mesmo. O seu Felipe... Não queria acreditar. Percebeu que o
rapaz ia abrir as portas. Afastou-se um pouco e recuou para a sombra. O rapaz
saiu para a calçada. À luz do sol reconheceu o rosto e viu os braços tatuados.
Não havia dúvida! O seu apaixonado das últimas semanas trabalhava mesmo com
restaurantes, só que como garçom. Mariana rapidamente dobrou a esquina enquanto
pensava. Confrontá-lo? Mas por quê? Porque omitiu que era garçom? Ele
certamente ficara intimidado ao conhecê-la. E ela? Agora não conseguia imaginar
um próximo encontro! Por fim decidiu que não faria nada. Simplesmente não
responderia às mensagens ou ao telefone. Uma semana em Paris curava qualquer
paixonite. Alguns dias depois ainda lembrou com uma ponta de saudade do garçom
Felipe ao ver o braço tatuado de um jovem desconhecido, passageiro do mesmo
avião.
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