FECHADA P’RA BALANÇO? - Ledice Pereira

 

                      

                    

FECHADA P’RA BALANÇO?

Ledice Pereira

 

Finalmente, aos vinte e oito anos, Suzana conseguira sair daquela relação abusiva. Abriu a porta de casa e desabou no sofá. Sentia um misto de alívio, de medo, de liberdade, de vitória. Não havia sido fácil. Foram anos tentando sair fora. Quase desistira mas sua advogada era determinada e a munira de coragem para enfrentarem a fera. Rogério deu mostras de ser desequilibrado logo que se casaram muito jovens, depois de um namoro e noivado rápidos em que o rapaz fora dissimulado.

Ela foi pega de surpresa. Aquela paixão inicial, transformou-se em medo. Ele a mantinha presa e a ameaçava, não permitindo que ela exercesse a profissão que tanto amava, desde adolescente demonstrava seu amor pelas letras. Ser escritora era sua meta.

O passaporte estava em dia. Paralelamente aos trâmites do divórcio, providenciara a atualização do documento. Há muito desejava sair do país, dedicar-se totalmente a escrever, coisa que não pôde fazer durante todos esses anos de disputa judicial. Vinha pesquisando pela internet e descobrira em Bari uma vila de casas antigas perfeitas para se isolar e deixar fluir o pensamento, transpondo-o para a escrita há tempos reprimida.

Através de sua advogada, informara-se do valor a pagar, do que precisaria levar para mobiliar o local para que tivesse o essencial e conseguiu um intermediário local que se encarregou de todas as providências.

Arrumou sua mala com o essencialmente necessário, trocou de notebook por um top de linha, despediu-se dos pais e amigos chegados e partiu, deixando para trás decepções, amarguras e tristezas. Iria viver uma nova vida, com que vinha sonhando ultimamente. Sentia-se com o coração fechado. Costumava dizer que estava fechada p’ra balanço

Estava tão cansada que dormiu durante quase todas as onze horas do voo. O avião não estava lotado e teve a sorte de voar sem nenhuma companhia ao lado. No próprio aeroporto de Fiumicino, após passar pela alfândega, dirigiu-se a um pequeno restaurante onde fez uma breve refeição. Havia optado por fazer a viagem de trem até o destino. E com medo do voo atrasar escolheu um horário com bastante folga. No terminal 2 aguardou a chegada do trem.  Estava tão em paz consigo própria que nem sentiu o tempo passar. A viagem transcorreu sem nenhuma intercorrência. Chegou ao destino já à noite. O intermediário a esperava e a transportou a uma pousada previamente reservada. Uma cesta de pães, queijos e frios a aguardavam, bem como meia garrafa de vinho de uma vinícola da região. Tomou um banho bem demorado e fartou-se com todas aquelas delícias. Liquidou com a garrafinha daquela bebida dos deuses. Ligou a TV e capotou.

Na manhã seguinte, Suzana acordou com muita disposição. Tomou um delicioso café com tudo que tinha direito e esperou por Jorge, o intermediário. Estava ansiosa para conhecer sua nova moradia que vira apenas por foto.

Ficou ainda mais encantada ao conhecer de perto  Alberobello com seu conjunto de trulli (plural de trullo), antigas casas de calcáreo com telhados cônicos, declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Os trulli, uns mais pitorescos que outros, eram todos enfeitados com jardineiras e vasos floridos. Trepadeiras quebravam a frieza dos muros de pedras. O colorido das flores trazia um romantismo ao lugar. Teve a certeza de que se daria bem ali.

À tarde, trouxe suas coisas para se instalar. Começava então uma nova vida, com novos ares, novo país, novas perspectivas.

Jorge fez um relato de tudo que ela tinha vontade de saber. Explicou onde ficava a Igreja de Sant’Antonio, o armazém, a farmácia, os locais para que pudesse se alimentar e se divertir. Deu-lhe um pequeno mapa da região e Suzana sentiu vontade de desbravar o lugar.

Logo, descobriu que, se quisesse fazer caminhadas, teria que ir até a praia porque as ruas eram bem tortuosas e íngremes, além de forradas com pedras irregulares. Mas podia sentir a energia do lugar. E deixou que o ar puro enchesse seus pulmões.

Percebeu também que as pessoas pareciam ter um bom astral. Todos a olhavam e a cumprimentavam sorridentes.

Nos primeiros dias, em que ainda não havia abastecido a despensa, resolveu pesquisar os restaurantes, bares e osterias do lugar. Todos ofereciam o vinho da região, maravilhoso. Em geral, a comida oferecida era de lamber os beiços. Jorge havia recomendado a Osteria Villari. Resolveu experimentar, depois de sair maravilhada resolveu visitar a Basílica de San Nicola.

Em casa, procurava comer muitas verduras e frutas da estação.

O fim do verão já apresentava um vento de fim de tarde, mas as manhãs eram inteiramente aproveitáveis.

Organizou-se. Aproveitaria as manhãs para caminhar, exercitar-se e fazer as compras necessárias. Uma vez por semana faria o curso de italiano, embora na região muitos se comunicassem no dialeto local.  À tarde estaria inteiramente voltada à escrita. No ambiente pequeno, o notebook a encarava, lembrando-a de que estava à disposição.

Aquele lugar romântico e aconchegante seria uma fonte constante de inspiração.

Os moradores do lugar, hospitaleiros, começaram a convidá-la para pequenos eventos.

Em pouco tempo, sentia-se entrosada e conhecia grande parte da vizinhança e dos lugares indicados.

Pelas redes sociais, matava a saudade de alguns amigos chegados, dos pais e da irmã caçula.

O outono chegou mais rápido do que ela previa, as folhas avermelhadas decoravam ainda mais a região. O tapete de folhas forrava o caminho de pedras. Passou a acordar um pouco mais tarde e a fazer as caminhadas quase na hora do almoço. Depois de seis meses sentia-se ambientada.

Seu romance crescia de vento em popa, deixando-a satisfeita, embora a cada vez que relia, alguma modificação era feita. Era exigente.

Naquela manhã, foi acordada por um burburinho nada habitual. Abriu a janela. Havia grupos formados aqui e ali. Alguns gesticulavam, parecendo aflitos. O que estaria acontecendo. Vestiu-se rapidamente e saiu para saber o que ocorria de diferente naquele lugar sempre tão tranquilo e pacífico.

Ficou sabendo do sério acidente ocorrido bem no início da manhã. Um trem que vinha de Lecce chocou-se com uma composição que vinha inadvertidamente em sentido contrário, o que não era habitual. Várias pessoas ficaram machucadas, algumas em estado grave e tiveram que ser levadas para o hospital local.

Suzana, achando que deveria prestar solidariedade aos feridos, dirigiu-se ao hospital.

A equipe médica estava em polvorosa. Haviam chamado mais médicos e cirurgiões de outros hospitais e até de cidades vizinhas.

Pediram-lhe que voltasse nos dias seguintes porque naquele momento em nada poderia ajudar. Deixou o número de seu celular, colocando-se à disposição.

Dias depois, soube que vários pacientes haviam sido liberados, alguns poucos ainda permaneciam internados. Voltou a se oferecer para acompanhar algum doente que tivesse necessidade.

Foi então que conheceu Giovanni. O rapaz de trinta e cinco anos teve que ser submetido a várias cirurgias. Com a batida dos trens, fora jogado ao chão, ficando preso entre algumas ferragens o que resultou num esmagamento na coluna, causando lesão da medula espinhal.  Felizmente, as cirurgias tiveram sucesso e os médicos ficaram otimistas quanto aos resultados.  Isso demandaria tempo pois ainda dependeria de muita fisioterapia.

Ir vê-lo no horário de visitas, tornou-se uma rotina para ambos que, aos poucos, descobriram algumas afinidades o que os aproximou. Giovanni era guia turístico na região. Morava em Lecce de onde estava vindo quando sofreu o acidente.

Os pais de Giovanni vieram logo que souberam do que ocorrera e queriam transferi-lo para sua cidade, mas foram aconselhados a aguardar um pouco. Resolveram hospedar-se numa pousada e permaneceram alguns dias até que se sentiram mais seguros com o progresso do jovem. A presença de Suzana também os tranquilizou, permitindo que retornassem às suas atribuições em Lecce.

A amizade dos dois crescia a olhos vistos e permitiu-lhes tantas confidências quanto o tempo de convívio permitiu.

Giovanni contou que também havia saído de um relacionamento tão doentio que havia se tornado esquivo a qualquer outra relação. A ex-noiva teve que ser internada num centro de recuperação após ser diagnosticada com psicopatia grave.

O progresso do rapaz na recuperação dos movimentos era visível. Ele tinha uma força de vontade que animava o fisioterapeuta a exigir cada vez mais do paciente.

Após três meses do acontecimento, foi autorizado a continuar o tratamento em sua cidade. A primeira coisa que fez foi ligar para Suzana para dar-lhe a notícia.

Suzana, entretanto, não conseguiu falar nada. Ficou muda enquanto grossas lágrimas rolavam pela face. Havia se preparado para aquele momento, mas a realidade pegou-a totalmente desprevenida. Conseguiu balbuciar apenas um Va bene.

Ao desligar o celular, chorou um choro sentido. Apegara-se ao rapaz. Na verdade, apaixonara-se por ele. Vestiu-se, dirigindo-se ao hospital. Os óculos escuros escondiam o inchaço dos olhos. Encontrou-o no meio das sacolas que foram se acumulando durante os meses ali passados. Ele a recebeu com um sorriso vitorioso. Ela o abraçou, tentando conter os soluços. Ao tirar-lhe os óculos ele percebeu o que escondiam. Retribuiu o abraço. O beijo foi inevitável.

Ficaram imóveis, sem coragem de quebrar o encanto daquele momento de descoberta.

O motorista chegou para buscá-lo. Combinaram que ela iria encontrá-lo em Lecce.

Durante a viagem de volta, Giovanni mal conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo com ele.

Suzana enxugou as lágrimas, sentindo que um novo caminho se delineava em sua vida. Estava pronta para trilhá-lo.

 





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