O BILHETE
Ledice Pereira
Naquele domingo, todos atenderam ao chamado de Silvério
Duarte.
O velho, 85 anos, vinha apresentando alguns problemas
de saúde que, até então, era invejável. Mas não era isso que o afligia.
Morava na fazenda da qual sempre tirou sua sobrevivência
e educou os três filhos: Luís, o mais velho, 55 anos, filho do primeiro
casamento, engenheiro agrônomo, braço direito do pai nas coisas da fazenda.
Residia a vinte quilômetros dali, num condomínio na parte urbana da cidade;
Caio, músico, 13 anos mais moço, considerado, pelo pai, a ovelha negra da
família, deixou a fazenda ainda jovem para viver a vida urbana que sempre o
atraiu; Lívia, adotada ainda bebê, quando Luís tinha 10 anos, casou-se com um industrial paranaense, e dali
se mudou para seguir o marido, a contragosto de Duarte.
O velho patriarca almejava ter a família toda ao seu
redor.
Sonia, sua segunda mulher, o conheceu quando contratada
para secretariá-lo, no escritório que montara na cidade. Era seu primeiro
emprego, aos 19 anos. Aquele homem vinte e poucos anos mais velho, levemente
grisalho, alto, bonito, tremendamente charmoso, a encantou imediatamente.
A atração foi recíproca. Viveram uma paixão
avassaladora, enfrentando tudo e todos.
À época, ele tentava manter um casamento de aparências
com Svetlana, filha de um poderoso fazendeiro da região, que lhe tinha sido
destinada desde criança, naqueles acertos comuns entre famílias abastadas.
Muito jovem, numa época em que não podia expor sua
opinião, e com pouca oportunidade de conhecer outras moças na região rural onde
vivia, acostumou-se à ideia de tê-la como esposa, deixando-se levar por aquele
acordo.
Era um acerto comercial e ela, filha única, levou como
dote, as terras que o pai a ela havia destinado, aumentando consideravelmente o
patrimônio da família Duarte.
Quando conheceu Sonia, descobriu o que era realmente
estar apaixonado. Ao constatar a gravidez da amada, decidiu pela imediata
separação, diga-se de passagem, bastante turbulenta para as duas famílias. O
sogro jurou vingança. Svetlana entrou em depressão profunda, vindo a falecer
poucos anos depois.
Duarte rompeu com o pai, amigos e familiares que se
colocaram contra a decisão.
Ali, o casal viveu uma vida de amor cercado apenas dos
filhos e dos velhos e fieis empregados, Maria e Ademir que, além de cuidar dos
jardins, passou a exercer a função de motorista.
Luís foi o primeiro a chegar, trazendo Luzia, sua
mulher. Os filhos vieram depois. Tinha pouco mais de doze anos quando a mãe
faleceu. Nutria certa antipatia por Sonia. Intimamente, a culpava pela morte da
mãe. O avô materno nunca mais o procurara.
Lívia chegou logo. Estava saudosa e correu a abraçar o
pai e Maria, a velha empregada que sempre a acolhia nas horas em que se sentia
triste ou com medo.
Era menina quando Sonia veio morar na casa. Tinha um pé atrás em relação à madrasta, embora
sempre tivesse sido tratada com carinho por ela.
Caio demorou um pouco mais a chegar. Vinha de moto,
mochila às costas, cabelo preso num rabo de cavalo, roupa surrada, do modo que
o pai detestava. Ficou abraçado com a mãe, que representava seu porto seguro.
Era distante dos irmãos, que não pareciam fazer muita questão de sua presença.
No final da tarde, o pai pediu à mulher que mostrasse a
todos o bilhete que recebera:
Пришел набрать моей мести против вас и
всех его потомков. Их земля будет гореть в огне и вы и ваша семья умрет
Ninguém entendeu nada, mas
combinaram de consultar um tradutor.
─ Você não tem ideia de quem enviou esse papel, pai ─
perguntou Luís, sem entender o que aquilo poderia significar. Há alguém por
essa região de descendência russa? Afinal, os caracteres parecem ser russos,
não?
Duarte revelou detalhes de sua separação, quarenta e
tantos anos atrás.
─ Svetlana era de origem russa, mas não tinha irmãos,
nem primos que eu soubesse. Seu avô, Igor Ivanov, veio fugido para o Brasil, na
época da revolução russa, em 1917. Formou família aqui. Casou-se com sua avó,
uma italiana rica, e triplicou a fortuna da mulher. Investiu em gado e aumentou
as terras. E como Svetlana fosse filha única, sua fortuna me foi dada como
dote. Eu administrei e aumentei ainda mais o patrimônio.
─ Quando eu conheci Sonia e me separei de sua mãe
dividi as terras, ficando com a menor parte exatamente para não ter problemas,
e não tive mais contato com ninguém. Até porque rompemos relações. O velho
ficou uma fera e prometeu vingança, mas não lhe dei importância. Com o tempo esfriaria a cabeça e me esqueceria.
Naquela época, eu estava muito apaixonado ─ ele disse ─
olhando com carinho para Sonia.
São eles os únicos russos que conheci. Soube da morte
dele, há muito tempo, e que a mulher morreu logo depois. Nem sei o que foi
feito das terras. Cheguei a pensar em rasgar o bilhete, mas como não sei o que
traz escrito, achei melhor dividir com vocês. Quero que me ajudem a pensar o
que devo fazer.
Luís, com a pulga atrás da orelha, encarregou-se de desvendar o significado do bilhete.
Despediu-se de todos e partiu com a família, tentando não demonstrar sua preocupação.
Lívia resolveu passar uns dias na fazenda até para
ajudar a cuidar do pai.
E Caio, preocupado que a mãe estivesse correndo algum
perigo, decidiu permanecer por mais alguns dias junto a ela.
Numa noite quente, dias depois, acordou com um estalido
na mata. Ao abrir a janela do quarto, sonolento, Caio assustou-se com a altura
das labaredas circundando a casa. Prontamente, chamou o corpo de bombeiros e
acordou os empregados para que, juntos, tentassem impedir a aproximação do
fogo.
Sonia e Duarte, que dormiam no quarto dos fundos,
acordaram com a movimentação.
Lívia também, ao ouvir vozes, juntou-se a eles
assustada.
Os bombeiros, depois de muito trabalho, conseguiram
conter o fogo e concluíram tratar-se de incêndio criminoso.
Luís, avisado, chegou pela manhã. Trazia consigo o
texto traduzido do tal bilhete, confirmadamente, russo:
“Hoje
vou concretizar minha vingança contra você.
Suas
terras arderão em fogo e você e sua família irão morrer.”
Todos ficaram temerosos e convenceram Duarte a prestar
queixa na Delegacia do lugar, além de contratar uma empresa de segurança.
Duarte, pressionado por Luís, resolveu contratar um
detetive para tentar descobrir o autor da ameaça. Luís havia tomado
conhecimento da atuação e competência de uma tal de Lenita Fragoso que
desvendara vários casos na região.
Lenita foi chamada.
Seis meses se passaram e, por mais que esmiuçasse a
vida de todos, que moravam nas redondezas, não conseguia chegar a uma
conclusão.
Vasculhou a região e não encontrou nenhuma família
russa, nem ninguém que odiasse Silvério.
Ao investigar a família de Sonia, encontrou apenas
primos distantes. Através de um deles, médico psiquiatra, soube da existência
de um antigo pretendente da prima que, desiludido, ao saber que a jovem se
apaixonara pelo patrão, mudou-se da cidade não deixando rastros. O homem
aparecera em seu consultório, cinco meses atrás, por indicação de um amigo e
ele o identificara.
Falava coisas desconexas, estava perturbado, mal
vestido, sujo e, de vez em quando, murmurava algumas palavras em idioma
desconhecido do médico. Depois de umas quatro sessões, sumiu sem explicações.
A detetive ficou interessada em saber mais sobre a
estranha figura. Juntando os pontos, aqui e ali, acabou por segui-lo até um casebre, encoberto por uma
densa mata.
Ficou ali de tocaia por vários dias. Era persistente.
Até que percebeu um movimento estranho e avistou o homem, que saía trôpego de
casa. Aguardou um pouco e penetrou no local. Torceu o nariz. Mal podia respirar. As
paredes de pedra tornavam o lugar úmido e insalubre.
O que poderia ela encontrar naquele
esconderijo fétido, que misturava odores?
No chão, um fino colchão
rasgado coberto por alguns panos grossos e encardidos. Em um fogão de duas bocas,
uma panela grudada exalava um cheiro azedo, que se mesclava ao conteúdo de um
urinol descascado esquecido num canto. Havia um único e pequeno móvel e, pasmem,
embaixo de uma tênue lâmpada pendurada, um lap top, último tipo, aberto. Ficou
curiosa.
Um conjunto de alfabetos estranhos misturava-se ali
numa verdadeira torre de Babel. Ao explorar o arquivo, verdadeira caixa de surpresas, deparou, entre
outros escritos indecifráveis, com o bilhete que tanto assustara a família
Duarte. Finalmente, decifrado o enigma que tanto encafifara a detetive.
Passou a mão no notebook e levou-o consigo, saindo
rapidamente dali, e dirigindo-se à casa da família que a contratara para juntos
irem à delegacia, portando a prova do crime.
Lenita Fragoso, com sua persistência e determinação,
resolvia mais uma complexa charada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário