O mistério de Novitatória
Suzana da Cunha Lima
Novitória,
cidade ao norte de Hidrência, uma das primeiras províncias a utilizar um
transporte coletivo movido por bois, estava ficando famosa. A cidade tinha uma
coisa muito curiosa que fazia com que muita gente desejasse nela morar...
Ouvindo falar disso,
o grande diretor de cinema Juca Prado, que estava à procura de locações para um
novo filme de suspense, resolveu viajar até lá.
Que coisa seria essa? Além disso, o sistema de transporte coletivo
movido a bois o intrigou bastante. Era
alguma cidade perdida no tempo, na Idade Média, por exemplo? Uma descoberta
arqueológica?
A dificuldade foi
achar quem o levasse lá, já que nunca ninguém havia ouvido falar de tal cidade,
Novitória... Finalmente, o auxiliar do
operador de câmera, Zezinho do Bigode, informou que o Jornalista Chico Costa , que havia feito o artigo sobre
Novitória, poderia lhe ajudar e deu o número do telefone para Juca Prado. E assim, os dois combinaram uma ida à cidade,
para aprofundar aquele mistério.
Foram até Goiânia e
de lá, de ônibus, caminhão, mula e a pé,
após três dias inteiros conseguiram chegar em Hidrência. Três a quatro ruas
poeirentas, casinhas modestas espalhadas de qualquer jeito, um coreto na
pracinha minúscula, a capela e um boteco que se autodenominava Lanchonete Pague
Agora. Ah, e uma espécie de charrete com
quatro lugares movida a dois bois magros e cansados. Era aquilo o transporte
público pelo qual Hidrência ficara famosa?
Os dois se
entreolharam decepcionados e muito cansados. Foram até a Lanchonete que era
apenas um boteco melhorado. Pediram um refrigerante e informação sobre a melhor
maneira de chegar à Novitória. Quem os
serviu foi uma mulher robusta de poucas
palavras que repetiu o nome de Novitória diversas vezes, franzindo a testa.
Depois os olhou detidamente, quase zangada e perguntou:
- Que querem fazer
lá?
-Queremos conhecer
esta cidade. Dizem que ela possui alguma coisa que faz com que as pessoas
queiram morar lá. A senhora conhece? Já
ouviu falar?
-Quem aqui não
conhece Novitória, moço? Todos nascemos lá.
- Ah, sim? E porque
hoje estão aqui, em Hidrência?
- História comprida,
moço. Não estão cansados? Vão dormir aonde? Aqui não temos hotel.
- Qualquer quarto com
duas camas e um banheiro já nos serve – respondeu Chico Costa – eu escrevi uma
história sobre Novitória baseada num depoimento de Carlito, o Manco. Ele anda por aqui, mora neste lugar?
- Carlito é falador
demais, não deve acreditar em tudo que
ele diz. Se pretendem dormir por estas bandas, devem falar com o vigário. Ele tem um quarto livre que aluga, às vezes. – e virou-se para a pia, a lavar os pratos,
sem dar mais atenção aos dois.
Juca Prado e Chico
Costa eram profissionais que não desistiam facilmente. Foram até a capela, uma pequena construção
branca, com uma tosca cruz de madeira no campanário mínimo, no qual não se via
nenhum sino. Bateram palmas, ninguém
apareceu, entraram. Alguns poucos
bancos de madeira e nos fundos uma mesa tosca, com um crucifixo grande. Atrás desta mesa, na grande parede
branca, uma pintura rudimentar mostrando
Jesus na Cruz. A única janela, tipo
verãos, derramava uma luz suave no interior, convidando à meditação e preces. E
era só, paredes nuas e num canto, meio escondido, o genuflexório. Será que alguém ali ainda vinha se confessar
com o vigário? Oh de casa, gritaram.
Olharam de um lado para outro sem ver viva alma, até que uma figura
singular, metida numa batina preta engordurada, surgiu por detrás deles, saída
não se sabe de onde.
-O que querem, para
que tanto barulho?
- Soubemos que o
senhor aluga quarto, precisamos de um para passar esta noite. Estamos muito
cansados, precisamos de um banho também.
- Tenho um quartinho
que alugo, às vezes, para algum viajante que se perdeu por estas bandas. Venham ver. – saiu da capela e se encaminhou
para um anexo muito rudimentar da capela.
Era um quartinho mesmo, com um sofá cama de tecido bem poído, duas
cadeiras e um varal na parede que serviria para pendurar alguma roupa.
- É isso aí. Banheiro não temos. Tomamos banho com esguicho, água fria, ali
naquela casinha e para outras coisas, a fossa fica ali adiante. – olhou-os mais
detidamente - De onde vocês vieram? Não
são daqui, com certeza.
- Somos de cidade
grande, padre. Eu sou diretor de cinema, Juca Prado, às suas ordens e ele é jornalista, Chico Costa. Escreveu
sobre a cidade de Novitória, que, parece, fica por estas bandas.
Ao ouvir esta
palavra, o vigário quase deu um pulo para trás. – Novitória? E quem falou disso
para vocês? Homessa! E para que querem conhecer Novitória?
- Eu procuro um lugar
para filmar um filme de suspense e o Chico quer conhecer melhor Novitória.
- Mas não escreveu
sobre ela? Como fez isso se nem a conhece? Espantou-se o vigário, cada vez mais
desconfiado dos dois forasteiros.
- Foi Carlito Manco
quem falou sobre Novitória, lá na cidade onde moramos. Uma noite, num bar e com
muitos detalhes.- explicou Chico.
- Quem sabe não é
invenção do Carlito, heim, Chico? retrucou Juca Prado – Estávamos todos bêbados
e é capaz dessa cidade nem existir. O
que sei é que estou cansado, com fome, e pelo visto vou ter que tomar banho
frio antes de dormir, isso sim. E por nada?
- Claro que Novitória
existe, que ideia... – exclamou o vigário – Só não atino qual a razão de vocês
dois, imagino que bons profissionais, desejarem
conhecê-la.
- Nós já explicamos,
padre. Agora, por favor, veja se arranja outro quarto ou um colchonete para a
gente poder descansar esta noite. – disse Juca Prado, começando a ficar
aborrecido.
- Bom, posso ceder
meu quarto, que tem duas camas e banheiro junto. Eu posso dormir em outro
lugar. Só que não vai sair barato. E
pela cara de vocês, estão também com fome, não é? Nemzinha vai preparar meu jantar, peço que
aumente a comida e vocês jantam comigo. Está bom, assim?
Os dois homens
ficaram mais animados ante a perspectiva de dormirem numa boa cama e jantarem
decentemente. E também perceberam que o vigário sabia mais do que aparentava
sobre Novitória.
O quarto do padre era
bom, o chuveiro elétrico funcionava e assim, depois de retirarem toda a poeira
da estrada e se vestirem com novas esperanças, foram à cozinha anexa à capela,
onde uma mulher corpulenta e simpática ultimava o jantar.
O padre, animado com
a possibilidade de saber as novidades através daqueles profissionais,
convidou-os a se sentarem na pequena mesa de madeira encerada e serviu uns goles de aguardente temperada com uma frutinha da região,
oferecendo pedacinhos de queijo e lingüiça frita como tira-gosto. Mas eles estavam mesmo era de olho na caçarola de carne com batatas, cujo
cheiro atiçou ainda mais um apetite que vinha sendo enganado com sanduiches o
tempo inteiro da viagem.
Até então a conversa girava sobre as últimas
notícias e boatos da Capital. Juca
explicando como seria seu filme e Chico atrás de uma boa reportagem com todas
as fotos que pudesse tirar. Quando finalmente a caçarola foi à mesa, junto com
arroz de carreteiro e farofa, os dois desistiram momentaneamente de conversar,
e se dedicaram a saborear aquela comida estupenda e ainda por cima regada a um
bom vinho que o Vigário trouxera de alguma adega particular. Este padre sabe se cuidar... pensaram.
Satisfeitos e um
pouco zonzos com o vinho e aguardente, tentaram se acomodar nas duas únicas
poltronas da salinha anexa, para terminarem a conversa iniciada antes do jantar. O padre refestelou-se na rede e esperou
Nemzinha terminar o serviço e sair para a casa.
- Bem, o que querem
saber agora? Como chegar a Novitória?
- Sim padre, foi por
isso que aqui viemos. Fica muito longe?
- Meio dia de
jornada, se forem no carro de boi. É
nosso transporte público, invenção do prefeito em ano eleitoral. Muito bem, o que esperam encontrar lá?
- A mulher da
lanchonete disse que todos que moram aqui nasceram em Novitória. Mas não quis
dizer porque saíram de lá.
O padre suspirou,
começou a enrolar seu cigarrinho de rolo, olhou firme para os dois e disse bem
pausadamente;
- Em Novitória
acontece uma coisa muito interessante, aliás, para mim, é meio assustador.
Os dois esperaram
calados, apreciando o suspense que o padre estava dando à história.
- Lá ninguém
envelhece. Colocou o pé na cidade, vai ficar com a mesma idade sempre.
- Como é isso, Padre?
Ninguém envelhece, ficam com a mesma idade, com a mesma cara? Os dois quase
deram um pulo da cadeira, diante do inusitado da notícia.
- Bom, o tempo
ninguém para. Mas o processo de
envelhecimento é sustado. As crianças se
desenvolvem até os vinte anos, somente.
Depois ficam com vinte anos para sempre.
- E nunca veio nenhum
pesquisador ou cientista estudar este fenômeno? Iriam ganhar rios de dinheiro
se soubessem o que ocasiona esta juventude eterna.
- Já vieram sim,
muitos, há muito tempo. Mas o negócio
não é tão simples assim. Só funciona lá
e até agora ninguém sabe a razão.
- Então era caso da
cidade estar cheia de gente, não? Imagine, ficar sempre com vinte anos...
suspirou Chico, já cansado de tanta vida de trabalho e amolações, vendo a idade
chegar e as mazelas também.
- Pense bem, meu filho. Será que é tão bom assim ficar a vida inteira
com a mesma idade? Que experiências
vivenciarão? Muito poucas, no fim, não
tem graça mais. Você gostaria de pular corda ou jogar amarelinha ano após ano? Onde fica a curiosidade humana, a busca de
desafios, a vontade de construir uma família,
uma fábrica, uma locomotiva... Ninguém com 20 anos têm esse conhecimento, essa
experiência que se adquire com muitos erros e acertos e que só o tempo pode
oferecer.
- Mas padre, pelo que entendi, o cérebro permanece também
com a mesma idade? Não dá para aprender coisas novas?
- Pelo que sei não dá
para aprender mais nada. Esta é a razão
de muita gente ter se evadido de Novitória.
- E como se entra e
como se sai de lá, padre? Perguntou Chico Costa, já imaginando como faria uma
reportagem sensacional naquela cidade tão diferenciada. Preciso apenas de mais informações e acho que
o vigário conhece tudo por lá.
- Bom, aí é que está
o mistério do caso. Vamos dizer que
você, com quase sessenta anos, Chico Costa, entre na cidade. A cada ano que passar lá, vai remoçando até
chegar aos vinte anos. Todo seu conhecimento e vivência serão apagados de sua
cabeça. As reportagens que fez, o que
aprendeu nas gráficas e na elaboração de um jornal, tudo isso vai-se embora.
Você entra em Novitória como se tivesse vinte anos e daí não vai passar. Ainda acha que é tão bom?
- Pensando bem,
padre, chega a ser assustador. – comentou Chico. – E como se consegue sair de
lá?
- Fugindo, meu amigo
e não é fácil. Os moradores não querem
que ninguém sáia de lá e eles próprios não querem envelhecer. Vão ficando, levando uma vidinha medíocre,
tentando sobreviver com o que sabem. A
única esperança que eles tem de prosperar um pouco é quando chega gente de
fora.
- E por que, padre?
Perguntou Juca Prado, entretido consigo próprio a respeito do tipo de filme que
queria fazer naquela cidade tão misteriosa.
- Porque as pessoas
quando chegam lá, já possuem uma rica bagagem de conhecimento, experiência e
vivências que leva mais ou menos um ano para serem esquecidas, o tempo em que se
está remoçando. Enquanto isso, os
moradores usufruem disso tudo e a vida deles fica muito mais alegre e com mais
sabor.
- E eles chegam a
prender pessoas que querem ir embora?
- É o que diz quem
vem de lá. Mas acredito que, enquanto
durar o tempo de remoçar, um ano mais ou menos, eles vão ser muito bem cuidados
e guardados a sete chaves, porque estão levando conhecimentos que ninguém lá
possui. Depois, já estarão com vinte anos, acabam se nivelando com as pessoas
do lugar.
- Então, pelo que
entendi, os moradores de Novitória querem segurar lá, quem entra agora, quem
vai levar um ano para se tornar jovem outra vez, não é?
- Isso mesmo, meu
filho - respondeu o padre já bocejando – Tomem pois, muito cuidado, vocês são
carne fresca, como se diz. A menos que
queiram ficar com vinte anos outra vez. Acham que vale o preço?
Os dois se
entreolharam e acabaram abanando a cabeça, um pouco tristes. Quem não quer ser moço outra vez? Ter o vigor, o entusiasmo, um pouco da
irresponsabilidade da juventude? Mas
ficar parado no tempo e no espaço, mesmo jovem e belo, não queremos não -
responderam quase juntos. É um preço muito alto para não ter mais rugas no
rosto, disse Juca brincando.
- Toda idade tem sua
beleza própria, meus filhos. Lembra a
moça da lanchonete? Ela nasceu e morou em Novitória, sempre jovem e bonita, até
que se enrabichou por um cantor que apareceu por lá. Não esperaram um ano para ele remoçar; na
verdade ela gostou dele exatamente porque parecia mais velho, mais experiente e
mais sábio que os rapazes que lá moravam.
Com dois meses armaram a fuga, aproveitando a entrada de um grupo de
senhores. Abriram a lanchonete e começaram a trabalhar juntos. O negócio deles
prosperou, mas em um ano ela envelheceu tudo que devia ter envelhecido naqueles anos todos em Novitória. E não se arrepende nem um segundo. Repare que
ela não gosta de falar disso. Para ela
foi realmente um tempo perdido, embora fosse tão bela e jovem como uma miss.
-Acho que vou fazer
um belo filme baseado nesta história toda, padre. Mas minha curiosidade para
conhecer esta cidade acabou de vez.
- Também perdi o
interesse, amigo. A vida foi feita para
ser vivida e é muito bom encontrar velhos amigos, relembrar algumas besteiras e
projetar algo para um futuro que a gente sabe que vem. Qual a graça de estar sempre fazendo as
mesmas coisas, com as mesmas pessoas, como figura de calendário? Jovens e
belos, mas parados como manequins.
- Bom, vamos
dormir, que amanhã, com certeza,
estaremos um dia mais velho. –disse o
vigário se levantando com esforço da rede, ainda com seu cigarro de
rolo. – A velhice tem também seus encantos, meninos. Onde vocês pensam que vou dormir agora?
Naquele sofá-cama com tecido puído de molas gastas?
Os dois se olharam e
começaram a rir, pensando na cozinheira do padre.
-Há sempre um chinelo
velho para guardar um pé cansado – disse o velho vigário rindo.