NEM
SEMPRE A REALIDADE CORRESPONDE AOS NOSSOS DESEJOS
Ledice Pereira
Nilza
cresceu entre outras crianças como ela, sem pais. Abandonada numa pequena caixa,
deixada à porta da igreja, foi levada, recém-nascida, pelo padre da paróquia
daquele bairro pobre, para o abrigo de menores. Ali, aprendeu as primeiras
letras, ali, teve acesso a alguns livros. Gostava de se deixar levar pelas
histórias que a transportavam para um mundo diferente daquele real. Sonhava em
ser adotada por uma família que a amasse incondicionalmente.
Via
os pequenos serem levados por casais sorridentes, mas ela crescia ali sem ser,
ao menos, visualizada. Atribuía essa indiferença à cor de sua pele, ao seu
cabelo que procurava esconder atrás da trança, ou do lenço colorido.
Foi
crescendo com aquela mágoa que lhe apertava o peito, com a decepção de não ser
nunca a escolhida. Sorria, acenando para aqueles que deixavam o abrigo,
fingindo felicidade.
Quando
menos esperava, vieram chamá-la para conhecer o casal interessado em dar-lhe um
lar. Era tudo que sempre sonhara, por que isso não a entusiasmava?
Tinha
medo do que iria enfrentar, medo do desconhecido, medo da decepção. Estava com
treze anos. Aparentava menos. Era franzina e tinha estatura mediana.
Lembrou-se
do casal. Já haviam estado ali algumas vezes, observando-a. Achara, no entanto,
que era fruto de sua imaginação. Por que eles a observariam? Talvez a achassem
magrela demais.
Juntou
suas coisas. Cabiam numa pequena sacola. As roupas ali eram passadas de um para
outro. Pediu para levar o livro que estava lendo. Despediu-se, sem, entretanto,
demonstrar emoção. Pegou seus objetos pessoais, olhou em volta e pensou que não
sentiria saudade daquele lugar. Sorriu para seus possíveis salvadores. Era
dissimulada. Aquele sorriso poderia esconder um misto de sentimentos
armazenados.
Durante
o caminho, respondia apenas o que lhe perguntavam, usando palavras
monossilábicas, sem dar margem para que rolasse um papo. Metade do trajeto foi
feito em absoluto silêncio. Cada um imerso em seus pensamentos.
Foram
recebidos pelos três filhos do casal. Nilza estremeceu. Gostaria muito de ser
única.
Bia,
a mais efusiva, foi logo distribuindo beijos e abraços. Ruy acenou de longe,
com um sorriso amarelo e Frederico, o mais moço, esboçou um “oi” lacônico.
Irene
e Valter entraram, tentando fazer com que Nilza se sentisse à vontade. Estavam
todos famintos. Lavaram-se, sentando-se em volta da mesa, indicando a cadeira
para que a menina também se sentasse.
Jurema
apareceu, trazendo as travessas e dirigindo um olhar curioso para a nova
moradora.
No
abrigo aprendera como sentar-se à mesa, como segurar os talheres e como comer
delicadamente. Nilza não teve a menor dificuldade. Procurou ouvir o que diziam,
respondendo economicamente com seus “sim” e “não”.
Ao
final da refeição, já havia feito uma análise completa de cada integrante daquela
casa. Estava acostumada a escrever sobre cada personagem dos livros que lia.
Não foi difícil colocar no papel o que sentira a respeito de cada um.
Faltava
apenas conhecer melhor Jurema que lhe pareceu ser ingênua.
O
resto do dia transcorreu tranquilamente. Preferiu permanecer no quarto. À noite
levaram-lhe uma bandeja com um lanche feito no capricho que ela devorou
rapidamente.
Achou
a cama deliciosa e adorou não ter que dormir com uma porção de gente.
Uma
nova vida
Dormiu
sem acordar nenhuma vez, sendo despertada pelo sol que teimava em encher o
quarto de luz. Aguardou vestida sem saber se deveria sair do quarto. Irene
bateu à porta, ao mesmo tempo que a chamava. Pensou que seria bom se usasse seu
melhor sorriso. Acompanhou Irene para tomar o café da manhã. Valter e Bia já
haviam saído. Os meninos ainda dormiam. Estudavam na parte da tarde.
Irene
gostou de ter aquele momento para um entendimento com a menina, apesar de
senti-la arredia. Informou-a de que iriam ao colégio para que ela fosse
entrevistada e avaliada.
Começava
um longo período de adaptação.
Embora
no abrigo, a garota estivesse cursando a sétima série, avaliaram que seria
interessante que ali ela cursasse a sexta série, devido a uma defasagem de
matérias observadas na entrevista. Nilza não gostou e seu semblante demonstrou
logo a insatisfação. Irene procurou explicar que ela poderia não acompanhar as
matérias da sétima série, mas durante o resto do dia teve que lidar com aquela
cara feia. Ela sabia que não seria fácil.
À
noite conversou com Valter, sugerindo que encaminhassem a menina à uma terapeuta
muito competente que já os havia atendido.
Na
semana seguinte, reorganizaram a agenda dos quatro.
Como
os jovens receberam a nova moradora
Bia
era uma garota bem resolvida, embora no auge de sua adolescência. Alegre, cheia
de amigos, intensa em todas as atividades, querendo enfrentar sempre um novo
desafio. A escola proporcionava contato com os mais variados esportes, para que
os alunos optassem pelos que mais combinassem com suas maneiras de ser. Ali,
tinham também contato com a música nas suas mais diferentes formas.
Bia
adorava tudo. Além disso, ia bem em todas as matérias, admirando os professores
da nona série que, por sua vez, tinham orgulho da aluna, cujas notas eram
sempre as melhores.
Os
meninos levavam a escola sem a mesma dedicação da irmã, mas conseguiam se dar relativamente
bem, algumas vezes tirando o estritamente necessário para passar de ano.
Nilza
teve que se adaptar a esse novo formato de vida. Estudar pela manhã, fazer
terapia uma vez por semana à tarde e participar das atividades
extracurriculares em determinados dias e horários. Achou um pouco puxado,
sentindo-se cansada e, em determinados dias, desabando sobre a cama de onde não
saía nem para o jantar.
O
casal respeitou esse comportamento, entendendo que estava em fase de adaptação.
Nilza
e Bia
Nilza
entendeu esse respeito ao seu comportamento como uma falta de atenção para
com o problema pelo qual estava passando. Por outro lado, o desempenho de Bia,
a casa sempre cheia de seus amigos, sua alegria e eterno bom humor mexiam terrivelmente
com ela.
Passou
a invejá-la com todas as suas forças, começando a inventar mentiras sobre a “meia”
irmã. Encontrou na fraca Jurema uma forma de levar e
trazer suas fofocas. Ora, que a menina dizia que estava treinando, quando na
verdade estava de namoro com o colega com quem teria ido ao cinema. Ora,
dizendo que soubera que Bia fazia cola para tirar boas notas, enganando os pais
e os professores, porque na verdade ela não sabia nada da matéria.
Nilza
criou tal clima de tensão com suas invenções que pais e filha passaram a viver
em guerra dentro de casa.
Bia,
que era uma menina equilibrada passou a ter distúrbios alimentares severos. Os
meninos, por sua vez, aproveitavam a desestrutura familiar para faltar às aulas,
ficando pelas imediações, jogando bola com vadios que não queriam nada com as
obrigações escolares.
Enquanto
isso, Nilza se deliciava com toda aquela confusão por ela criada, fazendo com
que o casal nem a cobrasse por notas baixas ou faltas às atividades o que
passou a ser uma constante. Ver a derrocada de Bia, fazia com que se sentisse
uma vencedora.
Trimestre
experimental
Passados
os três meses do período de experiência para que o juizado desse finalmente o
aval para que o casal adotasse a menina, Valter e Irene estavam em vias de se
separar.
A
irmã de Irene começou a ver a destruição pela qual a família de sua irmã
querida estava passando, resolveu intervir, marcando uma entrevista urgente com
a terapeuta para que ela os orientasse na condução do caso. A terapeuta, que já
observara alguns sinais de desequilíbrio comportamental na menina e estava
aguardando a oportunidade para chamar Irene e Valter em uma conversa, ao saber
em que pé estavam as coisas, optou por marcar imediatamente uma entrevista com
o casal, a quem expôs o que vinha constatando.
Para
Irene, foi uma surpresa. Ela sempre quisera adotar alguém que estivesse à
deriva, que tivesse mais idade, e que não fosse uma prioridade de adoção. Chorou muito. Sentiu-se fracassada, mas, ao
mesmo tempo, não poderia prejudicar os filhos em prol de alguém que não fazia
jus à sua dedicação. Alguém que quase destruíra sua família. O marido a apoiou
totalmente. Ambos voltaram a se unir tomando juntos uma decisão tão sofrida.
Levar a menina de volta ao abrigo, comprometendo-se a manter os estudos e o
tratamento psiquiátrico aconselhado.
Carmen,
orientadora pedagógica da escola, foi colocada a par de todo o processo, entrando
em contato com a orientadora da escola próxima ao abrigo, para que ali, Nilza
pudesse continuar seus estudos sendo acompanhada de perto.
Nilza
sentiu-se como um passarinho, livre de tantas atividades, feliz por voltar ao
ninho. A assistente social do abrigo foi
inteirada de todos os acontecimentos e se comprometeu a acompanhar a trajetória
da menina.
Nem
sempre conseguimos realizar nossos sonhos mas com o auxílio de pessoas dedicadas
podemos tentar amenizar os infortúnios dos mais sofridos.
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