SERVINDO A PÁTRIA
C. P. O. R.
Centro Preparatório de
Oficiais da Reserva
Oswaldo U. Lopes
No
Brasil, no ano em que completa 18 anos, todo brasileiro, do sexo masculino,
deverá se alistar para prestar o serviço militar. Poderá fazê-lo em uma das
três divisões das forças armadas. Exército, Marinha e Aeronáutica. Servirá como
recruta, pesadelo para os diferenciados da classe média.
No
meu tempo era possível, se você estivesse no fim do ensino médio, pedir
adiamento por um ano. Foi o que eu e muitos outros fizemos nos apresentando no
ano seguinte já como alunos da Faculdade de Medicina da USP.
O
pesadelo era servir como recruta, devido as terríveis histórias que eram contadas
sobre a vida nos quartéis. A opção para quem não queria arriscar a sorte era ir
para um Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Vida mais mansa, as
atividades desses centros eram feitas aos domingos e durante as férias
escolares (dezembro, janeiro, fevereiro e julho).
No
Exército era o CPOR, na Marinha o CIORM (Centro de Instrução de Oficiais da
Reserva da Marinha). Na Aeronáutica, se você tinha brevê de piloto era
automaticamente incorporado à Reserva e dispensado. Em São José dos Campos
havia um Centro de Formação de Oficiais da Reserva, mas era formado pelos
alunos que haviam ingressado no ITA.
Os
CIORMs existiam onde a Marinha tivesse atividades e esquadra, vale dizer Rio de
Janeiro. Em São Paulo era simples: CPOR ou recruta.
O
quartel do CPOR em São Paulo localizava-se em Santana e ainda existe. Formava
oficiais nas quatro armas: Infantaria, Cavalaria, Engenharia e Artilharia.
Comunicações não era ainda uma arma. Era um detalhe da Intendência.
Era
fácil identificar as armas: a Infantaria era a Rainha já que era ela que fazia
o domínio do solo. O que os alunos da Infantaria marchavam não estava no gibi,
sempre a pé e carregando o fuzil.
A Cavalaria tinha um lindo hino:
“Cavalaria, Cavalaria tu és na guerra a nossa
estrela guia.” Além disso, os alunos da Cavalaria eram aqueles que passavam de
calção, tamancos e sacola, quando nós já estávamos indo embora, para dar banho
e escovar os cavalos.
A
artilharia era a que carregava sempre uma tábua de logaritmos o que era motivo
para piadas a respeito de um canhão sempre voltado numa direção diferente.
Também eram escalados para dar salvas de tiro quando da presença de visitantes
ilustres. Lembro-me de uma vez que saudaram o Presidente Português Craveiro
Lopes (16 de junho de 1957). Ficavam a lavar canhões com água fervendo enquanto
caíamos fora nos domingos.
Na
Engenharia, estavam os alunos da Poli e do Mackenzie, como sempre ensimesmados
e estudiosos. Só entrava CDF de carteirinha.
Havia
também dois serviços: Intendência e Corpo de Saúde.
Nos
USA, que em seus quase 250 anos de independência, se viveram 20 sem guerrear
foi muito, ambos serviços são considerados essenciais e importantes. A
Intendência garante o suprimento para o avanço das tropas. Sem combustível,
alimentos e munição não se combate.
Eles
também descobriram que os jovens que vão à guerra não cogitam de morrer pela
Pátria, pensam no máximo que poderão ficar feridos e perceber que o serviço de
saúde está perto e é eficaz, eleva muito o moral da tropa.
Em
Santana não era esse o pensamento. A Intendência era chamada de Escolinha
Walita e na Saúde nem oficiais havia.
Alunos
da Escola Paulista de Medicina e da Faculdade de Medicina da USP, compunham a
maioria da tropa do Corpo de Saúde. Nos apresentamos no dia 15 de dezembro de
1956 para iniciarmos nossa preparação como primeira turma.
Nossa
formação estava a cargo de três Sargentos. Nicanor e Pires eram 3º
Sargentos do Serviço de Saúde. Hugo de Miranda Duro era Primeiro Sargento,
lotado na Saúde, mas certamente proveniente de alguma arma. Como era gaúcho,
suspeito que da Cavalaria.
Coube
a ele a nefasta missão de transformar um grupo de paisanos, metidos a besta,
por já serem alunos de Escolas Médicas, em soldados. Fez o que pode, dentro do
Exército seu trabalho foi reconhecido, já era subtenente em 1959 e quando
reformado em 1981, tenente posto máximo que poderia ter alcançado, não tendo
feito carreira de oficial na Academia das Agulhas Negras.
Logo
nos primeiros dias estávamos em forma e ele fazia a chamada anotando com uma caneta
os faltosos. Não sei por que razão os números eram de 1000 para cima, eu, por
exemplo, era 1045.
Em
forma era modo de dizer todo mundo conversando com todo mundo na maior zorra e
ele falando os números. Lá pelas tantas ele fez umas caretas e gestos de que a
caneta não estava escrevendo. Calmamente jogou-a no chão e pisou em cima. Hoje
olhando para trás, acho que ele tinha uma caixa delas, naquele momento os
paisanos se deram conta de que o gajo era fogo, mosca passando fazia mais
barulho que Airbus 330 voando baixo. Olhamos incrédulos para o sargento que
seguiu com a chamada impávido.
Aos
poucos fomos aprendendo. Quando em grupo apresentávamos armas à bandeira, ao
comandante e ao terreno. Terreno? Pois é era assim que tratavam o solo. Se
falassem em continência ao solo apresentar armas, teríamos entendido melhor,
por causa do hino:
“Dos filhos deste solo és mãe gentil”
Terreno,
para a paisanada era lugar baldio ou espaço onde se construía uma casa. Eles
queriam dizer que os soldados se curvavam em respeito ao solo!
Aprendemos
também o Hino da Saúde que era um primor de militarismo:
“Nós soldados do Corpo de Saúde
Sem temer o rugido da metralha
Aos heróis que tombam na vanguarda
Lhes levamos o socorro na batalha”
Os
hinos militares são cantados e ensinados para sugerir e criar um espírito
guerreiro nos jovens. Esse, sei não. Dos alunos da Saúde que eu conheci metade
tinha medo do rugido da metralha e a outra metade era boa de corrida.
Naquele
tempo eram frequentes os bailes ditos Brancos (debutantes no Brasil,
quinceaneras na versão espanhola), nos Colégios Femininos: Sion, Des Oiseaux,
Notre Dame, Assunção entre outros. Tudo puxado a vestido comprido e smoking.
Você ia ao baile que acabava às 4 horas da manhã, dava uma passada em casa,
punha a farda e sem dormir tocava para a Rua Voluntários da Pátria em Santana.
O quartel ficava na Alfredo Pujol que era travessa da Voluntários, rua
importante onde circulava o bonde. Se você estava fardado não pagava passagem.
O Sargento
Duro esperava por nós, no domingo, pontualmente às 06h30min, com a pergunta
certa:
— Foram no baile ontem?
— Sim, Senhor.
— Então vamos conhecer Santana.
E
nos fazia marchar pelo bairro durante horas a fio, a mais das vezes carregando
fuzil. Voltando ao quartel anos depois,
reparei que aqueles terrenos estavam agora ocupados por prédios de
moradia de onde, nas janelas, as moças espiavam os rapazes marchando e fazendo
ginástica. Acho que até ouvi assobios. Outros tempos...
O
material que usávamos nas aulas ou para marchar era antigo de fazer dó. Os
fuzis eram da Primeira Guerra Mundial. Não havia repetição, para cada disparo
você tinha que acionar o ferrolho.
Duro,
compenetrado na sua missão de nos fazer soldados levou-nos ao Barro Branco para
exercícios de tiro com fuzil e pistolas.
Na
Saúde, você está se perguntando? Pois é, na Saúde! Serviço que nunca anda
armado. Lembro-me do Prof. Alípio que estivera na Segunda Guerra Mundial como
major médico da FEB, contando que se você fosse feito prisioneiro pelo Exército
Alemão, sendo da área de Saúde, era imediatamente solto, desde que não portasse
arma. Havia um entendimento tácito de que você atenderia, como de fato atendia,
os feridos de ambas as partes. Se você estivesse armado, era considerado combatente
e feito prisioneiro.
O
curioso é que os médicos voluntários que vinham da área civil, não carregavam
armas de nenhuma espécie, já os médicos de carreira do Exército carregavam
sempre uma pistola, pelo que muitos acabaram prisioneiros.
Ao
fim e ao cabo ficamos mais próximos do Sargento Duro que nos contava então
coisas mais pessoais. Como a que ouvira de outro sargento telegrafista em Mato
Grosso que recebera um telegrama do Ministério da Guerra, em função de um
desfalque havido na unidade, nos seguintes termos:
— Apure-se o culpado e puna-se um sargento.
Um
telegrama e tanto para quem era da classe.
Vendo
hoje os jovens militares em patrulha no Rio de Janeiro, envergando uniformes e
armamentos modernos, sinto que houve evolução. Durante nossa formação, nos
levaram ao Segundo Batalhão de Saúde, hoje desativado, que ficava nos fundos do
Hospital Militar no Cambuci e lá nos apresentaram uma arca de saúde. Era um
daqueles baús em que as moças casadoiras de antigamente guardavam seus
enxovais. Era material usado na Primeira Guerra que terminara em 1918! Continha
faixas de crepe, esparadrapos, gazes etc. Não nos permitiram nem ficar muito
próximos dela.
Cheguei
a fazer serviço de guarda no portão do quartel. Frio danado empunhando um fuzil
sem balas e tiritando, adormeci, só acordando com a aproximação do Sargento da
guarda a me recomendar, não durma.
Lembro-me
da descrição que Fernando Sabino (ele serviu o CPOR em Belo Horizonte na
Cavalaria 1941-44) fez, dos cavalos do CPOR local, que escapando, invadiram
Belo Horizonte numa noite em que ele estava de guarda. Vivíamos num mundo
ingênuo e sorridente, sem nos darmos conta.
Soube que mais tarde, após 1968, as
guardas eram feitas com fuzis armados e ordem explícita de atirar se o
indivíduo não se identificasse e chegasse muito próximo.
Éramos
jovens e tínhamos sonhos típicos dos anos dourados. Ao nosso redor, no entanto,
os fatos aconteciam e os dias sombrios se acumulavam como nuvens de tempestade.
Por exemplo, João Franco Pontes,
coronel da cavalaria, aliás, exímio cavaleiro, que assinou na qualidade de
comandante do CPOR meu certificado de conclusão da primeira fase, foi um dos 81
signatários do famoso Memorial dos Coronéis de fevereiro de 1954 que iniciou a
crise que terminou no suicídio de Getúlio Vargas, em agosto desse mesmo ano.
Como
“prêmio” recebeu já no governo Juscelino o comando do CPOR, tropa de paisanos
que sequer dormia no quartel e nem tinha mobilidade nem características de
unidade de combate. Comparado aos Regimentos de Infantaria e Cavalaria do II
Exército, era uma conjunto nada confiável para um levante.
É
bom lembrar que entre os coronéis que assinavam o tal Manifesto estavam nomes
como: Golbery do Couto e Silva, Amaury Kruel, Jurandir Bizarria Mamede, Silvio
Couto Coelho da Frota, Ednardo D’Avila Mello, Euler Bentes Monteiro, Alfredo
Souto Malan etc. Todos com participação expressiva e ativa na tomada do poder
pelos militares em 1964.
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