Improvável resgate
Ises de Almeida Abrahamsohn
̶ Ei, doutora! A
televisão quebrou. Me arruma algum aí pra consertar.
Célia olhou na
direção daquela voz áspera. Por detrás de uma cortina de pano escuro esticada
na frente do pilar do viaduto apareceu a cabeça do homem. Jovem ainda, calculou
a moça habituada às caras dos moradores de rua. Devia ter entre trinta e
quarenta anos.
O rosto escanhoado e
as roupas surradas, porém limpas destoavam dos seus fregueses habituais.
Este está há pouco tempo nas ruas.
Vamos lá a escutar sua história, pensou a assistente social.
Elpídio estava há um
ano em São Paulo. Viera de uma sonolenta cidade da Bahia perto da divisa com
Minas. Falava bem, tinha segundo grau incompleto. Profissão definida não tinha,
mas já havia trabalhado como garçom, ajudante de pedreiro, lavador de carros, e
auxiliar de portaria na Bahia e em São Paulo.
Por que morava na
rua? O que acontecera com os empregos? Célia perguntava por perguntar, tinha
que fazer o cadastro, sabia que as respostas eram tingidas pela inspiração do
momento. Não tinha família, nem lá nem cá. Os empregos eram temporários, a
carteira assinada prometida não acontecia, era despedido antes de três meses,
tinha ficado doente...
Por que foi
despedido?
̶
A crise, doutora, foi a resposta ensaiada. Mas Célia conhecia várias
outras possíveis causas. Fazia parte de seu treino. Suspeitou... Mas não havia
como obter dele a resposta.
A história era
parecida com muitas outras que escutava diariamente, e devia ser, até
certo ponto, verdadeira. Porém, este cara tinha ainda chance de sair das ruas.
Convidou-o para tomar café no bar da esquina. Depois da média reforçada com pão
e manteiga o rapaz voltou ao pedido do dinheiro para a televisão. Célia duvidou
da existência do aparelho. Elpídio insistiu em mostrar. Afastou a cortina que
ocultava a moradia dos olhares de curiosos.
De fato, lá estava a
televisão, além de lâmpada e até um forno elétrico todos de uma gambiarra dos
fios da iluminação sob o elevado. O rapaz tinha montado sob o viaduto a moradia
com cama dobrável, cadeiras e até um improvisado lavatório com bacia e um
espelho de moldura entalhada dourada de potencial valor para algum pseudo
antiquário.
̶ Tudo material
descartado que ajeitei, falou orgulhoso.
Célia observou que o espaço era varrido e limpo.
O rapaz apontou a TV e explicou.
̶ É o nosso
divertimento. Meu e dos colegas que moram aqui embaixo. A gente vê a novela, o
futebol e toma umas cervejinhas.
Célia se comprometeu
a voltar e a tentar arrumar outro aparelho. Também o cadastrou para um eventual
emprego.
Voltou uma semana
mais tarde com a reposição da TV e a oferta de um emprego numa marcenaria perto
de sua casa onde ele poderia também dormir num cubículo no fundo da garagem.
Encontrou de novo
Elpídio após um mês, já instalado e trabalhando na marcenaria. Tudo dando
certo, foi a informação. Gostava do trabalho, fazia de tudo e pensava em tirar
carta de motorista para poder guiar o caminhão de entregas. O rapaz, agora
melhor vestido e calçado, com o cabelo aparado não mais lembrava o antigo
morador de rua. Convidou Célia para uma pizza na padaria da esquina chamando-a de
seu anjinho protetor.
Passado mais um mês,
Célia foi à marcenaria procurar Elpídio para fazer o seguimento social. O rapaz
estava sumido há cinco dias, mas deixara todos os pertences no quartinho. Não
ligou, nem deu satisfação. Iam entrar em contato com ela se ele não aparecesse
em uma semana.
Antes de verificar
nos hospitais foi até os baixos do viaduto. Achou-o semi desacordado, estirado
sobre um colchão imundo, rodeado de garrafas vazias em frente à velha TV
trombeteando algum noticiário de meio-dia.
Célia suspirou. Então
era este o problema de Elpídio: dipsomania, uma das formas de alcoolismo mais
difíceis de tratar. Ao acordar era até possível que não se lembrasse da
bebedeira. Célia teria que convencer os patrões a aceitá-lo de novo no emprego
e encaminhar o rapaz para tratamento. Iria funcionar? Não sabia, mas
tentaria. Anjos, mesmo os terrenos, não desistem fácil de suas missões.
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