Salve o Maurice!!!
Mario
Augusto Machado Pinto
A filarmônica
espalha o som dos compassos repetitivos do Bolero de Ravel pelo meu corpo e me
conduz lentamente ao mais alto paroxismo dos movimentos: o quadril desenha
oitos, as pernas se esticam, se abrem, se frecham, me viro de lado, volteio, o
sangue ferve nas veias, o tronco sobe e desce acompanhando a cadência musical,
o respiro fica cada vez mais rápido chegando ao ofegante, são os últimos
compassos, o tremor envolve todo meu ser, ahn...ahn...Estou chegando...Os
metais estão estridentes...
É sempre assim,
o telefone toca na hora do melhor, às tantas da madrugada em noite de céu sem
estrelas, tétrica, com ventania, carregada de frio de congelar os ossos, gotas
da chuva fazendo som no vidro das janelas; o espaço lá fora como que atravessado
por uma cortina de plástico de cor leitosa, opaca, mal cheirosa, noite para
dormir de colherinha com companhia, e não
de acordar um pouquinho antes do bem bom.
— ”Mala
cueva!’’
— -O que
houve? Fala bem rápido. Sim. Sim, vou em seguida. Meia hora, quarenta
minutos...Tá...Tem material? Tchau.
Dirijo velozmente
com os faróis acesos. Não me incomodo com o reflexo da luz fazendo brilhar no
asfalto milhares de cristais de quartzo espalhados aguardando alguém para
pega-los e fazer braceletes, colares, anéis...
A cidade a
estas horas é silenciosa. Quantos bebericam grogues, têm conversas francas,
intimas, mãos acarinhando pernas marcadas por camisola leve, fazem amor, e eu aqui ouvindo pelo comunicador
vozes rouquenhas de gente que fumou e bebeu até onde dá. Mas, vamos lá. Que
inveja. Que saco! Quando vou me
acostumar?
À minha
frente um bando de gente, homens e mulheres conversando e fumando, sempre
fumando, guardas chuva abertos, chapéus escorrendo água, todos me esperando. É
assim que ficam quando fazem churrasco aos sábados. Vou acabar logo com isso.
-Então, Wado
o que há? Onde?
— Veja você,
ora! Ali na subida. Vai despacito e com calma - Até há pouco era costume
cumprimentar e dizer Boa Noite!
— Que boa
noite que nada. Esta es una noche de mierda!
Falando em
espanhol ficavam sabendo que meu humor estava no subsolo do porão.
Wado é meu
colega há 19 anos, aquele com quem tenho mais afinidade. Grande, forte, barriga
de dúzias de cervejas, salsichão e chucrutes...Me abraça sempre. Eu finjo que
não gosto e ele ri de gargalhar. É um cara a quem entregaria minha vida. Muito
bacana, mas de vez em quando enche o saco.
Subi, e no limite de uma moita de buchinho vi bicos de
sapatos.
— O que aprontaram
desta vez?
Fui me
aproximando devagar para não escorregar na grama molhada pensando na humanidade
que pode ser perversa e criar situações...E da minha memória salta a Pavane, do
Maurice...
Logo á frente
um corpo estendido no chão – Eta, Chico! – sem vida, claro, com um crucifixo de bom
tamanho espetado no pescoço, bem no ’’gogó da ema”.
— Essa é
nova. Nunca vi nada igual e olha que já
são 28 anos nesta porra de trabalho.
Bonita
figura desnuda, cheia de marcas e equimoses – que bruta surra...Será que foi
briga ou foi luta? Ligo a lanterna, examino em detalhe gravando o que vejo:
manchas roxas, mãos com sangue e dois dedos quebrados na direita...Pescoço torcido,
quebrado. Foi luta... Face com hematomas...
De repente,
BAM!!!, um empurrão.
— Puta la
vida, o que acontece?
Caramba! Por
João 23! O que é isso, porra?
É um corpo que
rolou do morrinho logo acima. Homem, aparência das ‘’zelites’’, calça de pelo
de camelo e cueca abaixadas. ”o documento” exposto parecia uma taturana
enroscada, flácido, caído de lado. Bocona aberta. Alguns dentes quebrados. Um
terço enrolado no pescoço. Não preciso ver mais nada pra saber da ópera. Vou ver
a mulher. Que figura! Linda, morena, olhos abertos, azuis, expressão de terror.
Veste lindo bustiê de seda estampada, minissaia rasgada cintura abaixo...“fio
dental” de renda branca puxado para um lado. Arranhões entre-cochas. Depilação
brasileira. Grandes lábios aparecendo, rabinho do O.B. O cara estava com
pressa. Afobadão desgraçado!
Marcava e
numerava os itens importantes da cena dos crimes quando me dei conta do som do
batuque que atravessava o da minha Pavane. Era de candomblé.
— Aqui no
parque? Que loucura!
Subi um
morrinho e lá estava um grupo dançando, Axogun fumando cachimbo.
Esse
cheirinho, tem maconha no meio...
— Vocês aí,
vamos acabar com esse som de merda, parar
a dança dessa pomba gira e tirar da roda a garota que está em transe!!!
Gritei
varias vezes com toda força dos meus pulmões. Não adiantou.
Veio na
minha direção o Babalorixá mal encarado apontando um facão seguido pelo Axogun.
Os dois pareciam raivosos. O Babalorixá veio direto para me atacar. Ouvi o som
de três tiros seguidos. Caímos os dois: o Babalaorixá, estendido estrebuchando no
chão; eu também caído, sentindo dor forte e cortante de uma bala que atingiu
meu ombro direito e mais outro tiro que atingiu minha mão esquerda. Começou um
grande tiroteio, verdadeiro festival; era tiro para todo lado. O peso de alguma
coisa fez doer minhas costelas.
Aumentou a
música de fundo. Escutei a voz do Wado perguntando:
— Está tudo
bem? Fala, aguenta, fica comigo, a ambulância chega logo. Ouvi a sirene em off.
Sumiu o som da Pavane e recomeçou o do Bolero.
Soube,
então, que tudo ficaria bem. Injeção. Adormeci ouvindo o Bolero pensando se me
aposentaria no ano que vem.
Arre! Que
legal!!
Salve o
Maurice!!!
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