Aquele chapéu - Fernando Braga


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Aquele chapéu
Fernando Braga

      Seu Francisco, à noite, guiando sua caminhonete em estrada vicinal, tendo ao lado sua esposa, acabou atropelando uma vaca que perambulava pela estrada. O impacto foi tal que o animal acabou penetrando parcialmente dentro do carro após estourar o para-brisa, atingindo o rosto e a cabeça de sua companheira que morreu na hora. Seu Francisco na cabeça, no tórax, foi levado com urgência para o pequeno hospital, inconsciente. Drenado um pneumotórax, recuperou os sentidos e após 15 dias já podia se comunicar. Ficou muito abatido, abalado quando soube da morte dela.

      Nunca mais recuperou sua atividade, e o prazer de conduzir os seus negócios aos poucos foi definhando. Prevendo sua morte chamou os três filhos e compassadamente lhes disse:

      —Estou no fim e nem tenho mais prazer em viver. Sinto a morte bem próxima. Quero dividir o que temos.

     — Para você Rodrigo, o mais velho, quero deixar o meu sítio e metade do dinheiro que tenho no banco. Para você Flávio deixo nossa quitanda, esta casa e ainda os outros 50% do dinheiro que está no banco.

      Levantou-se com dificuldade, foi até seu guarda roupa, de lá tirou um chapéu tipo Panamá, cinza, usado, mas bem conservado e colocou-o na cabeça de Otávio, o filho mais jovem dizendo:

      — Você, meu querido filho deixo este chapéu que usei em minha vida, com a certeza, de que será muito bem cuidado por você.

      Como previra, a morte veio buscá-lo em questão de dias.

      Após o enterro, os irmãos se reuniram e discutindo sobre a último desejo do pai - disseram:

      —Achamos que nosso pai não foi justo, devia estar um pouco fora da realidade.     Você, Otávio, não recebeu nada!

      —Nos dois conversamos e pretendemos dividir o que papai nos deixou. Você não será prejudicado.

      —Não, não, não, exclamou Otávio. Tenho certeza que ele estava plenamente senhor de si, quando fez a divisão. Não vou aceitar.

      —Sabe Otavio, nós sempre achamos que você, desde que nasceu era o filho predileto, preferido do papai e da mamãe também. Vocês eram muito ligados, mais do que nós; conversavam muito entre si. Acreditamos que não foi justo o que ele fez. Pode contar conosco. Vamos dividir, sim!

      —Pelo contrário, se assim ele quis, é porque foi justo.

      —Pretendo deixá-los em breve, ir em busca da minha própria vida, da minha lenda pessoal. Vou para nossa capital, Belo Horizonte, arranjar um emprego e continuar meus estudos. Pretendo ter uma profissão e me formar médico. Não sei se vou conseguir, mas vou tentar. Só desejo que vocês sejam muito felizes.

    —Tenho um pedido, se não for exagerado. Gostaria que me emprestassem R$ 10.000,00, para ir a BH, onde arranjarei uma pensão, um emprego e uma escola.

      —Não tem problema! Esperamos que tenha sucesso. Se precisar algo mais, pode se comunicar conosco.

      Assim, dias após, foi até a rodoviária e comprou a passagem para Belo Horizonte. Voltando para casa, arrumou sua mala, colocou o chapéu em uma das mãos e pegou o ônibus, caminho para BH.

      No caminho, foi matutando, pensando na vida, o que encontraria à sua frente   naquela grande cidade, que ainda não conhecia. Estando o chapéu no joelho, olhou, alisou-o, lembrando carinhosamente de seu pai, endireitou sua aba e colocou-o na cabeça.

       Serviu muito bem, mas sentiu uma vibração em seu corpo, uma sensação estranha, que não era nem boa, nem má. Tirando o chapéu a sensação desapareceu, voltando quando recolocou. Mantendo-o na cabeça, logo a sensação foi desaparecendo. Em seu íntimo, não sabia explicar a sensação diferente que experimentara.

      Após três horas, o ônibus parou em um restaurante à beira de estrada com o chapéu na cabeça, pediu um café com leite e um sanduíche. Após sua pequena refeição, recebeu a comanda para pagar na saída. Quando chegou no caixa, o empregado disse:

- Pode passar. O chapéu pagou.

       Não entendeu.

      Insistiu no pagamento, mas teve a mesma resposta. Acabou passando sem nada pagar. Matutou: —Será que algum conhecido pagou para mim? Mas, eu não conheço ninguém aqui!

      No ônibus, tirou o chapéu da cabeça, colocou-o sobre o joelho e adormeceu.
      Em sua cidade, havia obtido informação de algumas pensões baratas em BH, próximas à rodoviária. Dirigiu-se a uma delas, que achou mais adequada e conseguiu um quarto por alguns dias.

      Tendo boa aparência, conseguiu emprego em um restaurante no período noturno, ajudando o cozinheiro. Pensou:

      —Com este salário vai dar para pagar a pensão por um mês. Agora preciso ir atrás de uma escola.

      Em um colégio distante, de onde se hospedara, portando seu diploma do curso ginasial, foi tentar matricular-se no curso científico. Estava ainda no começo do ano. Quando disse ter 20 anos, um dos membros da diretoria, por coincidência presente, disse-lhe:

      —Você está muito atrasado! Com sua idade deveria ter terminado o Científico. Sugiro que tente fazer a Madureza, onde poderá concluir três anos em apenas um! Logo, poderá prestar vestibular, inclusive há um cursinho aqui perto que posso lhe indicar. É caro, mas o melhor. Mas lembre-se, terá que se dedicar de corpo e alma, estudar muito.

      Otávio saiu intrigado e resolveu ir até o cursinho próximo. Obteve informações precisas, mas o preço era salgado para ele. Tinha os R$ 10.000,00 consigo. Talvez pudesse recorrer novamente aos seus irmãos.

      Mais à noite, vendo seu chapéu em cima da cama, colocou-o, para sair e dar uma volta, conhecer um pouco da cidade grande e comer algo. Ao colocá-lo novamente, teve a mesma sensação estranha, vibração no corpo, que logo passou.

      Percorreu algumas avenidas, um parque no meio da cidade, mais tarde entrou em um bar e pediu um refrigerante e um sanduíche misto quente. Portando o chapéu na   cabeça pediu a conta ao garçom, que logo voltou dizendo-lhe que nada devia, que o chapéu havia pago. Ele não acreditou. Insistiu, mas a resposta foi a mesma.

      Foi para a pensão e ao deitar-se, pegou o chapéu endireitou sua aba, beijou-o e disse:

      —Obrigado, meu pai.

      No dia seguinte ainda estava encabulado, intrigado com o que acontecera. Seria aquele chapéu mágico?

      Resolveu fazer novo teste. Foi até um bar próximo, com o chapéu na cabeça, tomou seu desjejum e ao pedir a conta, novamente o chapéu havia pago. Era demais!

       Se fosse a algum local e pedisse a conta, sem o chapéu na cabeça, a conta era-lhe apresentada normalmente. Agora estava entendendo porque seu pai havia lhe deixado apenas aquele chapéu. Ele era mágico. Usaria o chapéu e não mais o tiraria da cabeça, a não ser para tomar banho.

      Voltou ao cursinho, o chapéu na cabeça e ao fazer a matrícula, disseram-lhe que poderia fazer todo o curso de graça. Fez sua matrícula, bem satisfeito.

      Procurou por pensão mais próxima, o que o fez. Ao mudar-se foi acertar sua conta de uma semana na pensão e mais uma vez o chapéu já havia pago.

      Realmente, não tiraria mais o chapéu da cabeça. Tudo ele continuava pagando. Não precisava mais de dinheiro. Bendito chapéu!

      No cursinho, pediu autorização para assistir às aulas, vestindo seu chapéu. Foi-lhe concedido o privilégio, com a condição que se sentasse na última carteira. Sempre que colocava o chapéu na cabeça a mesma sensação lhe vinha, o que se tornou agradável.

      Começando as aulas, onde iriam ensinar toda a matéria dos três anos do curso científico, em apenas 10 meses, notou que aprendia facilmente tudo o que era exposto na aula. Não precisava nem tomar anotações. Nas arguições frequentes, ele a tudo respondia com muita clareza e corretamente. Nas provas semanais suas notas eram sempre as melhores de toda a turma, o que começou a chamar a atenção de todos os colegas e até dos professores. Adquiriu um punhado de amigos, e todos procuravam dele se aproximar. Só não entendiam, porque nunca tirava aquele chapéu da cabeça. Ele adorava, amava o seu querido, que só tirava ao dormir e tomar banho.

      Terminou brilhantemente o curso, prestou exame, sendo aprovado plenamente, com mérito, recebendo o diploma correspondente ao término do curso científico.

      Agora enfrentaria o exame vestibular, para entrar na UFMG, frequentar a desejada Faculdade de Medicina. Era o que mais queria na vida. Cumpriria a sua “lenda pessoal”?

      Passou a conversar com seu chapéu pois notara que ele, além de pagar suas contas, facilitava para entender tudo que lhe era exposto na escola e também para memorizar facilmente. Ouvia e não esquecia.

      Participou do exame vestibular, sem ter feito cursinho especializado, como a grande maioria dos estudantes fazia. Estudou em dois meses toda a matéria física, matemática, português, química, biologia, que bastava ler, para guardar em sua mente.

      Com o chapéu na cabeça, sentia que sua mente se abria inteiramente.

      Quando saiu o resultado final, viu que havia sido classificado em terceiro lugar. Apenas duas notas melhores. Será que também tinham algum amuleto? Ou mesmo, um chapéu?

      Muito contente resolveu voltar à sua cidade e visitar seus irmãos e contar-lhes sua vitória, podendo agora iniciar o curso de Medicina, que era gratuito. Tinha certeza absoluta que o chapéu pagaria todas outras despesas. Mas, nada confidenciaria, nem aos irmãos. Iria iniciar uma vida nova na faculdade.

      Juntou-se aos colegas no time de futebol da faculdade, e ele que era um “perna de pau” em sua cidade, passou a ser um ás na prática deste esporte. Jogava no meio de campo e além de bom marcador, quando ia para a frente, driblava com facilidade, era muito veloz e tornou-se aquele marcador de gols. Mas, jogava com chapéu enterrado na cabeça, preso com uma fita para que não caísse. Tornou-se conhecido pelos alunos das outras séries mais adiantadas e também pelos professores. E seu apelido pegou facilmente: “O chapéu”.

       Aluno excelente, querido, companheiro de todos, negava-se sempre a explicar porque não tirava o chapéu nas aulas, praticando esporte e mesmo quando escurecia. À noite ao deitar-se, com um beijo o tirava, beijava-o, agradecendo o pai e dormia o sono dos justos. Pela manhã após o banho, o que primeiro fazia era....

      Ainda no segundo ano foi convocado para participar do time oficial da escola para disputar o torneio de futebol, onde se confrontariam 15 escolas federais e estaduais de medicina. Era a realização de mais uma Intermed.

      Tornou-se o artilheiro da competição, conseguindo, junto aos companheiros de equipe, vencer o campeonato, após derrotarem os gaúchos, que traziam a certeza que seriam os campeões. Ele, conseguiu fazer um gol do meio de campo quando observou que o goleiro estava muito adiantado. Nem o Pelé conseguira esta proeza. Foi a consagração total. Saiu carregado nos ombros pelos colegas.

      Após anos de uso contínuo, por mais que zelasse, seu chapéu estava em frangalhos, mas não importava. Tinha medo de que se o levasse a um tintureiro para higieniza-lo cuidadosamente, perdesse o encanto. Muitas vezes, foi presenteado com um chapéu parecido, para substituir o velho. Mas, no dia seguinte lá estava ele com o mesmo chapéu. Continuava afirmando que se o retirasse da cabeça, sentiria uma dor terrível.

      Os professores médicos, não tinham explicação para o fato e sabiam que ele estava somatizando, era um caso psiquiátrico. Mas como podia ser um caso psiquiátrico, se o rapaz era formidável em todos os sentidos? Deixe-o usar o seu “ensebado”, enfatizavam. Brilhou em todo o curso médico.

      Em sua formatura, foi escolhido como orador da turma e para todos, não poderia ser outro. No anfiteatro, completamente cheio, lá estavam seus irmãos, agora casados.

      Subiu as escadas para a tribuna, elegantemente vestindo sua beca e...com o ensebado chapéu na cabeça. Foi um murmúrio geral e com muitas risadinhas. Os que não o conheciam, acharam aquilo um desaforo, um desfeito àquela majestosa festa.

      Seus irmãos não acreditaram que ele estivesse usando aquele chapéu, que há sete anos havia herdado do pai. O pai ali estava presente em corpo e alma, para os três.

      Após sua brilhante oração onde agradeceu aos seus mestres, colegas, sua vivência dos seis anos de faculdade, não deixou de referir-se com muito carinho a seu amado pai que havia lhe proporcionado esta grande vitória. Após retirar o chapéu, beijou-o e colocou-o de encontro ao seu coração. Foi a última vez que o colocou na cabeça.

       Havia cumprido linda “lenda pessoal”.

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